Todos guardamos dentro de nós, como algo íntimo e familiar, uma série de memórias inesquecíveis. Mesmo que o tempo passe e deixemos de olhar para o nosso interior, elas permanecem lá, prontas a emergir no momento mais inesperado.
Talvez entre essas recordações tenhamos a sorte de encontrar momentos de confidência partilhados por uma mãe, um irmão ou uma avó, que nos revelaram um pouco do seu tesouro pessoal. É possível que tenha sido esse o cenário da primeira vez em que nos lembrámos de nos dirigirmos a Deus com as palavras que eles nos emprestaram. Ou então, foi anos mais tarde, quando um amigo ou uma circunstância fortuita nos abriu a porta ao diálogo íntimo com Deus.
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Fosse qual fosse o momento, não nos terá surpreendido quando, pela primeira vez, tomámos consciência de que é possível falar pessoalmente com Deus? E mais ainda... ouvi-l’O! Provavelmente pensámos então que uma relação pessoal, próxima, com Deus era algo reservado a pessoas vip, a indivíduos de uma categoria especial dentro da Igreja, mesmo que nos dissessem o contrário… Talvez ainda hoje o pensemos.
Mas essa possibilidade atraiu-nos, pois sabemos que não pode haver amizade como a d’Ele, que é o primeiro interessado em manter essa relação, e que só Deus pode preencher o anseio de plenitude do nosso coração.
O Evangelho conta-nos que certa vez os Apóstolos, talvez atraídos pelo modo como o seu Mestre rezava, pediram a Jesus: «Ensina-nos a orar» (Lc 11, 1). Não é difícil imaginar que, ao ouvirem pela primeira vez o Pai-Nosso, se tenham entusiasmado com a possibilidade de se dirigirem ao seu Pai Deus com tal confiança, quando antes nem sequer se consideravam dignos de pronunciar o Seu nome, dada a profunda reverência que os bons judeus tinham por Deus.
Partilhar a vida com Cristo
Séculos mais tarde, nos primórdios da Obra, São Josemaria também quebrou esquemas ao recordar, com o Evangelho na mão, o chamamento à vida contemplativa através da jornada habitual. Dessa forma, abriu horizontes a quantos se aproximavam do seu apostolado, enchendo de entusiasmo os primeiros de São Rafael com o convite a serem almas de oração: «Ao oferecer-te aquela História de Jesus, pus como dedicatória: “Que procures a Cristo. Que encontres a Cristo. Que ames a Cristo”. – São três etapas claríssimas. Tentaste, pelo menos, viver a primeira?»[1]. Muitos seguiram esse convite, percorrendo o caminho da sua vida cristã no meio do mundo, procurando permanecer sempre em diálogo com o Senhor.
Desde então, muitos de nós se aproximaram do espírito da Obra, atraídos por esta mensagem, desejosos de dar a cada instante da sua vida o sentido mais pleno, vivê-lo com Deus. Pessoas de todas as condições, movidas por um profundo anseio de viver uma vida plena e autêntica, muitas já desde a juventude[2], recorrem aos meios de formação cristã que a Obra oferece, em busca de orientação e alimento para a sua vida interior.
«Com o bom aproveitamento dos meios da obra de São Rafael, recebem uma formação doutrinal sólida, aprendem a ser almas de oração, a viver em presença de Deus no meio dos afazeres habituais de cada dia, a dar sentido cristão ao seu trabalho, intelectual ou manual, e a ter espírito de sacrifício»[3].
Assim, ao longo do dia, procuramos partilhar com o Senhor aquilo que temos pela frente: as nossas ocupações, os nossos projetos e inquietações, oferecendo-Lhe o que somos e temos, e pedindo-Lhe que inspire sempre as nossas obras e as sustente até ao fim[4], para que sejamos também testemunhas da luz de Cristo junto das pessoas que nos rodeiam.
