Enamoramento: o papel dos sentimentos e das paixões (I)

Apaixonar-se é um sentimento de atração para com outra pessoa. O que experimentamos quando nos apaixonamos? Como ajuda a fé cristã a que o enamoramento conduza a uma vida feliz? Novo editorial sobre o amor humano.

O que significa enamorar-se

Os sentimentos são a forma mais habitual de experimentar a vida afetiva. E podemos defini-los da seguinte forma: são estados de ânimo difusos, que têm sempre uma tonalidade positiva ou negativa e que nos aproximam ou nos afastam daquilo que temos diante de nós. Tentarei explicar esta definição que proponho:

  1. A expressão estados de ânimo significa algo que é sobretudo subjetivo. A experiência é interior. É uma experiência que circula dentro da pessoa.
  2. A palavra difuso quer dizer que a informação que recebemos não é clara e precisa, mas antes vaga, etérea, pouco nítida, de perfis imprecisos e desfigurados, e que mais tarde se vai esclarecendo na perceção da pessoa.
  3. A tonalidade é sempre positiva ou negativa e, em consequência aproxima ou afasta, busca-se esse algo ou rejeita-se. Não há sentimentos neutros; o aborrecimento, que poderia parecer uma manifestação afetiva próxima da neutralidade, é negativo e está próximo do mundo depressivo. Todos os sentimentos têm duas faces, cara ou coroa: amor-ódio, alegria-tristeza, felicidade-infortúnio, paz-ansiedade, etc.

Apaixonar-se é um sentimento positivo de atração que se produz para com outra pessoa e que faz com que seja procurada com perseverança. Apaixonar-se é um facto universal e de grande importância, porque aí começa o amor, que, nada mais nada menos, dará lugar à constituição de uma família.

Se imaginássemos o enamoramento como uma certa "doença", deveríamos destacar dois tipos de sintomas. Uns sintomas iniciais, que são as suas primeiras manifestações.

Para uma pessoa se enamorar de outra é preciso que se produza uma série de condições prévias que são muito relevantes.

A primeira é a admiração, que pode dar-se de diversos modos: pela coerência da sua vida, pelo seu espírito de trabalho, pelas dificuldades que soube superar, pela sua capacidade de compreender, e assim por diante.

A segunda é a atração, que no homem é mais física e na mulher mais psicológica. Para o homem significa a tendência de a procurar, de se relacionar com ela de alguma forma, de estar com ela [1]. E isso vai levar a uma mudança de comportamento: o pensar muito nessa pessoa, ou dito de outro modo, tê-la na cabeça. O espaço mental vê-se invadido por essa figura que uma vez e outra dirige os pensamentos.

A seguir vêm duas características que me parecem especialmente interessantes. Primeiro o tempo psicológico torna-se mais rápido, o que significa que é tão agradável a sua presença que o tempo voa, tudo vai demasiado depressa: está-se a gosto com ele/ela e saboreia-se a sua presença. Mais tarde aparece a necessidade de compartilhar..., que desliza por uma rampa que termina na necessidade de realizar um projeto de vida em comum.

A sequência pode não ser sempre linear, ainda que vá surgindo aproximadamente deste modo, com as “nuances” que se queira. Tudo isso está presente de uma maneira ou de outra: admiração, atração física e psicológica, ter a mente “aprisionada”, o tempo subjetivo é favorável e quer-se compartilhar tudo com aquela pessoa.

Mas ainda não se revelaram no itinerário afetivo o que chamo os sintomas essenciais do enamoramento, aqueles que são raiz e fundamento de tudo o que virá depois, e que consiste em dizer a alguém: não entendo a vida sem ti, a minha vida não tem sentido sem que tu estejas a meu lado. Tu és parte essencial do meu projeto de vida. Em termos mais categóricos: necessito de ti. Essa pessoa torna-se imprescindível.

Apaixonar-se é a forma mais sublime do amor natural. É criar uma “mitologia” privada com alguém. Descobrir que se encontrou a pessoa certa com quem caminhar em conjunto pela vida. É uma espécie de revelação súbita que ilumina toda a existência [2]. Trata-se de um encontro único entre um homem e uma mulher que se detêm um diante do outro. Nesse parar, emerge a ideia central: compartilhar a vida, com tudo o que significa.

Os três principais componentes do amor conjugal

Pergunta o Papa Francisco: “Mas o que entendemos por «amor»? Apenas um sentimento, uma condição psicofísica? Sem dúvida, se for assim, não será possível construir sobre ele algo de sólido. Ao contrário, se o amor for uma relação, então será uma realidade que cresce, e como exemplo até podemos dizer que se constrói como uma casa. E a casa constrói-se, juntos, não sozinhos!... construir sobre a rocha do amor autêntico, do amor que provém de Deus” [3].

