Como viver a virtude cristã da pobreza?

Os cristãos, seguindo o exemplo de Jesus, estão chamados a viver a virtude cristã da pobreza. Muitas vezes não entendemos o que esta chamada significa ou implica. Para muitos apresenta-se como uma tarefa árdua, incompatível com os tempos que vivemos, ou como uma virtude negativa que tira mais do que dá. Iremos tratar algumas das possíveis questões para ajudar a redescobrir a riqueza da virtude cristã da pobreza.

Chaves para viver a virtude cristã da pobreza

Sumário:

  1. Bem-aventurados os pobres de espírito...
  2. O que é e como viver a virtude cristã da pobreza?
  3. Pobreza de espírito e desejo de felicidade
  4. A pobreza é compatível com a riqueza material?
  5. Como viveram a pobreza os primeiros cristãos?
  6. Como viver esta virtude no século XXI?

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1. Bem-aventurados os pobres de espírito...

No sermão da montanha, Jesus proclama as “Bem-aventuranças”, aquelas promessas de felicidade em circunstâncias onde aparentemente ela não existe. Não é uma casualidade que a primeira que Jesus pronuncia seja “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5, 3). Esta é a chave para viver todas as outras bem-aventuranças. Na pobreza de coração está o segredo da vida plena do cristão. “Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). É necessário mergulhar na profundidade destas palavras para penetrar na essência do Evangelho e de Jesus, e assim nos incorporarmos na lógica cristã.

Textos de S. Josemaria para meditar

O que é preciso para conseguir a felicidade não é uma vida cómoda, mas um coração enamorado.

(Sulco, n. 795)

Muitos sentem-se desgraçados, precisamente por terem demasiado de tudo.

Os cristãos, se verdadeiramente se portam como filhos de Deus, podem passar incomodidades, calor, fadiga, frio… Mas nunca lhes faltará a alegria, porque isso – tudo, afinal! – o dispõe ou o permite Ele, que é a fonte da verdadeira felicidade.

(Sulco, n. 82)


2. O que é e como viver a virtude cristã da pobreza?

A pobreza é a virtude que harmoniza e ordena a relação da pessoa com os bens. É parte da virtude cardeal da temperança pois, ao vivê-la, procura-se gozar dos prazeres sensíveis de maneira adequada para que estes não nos desviem do nosso fim, que é a verdadeira felicidade. A pobreza é atraente e positiva porque convida a aspirar a um bem maior e a não se deixar seduzir por outros bens menores que impedem de amar de verdade. Em conclusão, é a virtude que nos permite ter um coração livre para amar.

É para Cristo, modelo de todas as virtudes, que olham todos os cristãos para aprender a viver a pobreza. O Novo Testamento revela-nos a um Deus que, sendo Rei e Senhor de toda a criação, escolhe a pobreza desde o seu nascimento num estábulo até à sua morte na Cruz. Ao meditarem na sua vida, os homens de todos os tempos redescobrem com atualidade a chamada pessoal a viver esta virtude, já que a pobreza não se pode medir com parâmetros externos, mas procurando no coração as amarras que nos impedem de seguir generosamente o Senhor.

Textos de S. Josemaria para meditar

Para chegar a Deus, Cristo é o caminho; mas Cristo está na Cruz, e, para subir à Cruz, é preciso ter o coração livre, desprendido das coisas da terra.

(Via-Sacra, X estação)

Desapega-te dos bens do mundo. – Ama e pratica a pobreza de espírito. Contenta-te com o que basta para passar a vida sóbria e temperadamente.

– Se não, nunca serás apóstolo.

(Caminho, n. 631)


3. Pobreza de espírito e desejo de felicidade

«O único bem é amar a Deus com todo o coração e ser aqui em baixo pobre de espírito» (Sta. Teresa de Lisieux)

Quando se reduz a virtude ao sacrifício, carência ou desprendimento, de alguma maneira reduzimos a virtude aos meios que se põem para alcançar o verdadeiro fim, que é ter liberdade para amar de verdade, aspiração de felicidade de todos os homens.

