Moldando um mundo acolhedor

Susanne Kummer é cofundadora de AMAL, uma organização austríaca que ajuda na integração das famílias de imigrantes do Médio-oriente na Europa. Filósofa e filóloga, participou como palestrante principal do “Incontro Romano”, que em 2017 centrou os seus trabalhos sobre a forma como fazer do acolhimento algo fundamental para o mundo atual.

Susanne Kumer, cofundadora da AMAL, uma organização que ajuda na integração de imigrantes na Áustria

Quais os desafios concretos que encontramos ao acolher pessoas que chegam ao ocidente, em concreto à Europa, depois de viverem um período de muitas carências em países em guerra?

Acredito que o primeiro desafio para a integração na Áustria, e noutros países, é o idioma. O segundo é a incorporação no mundo do trabalho. Entre as pessoas que vêm de países como a Síria e o Afeganistão, há pessoas com nível académico e muitas outras que trabalham como operários, funcionários, vendedores.

Faz muita falta ajudá-los a encontrar na Áustria algo semelhante à sua profissão, na Alemanha ou noutros países..., ou a mudar de trabalho, ou facilitar-lhes a formação profissional adequada. Isto é um processo lento, talvez possa ser um pouco desesperante porque é necessário muito esforço para mudar de cultura, de idioma. Alguns já têm 40 ou 50 anos e é logico que seja difícil adaptarem-se e começar uma nova vida.

O desafio da integração cultural é que não é um processo unilateral. Exige que nós também comecemos a compreender como vivem, quais são as suas experiências

Outro grande desafio é a integração cultural, que não é um processo unilateral. Não se trata simplesmente de chegar a um novo país e pronto. O desafio é também que nós comecemos a compreender como vivem, quais as suas experiências... Costuma ser muito difícil a integração com as pessoas do país que os acolhe. Eles vivem no seu mundo árabe – ou dos países africanos – porque já conhecem as pessoas, falam a mesma língua, e o perigo é que comece a formar-se uma espécie de sociedade paralela.

Notamos ao longo deste tempo com a AMAL, que existem pessoas da Síria que dizem “há dois anos que moro na Áustria, mas nunca entrei na casa duma família austríaca, não sei como os austríacos vivem”. Vemos que, embora as pessoas se queiram integrar, existem barreiras, muros. E esses muros têm que se transformar em pontes, para que os refugiados que aqui moram possam conhecer pessoas do país que os acolhe e comecem uma relação pessoal com eles.

Nos países europeus há diversas atitudes. Uns dizem “já temos muitos problemas e dificuldades do dia-a-dia e não podemos assumir mais responsabilidades”. Mas ao mesmo tempo há muitas respostas solidárias, existe um enorme movimento de voluntariado. O que predomina ou predominará?

Acredito que não podemos ser ingénuos ou indiferentes diante desta situação. Trata-se de uma das maiores crises humanitárias do pós-Guerra. No entanto, parece-me que a Europa não tem as respostas adequadas para este movimento de pessoas que fogem da guerra ou que estão à procura de uma situação que lhe permita viver dignamente. Eu estou orgulhosa do meu país: A Áustria é um dos três países da Europa que tem recebido mais refugiados em proporção à sua população, ficando apenas atrás da Alemanha e da Grécia.

Durante a palestra foram muitas as questões levantadas pelas participantes do “Incontro Romano”.

Graças a Deus existe um enorme movimento de ajuda civil, de muitos cidadãos que sabem que o Estado não pode resolver tudo. Mas também há alguns que dizem que “essas pessoas vão ocupar os nossos empregos, os nossos benefícios sociais, e isso terá um peso económico”.

Por outro lado, está o encontro – que não tem que ser um confronto – com muçulmanos que têm uma identidade muito forte, numa Europa que tem as suas raízes cristãs enfraquecidas.

Este é um desafio para Europa, e eu vejo-o de modo muito positivo. Este momento histórico pode ajudar. Primeiro, para que as pessoas percebam a importância da contribuição de cada um. E segundo, que as pessoas abram os seus corações e procurem os que chegam. No nosso país, se os refugiados não forem procurados, não serão encontrados - estão em campos - e não são vistos, não são ouvidos. É necessário ir ao seu encontro para os ajudar, nas ruas, na cidade, nas escolas, nas paróquias... Vejo um movimento admirável das pessoas do meu país e de outros países que ajudam.

Qual foi a sua experiência mais enriquecedora na tarefa de ajudar as famílias imigrantes?

Algo que me impressionou é como as pessoas se aproximam quando se oferece o coração ao outro. Esta foi a experiência de uma família da Áustria que através da fundação AMAL, convidou uma família síria para almoçar em sua casa. No começo, os filhos austríacos estavam um pouco inseguros acerca do que fazer com os filhos da família síria: não sabiam como dialogar com eles. Mas no final, terminaram como irmãos mais velhos cuidando das pequenas meninas sírias.