Procuramos estar conscientes de que Deus está sempre atento a nós e corresponder ao Seu Amor, dando-Lhe graças muitas vezes ao dia, pedindo-Lhe perdão quando nos esquecemos d’Ele ou de quem somos para Ele, cultivando assim a presença de Deus.
Um diálogo autêntico
Contudo, tal como o próprio Jesus Cristo se retirava frequentemente a sós para falar com o Seu Pai Deus, também nós precisamos de «pequenos espaços de tempo, dedicados exclusivamente a estar com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de palavras, junto ao Sacrário sempre que possível, para agradecer ao Senhor essa espera – tão só! – desde há vinte séculos»[5].
Estes tempos de quietude são o espaço onde se desenvolve e cresce a nossa amizade com Jesus Cristo, através de uma conversa simples, na qual Lhe abrimos de par em par a nossa alma, sem medos, conscientes de estar diante de Quem mais e melhor nos ama, e certos de que Ele já habita no nosso interior para nos animar, iluminar e infundir a Sua graça em cada momento.
Nestes tempos de oração, podemos experimentar essa proximidade de Jesus Cristo e descobrir que é Ele próprio quem deseja preencher cada vez mais o nosso coração, para nele derramar todo o Seu amor, dilatá-lo e nele acolher muitas pessoas.
Infelizmente, sabemos bem que não é assim tão fácil fazer oração e, quer estejamos no início do caminho, quer já tenhamos percorrido um bom trecho, mantemos sempre o desejo de aprender a fazê-la melhor. Talvez nos ajude parar um pouco para refletir sobre o modo como rezamos, ou sobre como gostaríamos que fossem esses diálogos de amizade com Ele.
Um bom ponto de partida pode ser pensar em algum assunto que, naquele momento, ocupe o nosso coração. Assim falamos da nossa vida: o que nos entusiasma, o que nos preocupa, o que temos entre mãos. Pode acontecer que haja algo que nos corroa por dentro e, no entanto, falemos com Ele em “conversa fiada”, talvez por nos faltar confiança de que a Deus realmente importa tudo o que é nosso, ou por receio de enfrentar a complexidade da própria vida.
Pode dar-se o caso de não sabermos bem como dialogar com o Senhor acerca desse ou de outros assuntos. Pode ajudar-nos ter presente que Deus está sempre do nosso lado e que tudo o que é nosso Lhe importa. Por isso, com simplicidade, podemos dizer-Lhe: Senhor, o que me preocupa é isto, que fazemos? Onde estás Tu aqui? Ou então, contar-Lhe o que vivemos, as pequenas dificuldades que encontrámos e como as enfrentámos, perguntando-Lhe ao mesmo tempo o que nos diz Ele acerca de tudo isso ou do que temos pela frente, procurando ver tudo com o olhar de Deus.
O Senhor fala-nos através da Sagrada Escritura, dos ensinamentos dos pastores da Igreja e dos santos, mas também por meio dos acontecimentos de cada dia. Por isso, em cada momento de oração é importante estarmos atentos, abertos para escutar Deus e compreender a Sua ação na nossa existência, dispostos a “complicar” a nossa vida, pensando em como encarar a realidade de um modo mais cristão, de acordo com a nossa própria identidade de filhos de Deus.
No Evangelho, o Senhor convida-nos a ser audazes e corajosos, e a oração é um ótimo lugar para iniciar esta transformação da mente e dos sentidos. Fala-se assim do «combate da oração»[6], pois nesses momentos – com a graça de Deus – podemos ousar escutar, descobrir e entrar mais profundamente no coração de Deus, onde encontraremos os Seus sonhos para nós e connosco, não de modo teórico ou abstrato, mas real, comprometendo-nos com Ele a lutar num ponto concreto que sabemos que devemos mudar, algo pequeno que Ele espera que Lhe entreguemos ou que sabemos que nos fará bem a nós ou àqueles que temos perto, certos de que, como Pai, nos acompanha, nos dá a Sua força e nos olha com compreensão e carinho.