«A pobreza de coração é no final de contas a liberdade de receber tudo gratuitamente, sem que o nosso “ego”, as suas pretensões e reivindicações, se interponham. Supõe uma morte de si mesmo, um desprendimento radical, mas que conduz a uma transparência perfeita à ação de Deus, à alegria de receber e de dar livremente.

Contudo, é necessário muito tempo e uma longa luta para chegar a esta liberdade. Exige uma transformação em profundidade da nossa existência, do nosso modo de nos relacionarmos com Deus, connosco próprios e com os outros»[1].

Textos de S. Josemaria para meditar

Na economia da salvação, o nosso Pai cuida de cada alma com amor e delicadeza: “cada um recebeu de Deus o seu próprio dom; uns de um modo, outros de outro”. Portanto, podia parecer inútil cansarmo-nos, tentando apresentar ao Senhor algo de que Ele precise; dada a nossa situação de devedores que não têm com que saldar as dívidas, as nossas ofertas assemelhar-se-iam às da Antiga Lei, que Deus já não aceita: “Tu não quiseste os sacrifícios, as oblações e os holocaustos pelo pecado, nem te são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei”.

Mas o Senhor sabe que o dar é próprio dos apaixonados e Ele próprio nos diz o que deseja de nós. Não lhe interessam riquezas, nem frutos, nem animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo de íntimo, que havemos de lhe entregar com liberdade: “dá-me, meu filho, o teu coração”. Vedes? Se compartilha, não fica satisfeito: quer tudo para si. Repito: não pretende o que é nosso; quer-nos a nós mesmos. Daí – e só daí – advêm todas as outras ofertas que podemos fazer ao Senhor.

Demos-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos bens materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que vêm de Deus. Mas o Senhor dispôs que as utilizemos sem deixar que o coração fique preso a elas, pelo contrário, tirando delas proveito para bem da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os toma como ídolos e se prostra diante deles; mas tornam-se nobres quando os tornamos instrumentos para o bem nalguma atividade cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens económicos, como quem procura um tesouro; o nosso tesouro está aqui, deitado num presépio; é Cristo e nele se há de concentrar todo o nosso amor, porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.

(Cristo que Passa, n. 35)


4. A pobreza é compatível com a riqueza material?

Viver a virtude da pobreza é compatível com possuir bens materiais, já que não se aspira à pobreza material, mas à pobreza de coração, de espírito. Trata-se de estar desprendido das coisas materiais, do domínio sobre as coisas. Deus deseja que lhe entreguemos o nosso coração, não coisas nem ações meramente externas. Por isso não se trata simplesmente de não ter, mas de não por o coração no que se tem. Quando os bens ocupam o lugar de meios e não fins na vida do homem, então o coração permanece livre para querer a Deus e aos outros. Certamente esta liberdade de coração exige ter uma relação saudável e ordenada com as coisas, e isto consegue-se vivendo as virtudes da temperança, a ordem, o desprendimento, o senhorio e a generosidade, entre outras.

Textos de S. Josemaria para meditar

A verdadeira pobreza não consiste em não ter, mas em estar desprendido, em renunciar voluntariamente ao domínio sobre as coisas.

– Por isso há pobres que realmente são ricos. E vice-versa.

(Caminho, n. 632)


5. Como viveram a pobreza os primeiros cristãos?

No Evangelho, vemos como Jesus insiste na virtude da pobreza, como Ele próprio a vive e dá importância a que os cristãos a vivam também. O Papa Francisco ensina que «quando o Senhor envia os seus setenta e dois discípulos, envia-os “na pobreza”, dá-lhes conselhos sobre a pobreza». É «a pobreza do discípulo: o caminho do discípulo, o Senhor quer que seja pobre». Depois o Papa sugere «três formas, três modos de viver a pobreza na vida dos discípulos, pobrezas diferentes, três etapas – podemos dizer – de pobrezas diferentes». «A primeira pobreza é: separação do dinheiro, da riqueza», desprendimento dos bens materiais que, apesar de bons em si mesmos, podem ocupar excessivo espaço no coração. O Senhor envia os seus discípulos a pregar sem bolsa, nem alforge, nem sandálias. «A condição para começar o caminho do discipulado é a pobreza» como vemos no caso do jovem rico que, escutando a chamada de Jesus, «não pode segui-lo porque tinha tantas riquezas e o seu coração estava apegado a elas». «O segundo, receber humildemente as perseguições, tolerar as perseguições», como as toleraram os primeiros cristãos e outros tantos cristãos atualmente de modos diversos. E o terceiro modo é a «pobreza da solidão, do abandono: quando o discípulo, que saiu com tanta força para pregar ao Senhor, também tolerou as perseguições, no final da vida sente-se abandonado: abandonado por todos». E isto sucedeu ao próprio Cristo, abandonado por todos na Cruz.