“Olha, com esta família... já nos tornámos amigos, a tal ponto que quando eu tive que ir para o hospital e ficar lá durante duas semanas, sabes quem me visitou? A família da Síria”.

Estabeleceu-se entre eles uma verdadeira amizade. Encontram-se todos os meses, desenvolvem atividades juntos. A família austríaca também foi convidada para casa da família síria. É importante que permitamos ser amados pelos que vêm de longe, que eles nos possam oferecer algo. São muito hospitaleiros, querem-nos dar o que têm. A mulher austríaca ligou-me dois meses depois e disse-me: “Olha, com esta família... já nos tornámos amigos, a tal ponto que quando eu tive que ir para o hospital e ficar lá durante duas semanas, sabes quem me visitou? A família da Síria”.

Famílias austríacas e sírias reúnem-se para comer e passar um tempo juntos.

É algo muito pequeno, mas muito bonito de se ver, quando ouvimos a sua história, quando aceitamos ser amados por eles, quando estabelecemos boas relações. O Papa Francisco diz-nos o seguinte: os refugiados não são um número, nem uma massa, são pessoas com um rosto, com uma história e é preciso descobrir a história de cada pessoa.

Também impressiona ouvir o testemunho desses cristãos que tiveram que sair dos seus países, não somente por causa da guerra, mas também porque são perseguidos pela fé que professam. Devemos apreciar muito o seu testemunho, que nos dá lições impressionantes de amor, de perdão. Como o das mães que perdoam aos assassinos dos filhos. Os cristãos que vêm do Médio Oriente trazem uma riqueza enorme para a nossa Igreja, que talvez esteja um pouco “velha” aqui na Europa. Dão testemunho de fé e de amor, mesmo em momentos de tremendo sofrimento.

Quais são os benefícios de uma sociedade multicultural, inter-religiosa? Quais os perigos?

Conheço pessoas que me dizem que foram batizadas mas que nunca praticaram, e afirmam que essa situação acaba por ser um incentivo para aprofundar na sua própria religião cristã, porque não conhecem bem os conteúdos da fé. Por outro lado, quem chega à Europa, muçulmanos ou cristãos, diz que não esperava deparar com tanta indiferença à religião. Isto parece-me uma oportunidade: o encontro com pessoas que têm uma identidade religiosa muito profunda ajuda a repensar e a questionar-se pela própria religião.

O testemunho destes cristãos que tiveram que sair dos seus países, não somente por causa da guerra, mas também porque são perseguidos pela fé, é algo que nos dá lições impressionantes de amor, de perdão

Muitas vezes os muçulmanos têm uma falsa imagem do cristianismo. Eles identificam a cultura do Ocidente, com toda a sua decadência, consumismo, materialismo, com uma forte carga de sensualidade e hedonismo com o cristianismo. E surpreendem-se quando veem um cristão que se ocupa deles e que os ama como são. Esta é uma experiência que toca os seus corações e desperta um interesse pelo cristianismo.

Numa paróquia de Viena, que acolheu muitos muçulmanos da Síria e onde todos foram tratados com muito carinho, um dos jovens disse ao pároco: “São totalmente diferentes do que ouvimos falar sobre os cristãos, porque nos disseram que estão o tempo todo a beber álcool, a consumir drogas e às voltas com mulheres... mas o que vejo é muito diferente”.

O que é o cristianismo? Esta seria a pergunta do Oriente.

A senhora falou com jovens de vários países do mundo. Qual considera ser o papel dos jovens nesta tarefa de acolher quem vem de longe? Como são normalmente as reações dos mais jovens quando se confrontam com os desafios da integração?

Conversei com muitos voluntários e questionei-os sobre o motivo que os leva a ajudar. Uma rapariga contou-me, por exemplo, que quando dava aulas ou ajudava as crianças a fazer os trabalhos da escola e se apercebia do seu progresso, e como queriam aprender, sentia-se muito agradecida por tudo o que tinha recebido. Outro jovem dizia-me: “Os meus amigos perguntam-me como posso fazer isso tudo: estudar bem e ajudar os refugiados... Eu respondo-lhes: sabes? A solução é acordar um pouco mais cedo de manhã e com isso já temos mais tempo para ajudar os outros”.

Jovens do “Incontro Romano” prepararam aperitivos para acolher os participantes.

Muitos jovens talvez não tenham tido ainda a possibilidade de se aproximarem dessa experiência - de serem realmente necessários para outras pessoas. Vivemos num mundo rico, onde não é muito palpável perceber quantas pessoas se encontram em situações difíceis... Mas se eles se levantarem do sofá, se forem à rua, vão descobrir e experimentar que a sua ajuda é muito importante. Eu aconselharia que fossem até à sua diocese, à sua paróquia, às escolas e perguntassem em que é que podem ajudar: por exemplo, ensinar o idioma, facilitar diligências burocráticas, estar próximo... Ambas as partes, sem dúvida, serão muito beneficiadas.