Um dos erros mais frequentes sobre o amor, consiste em pensar que este é essencialmente um sentimento e que esta é a dimensão fundamental do mesmo. Diz-se também que os sentimentos vão e vêm, movem-se, oscilam, estão sujeitos a muitas mutações ao longo da vida. Esta sentença conceptual percorreu quase todo o século XX.

“A passagem do enamoramento ao noivado e, depois, ao casamento requer várias decisões, experiências interiores. (…) Ou seja: o enamoramento deve tornar-se verdadeiro amor, envolvendo a vontade e a razão num caminho – o caminho do noivado – de purificação, de maior profundidade, de tal modo que realmente o homem inteiro, com todas as suas capacidades, com o discernimento da razão, a força da vontade, possa dizer: «Sim, esta é a minha vida»” [4].

Ninguém põe em dúvida que o amor nasce de um sentimento, que é enamorar-se e experimentar uma vivência positiva que convida a ir atrás daquela pessoa. Mas, para concretizar mais os factos que quero esmiuçar, vou às normas do Ritual Romano do Casamento [5], em que são feitas três perguntas de enorme importância:

  • É de vossa livre vontade... que pretendeis celebrar o vosso Matrimónio?
  • Estais decididos a…?
  • Estais dispostos a…?

Vou deter-me nestas três questões, porque aí reside o verdadeiro tríptico do amor, que é o fim e o ponto alto do namoro. Cada uma delas leva-nos numa direção bem precisa. Vejamo-lo.

A primeira pergunta, usa a expressão livre vontade. E há que dizer que querer é essencialmente um ato da vontade. Por outras palavras: no amor maduro a vontade põe-se em primeiro plano, e não é outra coisa que a determinação de trabalhar o amor pretendido. A vontade atua como um estilete que visa corrigir, polir, limar e cortar as arestas e as partes negativas da conduta, especialmente aquelas que afetam uma sã convivência. Vai ao concreto [6].

Por isso, a vontade deve representar um papel principal, sabendo além disso fazê-la atuar com alegria [7]. Isto bem o sabem os casais com muitos anos de vida em comum, com uma relação estável e positiva.

A segunda pergunta utiliza a expressão: Estais decididos? A palavra decisão refere-se a um exame, que não é outra coisa que um ato da inteligência. A inteligência deve agir antes e durante. Em primeiro lugar, sabendo escolher a pessoa mais adequada. O exame deve ser capaz de discernir se essa é a melhor das pessoas que conheceu, e a mais adequada para partilhar com ela toda a vida [8]. É a subtileza de ter os cinco sentidos bem despertos. Por isso, inteligência é saber distinguir o acessório do fundamental; é capacidade de síntese. Inteligência é saber captar a realidade na sua complexidade e nas suas conexões. E deve atuar também a posteriori, utilizando as ferramentas da razão para acompanhar com arte e habilidade a outra pessoa. O saber levar está repleto do que atualmente se chama inteligência emocional, que é a qualidade para conjugar, ajustar e unir a inteligência e a afetividade[9]: capacidade imprescindível para estabelecer uma convivência harmoniosa, equilibrada e, em última análise, feliz.

O terceiro ingrediente do amor do casal, embora o tenhamos mencionado no princípio, são os sentimentos. A pergunta seguinte feita no Ritual do casamento é: Estais dispostos? A disposição é um estado de espírito mediante o qual nos dispomos para fazer algo. Em sentido estrito isto depende da afetividade, que está formada por um conjunto de fenómenos de natureza subjetiva, que movem a conduta. E já se comentou, expressam-se de forma habitual através dos sentimentos[10].

O que significa isto e quais são as caraterísticas que aqui devem ocorrer? As pessoas, homem e mulher, devem casar-se quando estiverem profunda e mutuamente enamorados. Não se trata de sentir-se atraídos sem mais, ou que lhes agrade ou lhes chame a atenção. Tem que ser muito mais do que isso. Porquê? Porque se trata da opção fundamental. Não há outra decisão tão importante e que marque tanto a existência. Trata-se, nada mais nada menos, da pessoa que vai percorrer o itinerário biográfico ao nosso lado.

Viram-se muitos fracassos em pessoas que se casaram sem estar verdadeiramente enamorados, porque namoravam há vários anos, ou “porque chegou a hora de se casar”, ou porque muitos dos amigos mais próximos já estavam casados, ou para não ficar solteiro ou solteira. E assim poderíamos dar outras respostas inadequadas, se o matrimónio começar já com umas premissas pouco sólidas..., amores que nascem mais ou menos com materiais provenientes de destroços, mais cedo ou mais tarde, têm um mau prognóstico.

