Homilia de D. José Saraiva Martins

Na manhã de 08.10.2002, em Roma, na missa de acção de graças pela canonização para peregrinos de língua portuguesa, o Cardeal afirmou «Um dos segredos da grande expansão da Obra de Escrivá foi certamente a espiritualidade que ele procurou incutir nos seus membros. São conhecidos o espaço e valor que a Prelatura dá à vida sacramental e à ascese. A vida espiritual, a vida interior, a vida de oração, são uma exigência levada e praticada muito a sério no Opus Dei.»

Eminentíssimos Senhores Cardeais,

Excelentíssimos Senhores Arcebispos e Bispos,

Reverendíssimos sacerdotes,

irmãos e irmãs em Cristo.

As Leituras desta solene Concelebração eucarística, que acabamos de ouvir, são três passagens da Sagrada Escritura que dão um profundo fundamento bíblico à vocação e à missão de São Josemaría Escrivá, pois elas sintetizam a grande originalidade do carisma que o Espírito Santo suscitou nele em benefício de toda a Igreja.

A primeira Leitura é tirada do Livro do Génesis, esse Livro que faz uma reflexão inspirada sobre as origens do mundo e da humanidade. Foram escolhidos os versículos do capítulo segundo, quando Deus, havendo criado o céu e a terra e havendo criado também o homem, qual coroamento da sua obra, plantou um jardim no Éden e confiou-o ao mesmo homem, para que o cultivasse e guardasse. É uma alusão ao trabalho humano, que é colaboração com o Criador: cultivar, fazer progredir o mundo criado; guardá-lo, ou seja, operar no respeito das finalidades para que foi criado. É o opus hominis, que é, ao mesmo tempo, opus Dei. São Josemaría Escrivá, levado por Deus, veio recordar-nos, neste século que presta tanta atenção ao trabalho e ao ambiente, a dignidade de um e de outro: digno o trabalho humano e digno o ambiente, porque colaboração com o Criador o primeiro, e obra do mesmo Criador o segundo.

A segunda Leitura, da Carta de São Paulo aos Romanos, lembra-nos uma outra exigência do operar humano: a de que deve ser feito com espírito de filhos adoptivos de Deus, e não de escravos. O homem vive e actua neste mundo em íntima união com Deus. Operando, ele torna-se herdeiro dos bens de Deus, herdeiro com Cristo. Nesta intimidade espiritual, até as limitações humanas, causadores de sofrimento, tornam-se fecundas de felicidade e de glória futura. A obra do homem torna-se, assim, verdadeira obra de Deus. A acção faz-se contemplação, naquela integralidade e síntese vital de ambas, que caracterizaram a vida e a obra de São Josemaría Escrivá.

Por fim, para o Evangelho foi escolhido o capítulo quinto de São Lucas, que narra a vocação dos Apóstolos e a sua pronta resposta à chamada. O texto está a dizer-nos que quem trabalha neste mundo na perspectiva acima dita; quem concebe a própria actuação como colaboração na obra de Deus e como defesa da mesma, e o faz em espírito de fé e em união com Deus, não só se santifica a si mesmo, mas dá um fecundo testemunho; toma-se apóstolo, até com o seu simples operar: verdadeiro sal da terra, fermento da massa, luz do mundo.

São Josemaría Escrivá não se contentou com santificar-se a si próprio; fundou uma Obra eminentemente apostólica, tão necessária e querida por Deus, que teve o extraordinário desenvolvimento que todos conhecemos. Foi apóstolo e promovedor de apóstolos.

Caríssimos,

Viestes a Roma, com grande entusiasmo e força, à canonização do Fundador, São Josemaría Escrivá de Balaguer; participastes domingo passado no Rito solene da Praça de São Pedro, e hoje nesta Eucaristia de acção de graças. Fizeste-lo, para que a mensagem do Santo continue a iluminar as vossas vidas e a traduzir-se em frutos de santidade e de testemunho para o nosso mundo tão carecido dessa inspiração.

A Igreja canoniza os seus filhos, não tanto para lhes acrescentar glória e celebridade, quanto para fazer deles nossos intercessores junto de Deus e, sobretudo, nossos modelos de vida. É a inspiração da mensagem específica do Santo o que mais interessa à Igreja, quando eleva à glória dos altares aqueles que o Espírito escolheu para lembrar e potenciar um ou outro valor evangélico, o que se chama carisma. Os Santos canonizados são da Igreja e são para a Igreja; não são luzeiros para esconder debaixo do alqueire, mas que ela levanta bem alto para iluminar a todos.

A Igreja, através do ministério petrino, por boca daquele que é a sua cabeça e chefe visível, através do Santo Padre, apresentou à universalidade dos seus membros – diria mesmo ao mundo inteiro –, a figura e o carisma de um seu filho insigne, para que os fiéis e a humanidade encontrem nele uma inspiração de vida, uma ajuda na realização da própria vocação e missão. Uma canonização torna-se assim uma verdadeira pregação e uma verdadeira catequese. Aproveitemos a hora de graça que tivemos a oportunidade de viver nestes dias. Demos novo impulso ao que nos liga a São Josemaría Escrivá e à sua obra.

Limito-me aos pontos realçados na Liturgia da Palavra e que acima referi. Eles dão-nos um sugestivo quadro do Santo, da sua vida e da obra que nos deixou em herança.

