"Gratias tibi, Deus, gratias tibi"

Homilia de D. Nuno Brás, Bispo auxiliar de Lisboa, na missa em honra de S.Josemaria celebrada no passado dia 26 de Junho na Igreja de Nossa Senhora de Fátima (Lisboa).

Gratias tibi, Deus, gratias tibi! – estas palavras, pronunciadas por São Josemaria na Quinta-feira santa de 1975 (M. DOLZ, São Josemaria Escrivá , 54), a véspera dos seus 50 anos de sacerdócio, ao agradecer a Deus a Sua Obra, espalhada pelo mundo inteiro e construída a partir de "meios completamente ilógicos" aos olhos dos homens, traduzem o mesmo sentimento que hoje enche o nosso coração, ao agradecermos ao Senhor o exemplo da sua vida santa, a entrega total da sua existência a Cristo sacerdote, o labor incansável e exemplar do seu apostolado: "graças Te sejam dadas a Ti, ó Deus; graças Te sejam dadas".

Deixando ressoar em nós a Palavra de Deus que acabou de ser proclamada, vejamos como, também ela, nos convidava a estes mesmos sentimentos.

1. Em primeiro lugar, fomos colocados perante a intenção criadora de Deus, perante o “porquê” inicial de tudo o que existe.

Deus, antes e acima de tudo. A Ele tudo se deve; Ele é o segredo de tudo quanto povoa o mundo e não se encontra sob o domínio do pecado. O Deus que tudo criou a partir do nada porque quis espelhar o seu ser no mundo (e de um modo particular no Homem) constitui o princípio e o fim de tudo quanto existe. E isso significa que d'Ele surgiram e continuam a ter princípio a beleza da criação e todas as dimensões do viver humano; mas, igualmente, que para Ele hão-de confluir e n'Ele se hão-de encontrar, não apenas a evolução natural e todo o verdadeiro desenvolvimento, como também toda a atividade do Homem: das ciências naturais à economia; da técnica à espiritualidade; do trabalho manual à contemplação e intimidade maior do próprio Deus; da vida familiar, social e política ao segredo da consciência, onde apenas têm acesso Deus e cada ser humano.

Certamente: existe o pecado, fruto daquele querer livre que se opõe a Deus e que nos desvia da intenção primeira da criação. Mas, mesmo esse, por maior que seja, não é capaz de impedir totalmente a beleza, o bem e a verdade divinos que brilham, constantemente, na criação e naquilo que o ser humano realiza quando se percebe convidado a continuar a obra criadora de Deus: antes do pecado, e mais forte que ele, encontra-se a santidade divina. É, com efeito, a santidade – expressão maior e inabalável do ser de Deus – que, em última análise, constitui a lei, o princípio de toda a procura humana. Procuramos, investigamos, vivemos porque antes de nós existe Deus, e a sua bondade constitui a chave para chegarmos ao sentido de tudo o que existe.

Por isso, mesmo quando submersos no pecado, que procura destruir e desviar o Homem da santidade, é esta que, verdadeiramente, é buscada pelo viver humano. Santo Agostinho haveria de o reconhecer: "fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso espírito anda inquieto enquanto não repousar em Ti" ( Confessiones , I,1). Deus, princípio e fim. O mesmo é dizer: a santidade, princípio e fim do ser humano e do mundo – santidade que havemos de procurar viver, e que havemos deixar que brilhe em tudo o que pensamos, fazemos, somos. Ou, para usar palavras de São Josemaria: "A santidade não é qualquer coisa para privilegiados: o Senhor chama a todos, de todos espera amor: de todos, onde quer que se encontrem; de todos, qualquer que seja o seu estado, a sua profissão ou ofício" (M. DOLZ, São Josemaria Escrivá , 47).