Pode ajudar-nos contemplar o exemplo da nossa Mãe: quando o Evangelho nos diz que «guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração» (Lc 2, 19), indica-nos que estava habituada a interrogar-se sobre o significado do que lhe acontecia, como poderia isso aproximá-la de Deus, o que lhe pedia através dessas circunstâncias em que se encontrava. Podemos, pois, aprender d’Ela a cultivar essa disposição habitual de escuta, de descobrir o sentido das coisas, o modo de colaborar nos planos de Deus, e tudo isto com uma escuta ativa e com o profundo desejo de aproveitar todas as oportunidades para amar, para dizer que sim a Deus com confiança.
O momento de escutar Deus
É frequente que, por vezes, seja fácil apercebermo-nos da presença de Deus, por exemplo diante de uma experiência muito positiva ou em momentos de meditação. Noutras ocasiões, porém, será difícil “escutar Deus”. Que fazer então? Uma primeira questão é perguntar-nos por que razão nos custa ouvi-l’O nesses momentos, pois é possível que – por inúmeras razões: agitação, acumulação de tarefas, algum descuido, etc. – nos falte a disposição adequada para nos deixarmos interpelar pelo Senhor.
Esse estado interior pode mesmo refletir-se nas nossas relações com os outros, manifestando-se numa certa dificuldade em escutar. Por isso, podemos perguntar-nos: como procuro, habitualmente, escutar aqueles que tenho por perto? Não será que pretendo escutar Deus quando, neste momento, nem sou muito capaz de escutar os outros? É assim que nos aconselha o Papa Leão: «É importante que todos nós aprendamos a escutar cada vez mais, a entrar em diálogo. Em primeiro lugar, com o Senhor: escutar sempre a Palavra de Deus. Além disso, escutar também os outros: saber construir pontes, saber escutar para não julgar, não fechar as portas, pensando que possuímos toda a verdade e que mais ninguém nos pode dizer nada»[7].
Este é um bom caminho para habituar o nosso ouvido à escuta: evitar ficarmos fechados em nós mesmos e nas nossas ideias, evitar ceder ao ruído interior excessivo provocado pela hiperatividade em que vivemos, ou pela saturação de inputs que recebemos diariamente através das redes sociais, da música, dos jogos, etc.
Neste sentido, se aspiramos a ter vida de oração, é necessário educar e treinar os nossos sentidos externos e internos para despertá-los e para que nos conduzam à união com Deus. Para isso contribui também cultivar o silêncio interior, com boas leituras (quer de espiritualidade, quer literárias), a contemplação da natureza, a descoberta da beleza nas pequenas coisas, e o não pretender encher todo o tempo com atividade.
O Espírito Santo habita em nós e, por isso, precisamos de encontrar modos para que, no espaço interior da nossa alma, possamos acolher as Suas inspirações e, assim, escutar a voz de Deus.
Suponhamos que já estamos a empregar esses meios… Como podemos agora ouvir o que Deus nos quer dizer? Ainda que Deus fale como quer e quando quer, da nossa parte podemos recorrer a um recurso essencial: a Palavra de Deus! Este é um modo privilegiado de conhecer a vontade de Deus. Recorrer ao testamento que Ele nos deixou, por meio dos evangelistas, é o principal ensinamento da Igreja, pois «que é a Sagrada Escritura senão uma carta de Deus omnipotente à sua criatura?»[8].
Não há melhor guia para a oração e para a própria vida do que a Vida de Jesus Cristo. «Ao abrires o Santo Evangelho pensa que não só tens de saber o que ali se narra – obras e ditos de Cristo – mas também tens de vivê-lo. Tudo, cada ponto relatado, foi recolhido, pormenor a pormenor, para que o encarnes nas circunstâncias concretas da tua existência. […] Nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida»[9]. Se vamos para a oração com o desejo de cultivar a nossa amizade com Jesus Cristo, nada nos ajudará tanto a conhecê-l’O e a dar-nos e identificar-nos com Ele, como a leitura e meditação do Evangelho.
