Elogio da caridade

Disponibilizamos alguns parágrafos de um sermão de Santo Agostinho sobre a excelência da virtude da caridade, segundo a doutrina do Apóstolo S. Paulo.

Santo Agostinho,Sermão 350, 2-3.

O amor com que amamos Deus e o próximo resume em si toda a grandeza e profundidade dos outros preceitos divinos. É o que nos ensina o único Mestre celestial: “Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas”[1]. Portanto, se te falta tempo para estudar página por página toda a Escritura, ou para tirar todos os véus que cobrem as suas palavras e penetrar em todos os segredos das Escrituras, pratica a caridade, que abrange tudo. Assim possuirás o que aprendeste e o que não conseguiste decifrar. Com efeito, se tens caridade, já sabes um princípio que contém em si aquilo que talvez não entendas. Nas passagens da Escritura abertas à tua inteligência manifesta-se a caridade, e nos ocultos a caridade esconde-se. Se puseres em prática esta virtude nos teus costumes, possuis todos os oráculos divinos, quer os entendas ou não.

PERSEGUI A CARIDADE (...); SEM ELA, O MAIS RICO É POBRE, E COM ELA, O POBRE É RICO

Portanto, irmãos, persegui a caridade, doce e saudável vínculo dos corações; sem ela, o mais rico é pobre, e com ela, o pobre é rico. A caridade é que nos dá paciência nas aflições, moderação na prosperidade, coragem nas adversidades, alegria nas boas obras; ela oferece-nos um abrigo seguro nas tentações, dá hospitalidade generosamente aos desamparados, alegra o coração quando encontra irmãos verdadeiros e empresta paciência para suportar os traidores.

A caridade ofereceu sacrifícios agradáveis na pessoa de Abel; deu a Noé um refúgio seguro durante o dilúvio; foi a fiel companheira de Abraão em todas as suas viagens; inspirou a Moisés suave doçura no meio das injúrias e grande mansidão a David nas suas tribulações. Amorteceu as chamas devoradoras aos três jovens hebreus na fornalha e deu coragem aos Macabeus nas torturas do fogo.

A caridade foi casta no matrimónio de Susana, casta com Ana na sua viuvez e casta com Maria na sua virgindade. Em Paulo foi causa de santa liberdade para corrigir e em Pedro de humildade para obedecer; humana nos cristãos para se arrependerem das suas faltas, divina em Cristo para as perdoar. Mas que elogio posso eu fazer da caridade, depois de o ter feito o próprio Senhor, ensinando-nos pela boca do seu Apóstolo que é a mais excelente de todas as virtudes? Mostrando-nos um caminho de sublime perfeição, diz: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita”.
A caridade é paciente, é prestável, não é invejosa, não é arrogante nem orgulhosa, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará”[2].

Quantos tesouros a caridade encerra! Ela é a Escritura, a virtude das profecias, a salvação dos mistérios, o fundamento da ciência, o fruto da fé, a riqueza dos pobres, a vida dos moribundos. Pode-se imaginar maior magnanimidade do que morrer pelos ímpios, ou maior generosidade do que amar os inimigos?

A caridade é a única que não se entristece com a felicidade alheia, porque não é invejosa. É a única que não se ensoberbece na prosperidade, porque não é vaidosa. É a única que não sofre os remorsos da má consciência, porque não age irrefletidamente. A caridade permanece tranquila nos insultos; no meio do ódio, faz o bem; na cólera, tem calma; nas artimanhas dos inimigos, é inocente e simples; geme nas injustiças e expande-se com a verdade.

Imagina, se conseguires, uma coisa com maior fortaleza do que a caridade, não para vingar injúrias, mas antes para as deter. Imagina uma coisa mais fiel, não por vaidade, mas por motivos sobrenaturais, que fitam a vida eterna. Porque tudo o que sofre na vida presente é porque crê firmemente no que foi revelado sobre a vida futura: se tolera os males, é porque espera os bens que Deus promete no céu; por isso a caridade não acaba nunca.

Procura, pois, a caridade, e meditando nela santamente, procura produzir frutos de santidade. E tudo quanto encontrares de mais excelente nela, e que eu não tenha notado, se manifeste nos teus costumes.


[1] Mt 22, 37-40.

[2] 1 Co XIII, 1-8.