2. Mas a santidade divina veio até nós, mostrou-Se, não apenas na natureza criada: a santidade é um Homem verdadeiro, é Jesus Cristo, o Verbo feito carne. E Jesus não é apenas um exemplo distante e inalcançável de santidade: Ele é a santidade viva e presente no meio do mundo e da história, em todos os tempos. Jesus não é, apenas, mais um “justo” que viveu sobre a terra, ainda que o mais justo de todos: é o próprio Deus que se faz Homem e não recusa viver o drama humano e, o que é mais, não recusa fazer seu, assumir o drama de cada ser humano, o pecado de cada um de nós, para, em troca, nos oferecer a Sua vida divina.

Em Jesus, morto e ressuscitado, resplandece a vida eterna de Deus. E o seu Espírito Santo, derramado em nossos corações, permite que, por graça, também nós vivamos desta vida. A nós, sem merecimento algum da nossa parte, senão aquele de cooperarmos com o Senhor Jesus e o Seu Espírito, é-nos concedida a graça de viver por Cristo, com Cristo e em Cristo.

Como afirmava S. Josemaria: “Deus entrega o Seu Filho à morte. Jesus, o Filho Unigénito, abraça-se ao madeiro, no qual O haviam de justiçar , e o seu sacrifício é aceite pelo Pai. Como fruto da cruz, derrama-se sobre a humanidade o Espírito Santo. Na tragédia da Paixão consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana. A Semana Santa não pode reduzir-se a uma mera recordação, pois que nela se considera o mistério de Jesus Cristo, que se prolonga nas nossas almas: o cristão está obrigado a ser alter Christus, ipse Christus , outro Cristo, o próprio Cristo” ( Cristo que passa , 191-192).

Ou, tomando agora o trecho da Carta aos Romanos que escutámos como II Leitura: “se somos filhos, também somos herdeiros, herdeiros de Deus e herdeiros de Cristo; se sofremos com Ele, também com Ele seremos glorificados” ( Rom 8,17).

3. Contudo, a nós, cristãos, não é suficiente esta certeza íntima da vitória da santidade sobre o pecado; nem é suficiente a certeza de partilharmos com Jesus a Sua barca, que é a de Pedro. Porque a nós o Senhor manda, como outrora ao Pescador da Galileia: “Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca”. E nós havemos de nos encontrar disponíveis para, como o Apóstolo, respondermos: “sobre a Tua palavra, lançarei as redes”.

Se é certo que, como Pedro, não podemos ignorar a nossa condição de pecadores, não é menos seguro o convite que nos é dirigido por Jesus: “Não temas. Daqui em diante serás pescador de homens”.

Deixemos, uma vez mais, que as palavras de S. Josemaria nos ajudem a perceber esta missão que nos é confiada: “A nossa missão de cristãos é proclamar essa Realeza de Cristo; anunciá-la com a nossa palavra e com as nossas obras. O Senhor quer os seus em todas as encruzilhadas da Terra. A alguns, chama-os ao deserto, desentendidos das inquietações da sociedade humana, para recordarem aos outros homens, com o seu testemunho, que Deus existe. Encomenda a outros o ministério sacerdotal. À grande maioria, o Senhor quere-os no mundo, no meio das ocupações terrenas. Estes cristãos, portanto, devem levar Cristo a todos os ambientes em que se desenvolve o trabalho humano: à fábrica, ao laboratório, ao trabalho do campo, à oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e às veredas da montanha” ( Cristo que passa , 204-205).

Para nós que aqui nos reunimos, não é apenas motivo de festa celebrar a solenidade de S. Josemaria, recordando o seu exemplo de cristão e de sacerdote. É, igualmente, fonte de graças. A celebração dos santos, daqueles que nos precederam no labor quotidiano que constitui a vida cristã, faz recair sobre todos e sobre o próprio mundo as graças divinas que a sua vida de santidade, a sua união constante ao Senhor Jesus nos mereceu e continua, ao longo dos tempos, a fazer derramar abundantemente. Não hesitemos em pedi-las, reconhecendo que todas elas encontram em Deus a sua fonte inesgotável. E, ao mesmo tempo, agradeçamo-las: Gratias tibi, Deus, gratias tibi! – Graças Te sejam dadas a Ti, ó Deus, graças Te sejam dadas!