1) Segundo o espírito do Opus Dei, o trabalho, a actividade profissional que cada um realiza no mundo, pode e deve ser santificado e tomar-se caminho de santificação. Eis porque São Josemaría Escrivá se dirigia a todas as camadas da sociedade e por todas era escutado e seguido; eis porque o Opus Dei se estendeu e cresceu de uma forma admirável, contendo no seu seio gente das mais variadas camadas sociais e dos mais diversos ramos da actividade humana.

São Josemaría Escrivá e a sua Obra estão a recordar que qualquer trabalho honesto, independentemente do facto de ser relevante ou insignificante aos olhos dos homens, é ocasião para dar glória a Deus e servir os outros.

A dignidade esantificação do trabalho, eis a primeira intuição e ideia forte que gostaria de sublinhar nesta reflexão. Trabalhar numa perspectiva de fé, conceber e realizar as próprias actividades – sejam elas de destaque ou as mais simples e comezinhas – como colaboração com o Criador e serviço aos irmãos. Quem trabalha com os olhos postos em Deus abre-se necessariamente aos irmãos e faz tudo em espírito de serviço, para o bem dos mesmos. O mundo seria tão diferente, se o trabalho tivesse sempre essa dimensão! Está a nós colaborar para que assim seja.

As ocupações e preocupações da nossa vida quotidiana não devem ser vistas como outras tantas razões de separação entre nós e Deus, e entre uns e outros, uma espécie de dispensa da perfeição cristã, mas, ao contrário, como a própria e mais adequada matéria da nossa santificação, desde que tudo seja imperado pela caridade, pelo espírito de serviço e pelo carácter sacerdotal comum a todos os baptizados.

A humanidade não pode ser dividida em duas categorias: os perfeitos e os imperfeitos, os. chamados à santidade e os chamados apenas à não-condenação... Como se o Senhor não se tivesse dirigido a todos, quando disse "Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito" (Mt 5,48).

2) O segundo ponto que gostaria de realçar é o da intimidade com Deus; por outras palavras, a necessidade de uma vida de oração e de contemplação, que complete e fecunde o nosso trabalho. São Josemaría de Escrivá foi um homem de Deus, e foi-o porque Deus fazia parte da sua vida, uma parte consciente e envolvente. Foi certamente um enamorado de Deus e deve ter enchido a sua vida, não só de acção, mas também de oração; caso contrário, todos os seus projectos ter-se-iam esfumado num sonho.

Os Santos foram, acima de tudo, homens e mulheres de vida interior. Sentiam-se filhos adoptivos de Deus; faziam de Deus o seu tudo, a sua força e a sua herança. É, aliás, a mensagem da segunda Leitura.

São Josemaría Escrivá deu à sua obra o sugestivo nome de Opus Dei; uma obra, e nessa palavra, estava inserido o conceito de trabalho, de operosidade; mas era obra de Deus e, para ser de Deus, havia que realizá-la com os olhos e o coração postos em Deus: oração, adoração, contemplação.

Os Santos fundadores de obras foram aqueles que melhor realizaram a síntese de vida activa e vida contemplativa, os que melhor integraram os modelos de Marta e Maria.

Um dos segredos da grande expansão da Obra de Escrivá foi certamente a espiritualidade que ele procurou incutir nos seus membros. São conhecidos o espaço e valor que a Prelatura dá à vida sacramental e à ascese, nas suas casas e nos seus membros. A vida espiritual, a vida interior, a vida de oração, são uma exigência levada e praticada muito a sério no Opus Dei.

3) Finalmente, e atendo-me sempre à Liturgia da Palavra da Missa, um apelo ao apostolado. Deus no Éden pediu a colaboração do homem; Ele que tudo criara do nada, quis precisar da acção do homem; seria este a dar continuidade à criação e a defendê-la. No texto do Evangelho, há pouco proclamado, vemos Jesus evangelizando a multidão e terminar a sua pregação recorrendo à colaboração de alguns pescadores ali presentes: Pedro, André, Tiago, João. Fê-los pescadores de homens, evangelizadores também eles. Ainda mais, no seu desígnio, deveriam ser eles a colher os frutos da Boa Nova por Ele anunciada. As grandes conversões começaram no dia de Pentecostes por obra destes pescadores, que, além de rudes pescadores, eram também pecadores. "Afasta-te de mim, que sou um homem pecador" – confessou Pedro naquele primeiro encontro com Jesus. E a resposta de Jesus sabemos qual foi: de pescador pecador fê-lo seu apóstolo, e que apóstolo!

Deus precisa de nós na sua obra de salvação. Daí que a Igreja seja sacramento de salvação; daí a vocação universal à santidade, que é ao mesmo tempo vocação e missão: santidade, não apenas pessoal e privada, mas para irradiar e santificar os outros.

Todo o baptizado tem o direito e o dever de ser apóstolo. Essa é a sua vocação e missão na vida e neste mundo.

São Josemaría Escrivá trabalhou para santificar os seus irmãos, independentemente da sua posição social, para que eles, santificando-se, se tornassem, por sua vez, santificadores; para que eles, com a santidade do seu trabalho, se tornassem para todos, sal, fermento e luz.

A canonização de Josemaría Escrivá é uma ocasião privilegiada para, recordar e renovar este seu carisma, de tão grande importância e actualidade.

Que o novo Santo, a nós tão próximo e caro, nos ajude a santificar as nossas vidas e trabalhos de cada dia, convertendo-nos em testemunho e inspiração de santidade para os nossos irmãos, para a Igreja e para o mundo.

Roma, 8 de Outubro de 2002

Igreja de Sant'Andrea della Valle

Card. José Saraiva Martins

Prefeito da Congregação das Causas dos Santos