Em 1944, São Josemaria Escrivá publicou La Abadesa de las Huelgas, uma obra que alcançou um lugar de relevo na história do direito e da investigação histórica sobre a mulher.
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O livro é sobre a figura da abadessa do Mosteiro de las Huelgas (Burgos), que exerceu jurisdição quase episcopal durante séculos num amplo território castelhano que se estendia entre Toledo e a atual Cantábria. A abadessa, além da autoridade canónica própria dos superiores religiosos no seu próprio âmbito, possuía autoridade civil, graças a alguns privilégios reais e, além disso, poder canónico semelhante aos dos bispos sobre os fiéis cristãos no seu domínio, com exceção dos assuntos que requeriam a ordem sagrada. Entre as suas faculdades, a abadessa tinha a capacidade de conceder licenças para celebrar Missa, pregar, confessar e impor penas eclesiásticas e civis, através de juízes que aplicavam a justiça em seu nome.
O autor abordou esta singular realidade incluindo as perspetivas jurídica e histórica de muito interesse. Durante a vida de Escrivá, publicaram-se duas edições do livro: a primeira em 1944 e a segunda em 1974. Posteriormente, em 1988, realizou-se uma reedição.
No octogésimo aniversário da sua publicação, o Centro de Estudos Josemaria Escrivá entrevistou as autoras da edição crítico-histórica do livro, María Blanco e María del Mar Martín.
María Blanco é catedrática de Direito Eclesiástico do Estado na Universidade de Navarra, autora de monografias de conteúdo histórico-jurídico e de numerosos artigos. É Académica correspondente da Real Academia de Jurisprudência e Legislação.
María del Mar Martín é catedrática creditada de Direito eclesiástico do Estado na Universidade de Almería e autora de numerosos trabalhos de Direito canónico, Direito eclesiástico do Estado e Direito comparado.
Que horizontes pessoais e apostólicos impulsionaram São Josemaria a empreender uma investigação sobre a abadessa do Mosteiro das Huelgas?
Mar Martín: Desde 1928, São Josemaria tinha-se comprometido com a fundação do Opus Dei, que considerava um chamamento divino. Ao empreender esta investigação, pensamos que o seu objetivo pessoal era completar os seus estudos de doutoramento, que tinha iniciado alguns anos antes. Em termos apostólicos, provavelmente, a sua intenção era dar exemplo aos jovens do Opus Dei, que estava a formar na mensagem da santificação no trabalho quotidiano.
Em qualquer caso, a sua dedicação a investigar a figura da Abadessa do Mosteiro de las Huelgas enquadrava-se no horizonte do seu trabalho sacerdotal e da sua dedicação a levar por diante o Opus Dei.
María Blanco: Durante a guerra civil espanhola, São Josemaria decidiu retomar a sua tese depois de chegar a Burgos, após atravessar os Pirenéus. No entanto, por causa da guerra, tinha perdido todo o material com que tinha trabalhado nos anos anteriores em Madrid numa investigação sobre a ordenação de sacerdotes mestiços na América latina.
Provavelmente, foi então que um sacerdote que conhecia de Madrid e com quem se reencontrou casualmente em Burgos lhe sugeriu que aproveitasse a estada na cidade para investigar sobre a jurisdição do Mosteiro de Las Huelgas, que se encontrava muito perto e onde poderia aceder ao material do arquivo. Com esta sugestão em mente e utilizando os documentos disponíveis no mosteiro, São Josemaria decidiu retomar a investigação.
Anos depois de ter defendido a tese, Escrivá optou por publicar um livro sobre este tema, pois conhecia bem a matéria. Ampliou a documentação disponível e aprofundou a investigação. Finalmente, em 1944, publicou o livro La Abadesa de las Huelgas.
Poderiam descrever o contexto histórico em que São Josemaria Escrivá escreveu La Abadesa de las Huelgas?