O amor conjugal deve estar estruturado com estas três notas: sentimento, vontade e inteligência. Tríptico forte, consistente. Cada um com o seu próprio espaço, que por sua vez se entrelaça na geografia do outro. “É uma aliança pela qual um homem e uma mulher constituem entre si uma comunhão de vida, ordenada ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole” [11]. Deste modo se pretende alcançar uma íntima comunidade de vida e amor, pois se trata de um vínculo sagrado, que não pode depender do arbítrio humano [12], porque está enraizado no sentido sobrenatural da vida, tendo Deus como seu principal artífice.

Enrique Rojas


[1] Há duas formas de atração: a beleza exterior, por um lado, e a beleza interior por outro. A primeira refere-se a uma certa harmonia que se reflete principalmente no rosto e em tudo o que ele representa; todo o corpo depende do rosto, ele é programático, anuncia a vida que a pessoa leva dentro. Depois está o corpo como um todo. Ambos os aspetos formam um binómio. O segundo, a beleza interior, há que descobri-la ao conhecer o outro, e consiste em ir adivinhando as qualidades que tem e que estão submersas, escondidas na sua cave e que é necessário ir captando gradualmente: sinceridade, exemplaridade, valores humanos sólidos, sentido espiritual da vida, etc.

[2] S. João Paulo II expressou isto com uma grande riqueza de argumentos no seu livro Amor e Responsabilidade. O amor conjugal é a opção fundamental, que implica a pessoa na sua totalidade.

[3] Papa Francisco, Discurso aos noivos que se preparam para o matrimónio, 14-II-2014.

[4] Bento XVI, Discurso no Parque de Bresso, Milão, na Festa dos testemunhos, 2-VI-2006.

[5] Cfr. Celebração do Matrimónio, 3ª ed., 1993, n. 60.

[6] É preciso saber distinguir, neste contexto, entre metas e objetivos. Ambos são conceitos que se assemelham, mas entre os dois há diferenças nítidas. As metas costumam ser gerais e amplas, enquanto os objetivos são mensuráveis. Por exemplo, numa relação matrimonial com dificuldades, a meta seria resolver as divergências mais ou menos imediatamente, o que realmente não costuma ser fácil de conseguir. Os objetivos, como veremos depois, são mais concretos: aprender a perdoar (e a esquecer) as recordações negativas, colocar as prioridades no outro, nas coisas de todos os dias, não guardar a lista de críticas do passado, etc. Quando se procura melhorar a vida matrimonial, é crucial ter objetivos bem definidos e procurar cumpri-los.

[7] O fim de uma educação adequada é a alegria. Educar é converter alguém em pessoa. Educar é cativar com valores que não passam de moda, e cujo resultado final é favorecer a alegria.

[8] D. Quixote, num momento determinado, diz uma máxima perfeita: “Aquele que acerta no casamento, já não lhe fica mais nada em que acertar”.

[9] Daniel Goleman foi o criador deste conceito. Remetemos aqui para seu livro A Inteligência Emocional. Hoje é um tema muito atual na psicologia moderna.

[10] Há quatro formas de viver a afetividade: sentimentos, emoções, paixões e motivações. Cada uma oferece uma perspetiva diferente. Os sentimentos constituem a vida suprema da afetividade, o modo mais comum de a viver. As emoções são estados mais breves e intensos, que além disso, são acompanhadas de manifestações somáticas (alegria transbordante, choro, aperto gástrico, falta de ar, dor no peito, etc.). As paixões têm uma intensidade mais elevada e tendem a obscurecer a compreensão ou a desfocar a ação da inteligência e os seus recursos. E, finalmente, as motivações, cuja palavra vem do latim motus: o que move, o que empurra a fazer algo. São o fim, e portanto também o motor do comportamento, a razão de se fazer isto e não aquilo. Entre as quatro existem estreitas relações.

[11] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, 1601 ss. Noutras páginas define-se o amor entre um homem e uma mulher como humano, total, fiel e fecundo. E se cada uma destas características se nos abrisse em leque, nos ofereceria toda a sua riqueza (vid. ibid., 1612-1617).

[12] É importante saber proteger o amor. Evitar aventuras psicológicas que levem a conhecer outras pessoas e iniciar com elas uma certa relação, talvez no princípio de pouco relevo, mas na qual se pode chegar a dar uma paixão, não desejada no princípio, mas após a passagem de um determinado período de tempo, pode ser uma séria ameaça para o casamento. Cuidar da fidelidade nos seus pormenores mais pequenos é fundamental. E isto tem muito a ver com a vontade, por um lado, e em ter uma vida espiritual forte, por outro.