«A pobreza como caminho do discípulo» insiste o Papa. Sim, «o discípulo, pobre, porque a sua riqueza é Jesus. Pobre, porque não está apegado à riqueza: primeiro passo. Pobre, porque é paciente perante pequenas ou grandes perseguições: segundo passo. Pobre, porque entra neste estado de ânimo no final da vida que nos recorda o de S. Paulo: abandonado». E «o próprio caminho de Jesus que termina com essa oração ao Pai: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”»[2].

Textos de S. Josemaria para meditar

Eu te vou dizer quais são os tesouros do homem na Terra, para que os não desperdices: fome, sede, calor, frio, dor, desonra, pobreza, solidão, traição, calúnia, cárcere…

(Caminho, n. 194)


6. Como viver esta virtude no século XXI?

Assim como os primeiros cristãos viviam a virtude da pobreza segundo as circunstâncias específicas da sua época, nós estamos atualmente chamados a fazer o mesmo.

O Papa Francisco ilumina-nos com as palavras seguintes: «As Bem-aventuranças estão dirigidas aos pobres, aos aflitos, a quantos têm fome de justiça. É uma mensagem contracorrente. Na verdade, o mundo diz que para ser feliz é preciso ser rico, poderoso, sempre jovem e forte, ter fama e sucesso. Jesus inverte estes critérios e faz um anúncio profético – e esta é a dimensão profética da santidade –: a verdadeira plenitude de vida é alcançada seguindo Jesus, praticando a sua Palavra. E isto significa outra pobreza, ou seja, ser pobre dentro, esvaziar-se a si próprio para dar lugar a Deus. Quem se considera rico, bem-sucedido e seguro, baseia tudo em si próprio e fecha-se a Deus e aos irmãos, enquanto aqueles que sabem que são pobres e não são autossuficientes permanecem abertos a Deus e ao próximo. E encontram a alegria. As Bem-aventuranças, então, são a profecia de uma nova humanidade, de uma nova forma de viver: fazer-se pequeno e confiar-se a Deus, em vez de emergir sobre os outros; ser manso, em vez de procurar impor-se; praticar a misericórdia, em vez de pensar apenas em si próprio; comprometer-se com a justiça e a paz, em vez de alimentar, até com conivência, injustiça e desigualdade. A santidade é acolher e pôr em prática, com a ajuda de Deus, esta profecia que revoluciona o mundo»[3].

Textos de S. Josemaria para meditar

“Anuncia-se o Evangelho aos pobres” (Mt. 11, 5), lemos na Escritura, precisamente como um dos sinais que dão a conhecer a chegada do Reino de Deus. Quem não amar e viver a virtude da pobreza não tem o espírito de Cristo. E isto é válido para todos, tanto para o anacoreta que se retira para o deserto, como para o cristão corrente que vive no meio da sociedade humana, usando dos recursos deste mundo ou carecendo de muitos deles.

(Entrevistas a S. Josemaria, n. 110)

Fazendo-me eco de uma expressão do Profeta Isaías – “discite benefacere” (Is 1, 17) –, agrada-me dizer que é preciso aprender a viver toda a virtude, e talvez a pobreza muito especialmente. É necessário aprender a vivê-la para que não fique reduzida a um ideal sobre o qual se pode escrever muito, mas que ninguém realiza seriamente. É preciso fazer ver que a pobreza é um convite que o Senhor dirige a cada cristão e que é – portanto – chamada concreta que deve moldar toda a vida da humanidade.

(Entrevistas a S. Josemaria, n. 110)


[1] Jacques Philippe, A felicidade onde não se espera.

[2] Francisco, Homilia, 18/10/2018.

[3] Francisco, Angelus, 01/11/2021.