Mar Martín: Como se acaba de assinalar, o trabalho de São Josemaria desenvolveu-se em duas fases diferentes. A primeira foi durante os anos da Guerra Civil espanhola, quando chegou a Burgos e iniciou a sua investigação com o objetivo de completar o doutoramento, iniciado anos antes em Madrid. A segunda começou nos anos do pós-guerra, entre 1940 e 1944, quando ampliou a sua investigação inicial e finalmente publicou o livro. Estes anos foram também de intenso trabalho pastoral para São Josemaria, uma vez que se dedicava à formação das primeiras vocações do Opus Dei.
María Blanco: Acrescentaria simplesmente que São Josemaria também soube fazer participantes os seus filhos espirituais deste trabalho intelectual; e, em alguns casos concretos (que aparecem recolhidos na edição crítica), contou com a sua ajuda e sugestões. Por exemplo, Amadeo de Fuenmayor, entre outras coisas, enviou-lhe algumas fichas com dados de interesse a partir de Santiago de Compostela (onde era catedrático); Guadalupe Ortiz de Landázuri (hoje beata) colaborou com algumas diligências na impressão do mesmo modo que María Jiménez Salas, que trabalhava no Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) e, sem ser do Opus Dei, não duvidou em ajudar nos trabalhos de tipografia, impressão e questões semelhantes. De facto, as páginas da edição crítica relativas à "Composição do livro e outros trâmites" são particularmente sugestivas, diria mesmo, divertidas.
Quais são as características gerais do livro?
Mar Martín: Sublinharia pelo menos três características. Em primeiro lugar, é um livro muito bem escrito. Não é um texto de leitura maçadora, como costuma acontecer com as monografias jurídicas, ainda que isto não signifique que seja fácil. Em segundo lugar, o autor combina muito bem as perspetivas histórica e canónica e o seu contexto teológico para abordar uma mesma realidade: as faculdades históricas da abadessa do Mosteiro de las Huelgas. Por último, é um texto que, sem ser apologético, reflete o amor de São Josemaria à Igreja e à vida religiosa.
María Blanco: Além do importante conteúdo histórico-jurídico deste livro, a escrita do autor revela um coração que ama a Igreja e uma cabeça profundamente cristã. Por exemplo, ao descrever como a abadessa dá a notícia às suas religiosas de que o Papa, através da bula Quae diversa, pôs fim à sua jurisdição quase episcopal, Escrivá releva a grandeza e a beleza da fidelidade ao Papa como parte fundamental da fé cristã: «Agora justamente, no preciso momento em que o poder absoluto da Abadessa se introduz no livro da História como um acontecimento extraordinário que não se pode repetir, embora coroando vários séculos de esplendor, é que a figura desta Ilustríssima Senhora alcança o seu maior prestígio: o que lhe concede a sua fidelidade à Hierarquia da Igreja» (La Abadesa de las Huelgas, ed. Crítico-histórica, n. 54 a).
Quais são os principais contributos da vossa edição crítico-histórica?
Mar Martín: Esta edição crítico-histórica constitui um enquadramento histórico-jurídico que contextualiza a investigação de São Josemaria. Também situa o autor nos anos 30 e 40, revelando aspetos da sua vida em relação com o contexto da época. Além disso, inclui-se a análise do contexto em que se realizou a segunda edição nos anos 70.
María Blanco: Outro aspeto com interesse é o laborioso "trabalho de campo". O levantamento para procurar documentação e bibliografia em arquivos muito diversos: do âmbito universitário, civil e eclesiástico. Uns muito antigos e outros novos. Guardo uma grata recordação do arquivo da comunidade de las Huelgas, que implicou árduas buscas através dos ficheiros, índices e cadernos.
Que sugestões dariam a quem quiser aprofundar no estudo desta obra?
Mar Martín: É uma leitura muito agradável que realmente vale a pena. Creio que os que se sintam atraídos pela História ou tenham algum conhecimento jurídico estarão especialmente interessados nela. Em qualquer caso, a edição crítico-histórica é uma excelente porta de entrada para que qualquer leitor possa aprofundar nesta obra e conhecer pormenores interessantes sobre o autor.
María Blanco: Sem qualquer dúvida, aconselho a leitura dos dois prólogos; e, a partir daí, não duvido de que o leitor apreciará de que estamos a falar...