Naturalmente, consoante o estado da nossa alma, pode ser conveniente variar o modo de rezar, se a oração nos parecer difícil, monótona, ou se nos custar mais usar a imaginação ou integrar o ruído interior que por vezes carregamos.
Também ajudará permanecer em atitude de adoração, dar graças por tantos dons, ler algum artigo ou livro de espiritualidade sobre um tema que nos atraia, saborear alguma oração vocal como o Pai-Nosso, pedir-Lhe pelas nossas preocupações ou necessidades, ou simplesmente estar a sós com Quem sabemos que nos ama[10], olhando para o Sacrário – que Ele nos veja a procurá-l’O – manifestando-Lhe assim quanto O amamos e que não O abandonamos à primeira dificuldade. Em qualquer caso, o Senhor convida-nos a não estagnarmos, a não nos conformarmos, pois deseja aprofundar a intimidade connosco; por isso, a oração está chamada a ser algo vivo.
Justamente no trabalho de São Rafael contamos com um meio orientado a ensinar-nos a ser almas de oração: as meditações. Estes tempos de oração acompanhados pela pregação de um sacerdote, aos quais podemos assistir semanalmente, podem muito bem guiar a nossa oração pessoal, abrir-nos horizontes, ensinar-nos a entrar nas cenas do Evangelho, etc., ainda que nunca substituam o esforço que temos de fazer nós mesmos, pois a oração, no fim de contas, é um diálogo de tu a tu, no silêncio do nosso coração.
A oração, uma necessidade vital
No conjunto dos meios de formação que há na Obra, a oração pessoal é a chave para que tudo o que recebemos penetre e frutifique na nossa alma: é nela que nos detemos a falar com o Senhor sobre o que ouvimos no círculo, para o aplicar à nossa vida; aí preparamos as nossas conversas de direção espiritual, e lá voltamos para tornar próprios os conselhos que nos foram dados; é da oração que nasce o nosso desejo de corresponder ao Senhor, sendo mais generosos através das coletas, dando do nosso tempo nas visitas aos pobres ou na catequese; é aí também que se acende o nosso desejo de levar outras pessoas a aproximarem-se d’Ele, e assim por diante.
Pouco a pouco, a oração torna-se assim numa necessidade vital, por ser expressão da amizade com Jesus Cristo, a ponto de sentirmos que, quando a abandonamos, o resto não corre bem, pois é na oração que se renova a missão que o Senhor nos confia, e por isso ela é o motor da nossa vida. Quando nos deixamos guiar por Ele, ajuda-nos «a crescer até nos tornarmos numa “carta de Cristo” (2Cor 3, 3) uns para os outros – dizia o Papa Leão –. E é exatamente assim: somos tanto mais capazes de anunciar o Evangelho quanto mais nos deixamos conquistar e transformar por ele, permitindo que a força do Espírito nos purifique no íntimo, torne simples as nossas palavras, honestos e transparentes os nossos desejos, generosas as nossas ações»[11].
[1] São Josemaria, Caminho, n. 382.
[2] cf. Francisco, Audiência geral, 13/06/2018.
[3] São Josemaria, Cartas II, Carta 7, n. 5.
[4] Oração tradicional recolhida na oração coleta da Missa da quinta-feira depois das Cinzas; São Josemaria incorporou-a às preces da Obra.
[5] São Josemaria, Cristo que passa, n. 119.
[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 2726.
[7] Leão XIV, Homilia, 11/05/2025.
[8] São Gregório Magno, Carta a Teodoro, médico do Imperador, Ep. V, 46 (CCL 140, 339).
[9] São Josemaria, Forja, n. 754.
[10] cf. Santa Teresa de Jesus.
[11] Leão XIV, Homilia na Celebração Eucarística e tomada de posse na Cátedra Romana como Bispo de Roma, 25/05/2025.