Acerca do bom samaritano

​O Papa Francisco publicou recentemente a encíclica "Fratelli tutti" sobre a fraternidade universal e a amizade social. O texto que apresentamos aprofunda o sentido do segundo capítulo: um comentário sobre a parábola do Bom Samaritano.

O Papa Francisco publicou recentemente a encíclica Fratelli tutti sobre a fraternidade universal e a amizade social. O segundo capítulo é um comentário sobre a parábola do Bom Samaritano que, como afirma o pontífice, "se expressa de tal maneira que qualquer um de nós se pode deixar interpelar por ela" [1] e que emerge como chave de leitura de todo o documento.

As linhas seguintes são um resumo de um estudo [2] publicado no número de dezembro de 2018 da revista Scripta Theologica, onde a filósofa Ana Marta González comenta a parábola à luz de dois textos: a Salvifici Doloris de S. João Paulo II e uma carta do Beato Álvaro dirigida aos fiéis do Opus Dei, escrita em janeiro de 1993.

Uma pergunta decisiva

A parábola encontra-se no capítulo 10 do Evangelho segundo S. Lucas. O escritor sagrado apresenta-nos um mestre da lei que, levantando-se, dirige a Jesus uma pergunta decisiva: «Mestre, que devo fazer para obter a vida eterna?» [3]. Não deixa de ser surpreendente que, em vez de dar uma resposta rápida ou convencional, o Rabino de Nazaré convide o seu interlocutor para o diálogo fazendo, por sua vez, outra pergunta: “O que está escrito na Lei? Como a lês?” O levita citou algumas palavras tiradas do livro do Deuteronómio: «"Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente, e ao teu próximo como a ti mesmo." Jesus disse-lhe: “–Respondeste bem: faz isso e viverás”. Mas ele querendo justificar-se, disse a Jesus: –E quem é o meu próximo?"»[4].

O que se segue então é uma narrativa cuja fecundidade silenciosa continua até hoje. Na sua aparente simplicidade, a parábola do Bom Samaritano transmite uma mensagem excecionalmente profunda, que atingiu as consciências e desencadeou autênticas mobilizações espirituais, nas quais a experiência religiosa se cristalizou em expressões éticas, pessoais e institucionais, sem as quais não entenderíamos a nossa cultura.

A assombrosa fecundidade dessa narrativa dificilmente poderia explicar-se com uma interpretação unilateral, que incidisse apenas nos aspetos éticos, desvinculados dos religiosos, ou nos religiosos, desvinculados dos éticos. No entanto, para perceber isso, é necessário ir além de uma visão puramente ritualística da religião e considerar a forma como a ética está presente no próprio cerne da experiência religiosa, o que não raras vezes significa também considerar a dimensão religiosa implícita na experiência ética.

Neste sentido, a parábola serve como pedra de toque de uma religiosidade autêntica, capaz de reconhecer a presença do Deus transcendente no outro que vem ao meu encontro, mais do que no cumprimento de certos formalismos rituais.

É significativo que a passagem seja precedida de uma pergunta por parte do doutor da lei, com a qual ele, pelo menos aparentemente, procura compreender melhor o mandato de amor ao próximo prescrito na lei de Deus (v. 27). “E quem é o meu próximo?”. É esta, com efeito, a pergunta que, como realça João Paulo II, dá origem à narrativa (Salvifici Doloris, n.28), e que, como ele mesmo assinala, não deve ser dissociada daquela outra passagem onde, referindo-se ao juízo final , o próprio Jesus se identifica com qualquer pessoa que tem fome, sede, está nu, preso ou doente. Igualmente, poderia citar-se S. João: "Se alguém diz 'eu amo a Deus' e odeia o seu irmão, é um mentiroso, porque quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê" (1 Jo 4,20).

Mudança de perspetiva

Jesus responde de maneira singular à pergunta do doutor da lei, pois, em vez de dar uma resposta fechada, transfere-a novamente, como pergunta aberta, ao seu interlocutor, que se vê interpelado diretamente. Assim, após descrever as várias reações do sacerdote, do levita e do samaritano ao homem espancado, Jesus dirige-se novamente ao doutor da lei e pergunta-lhe: “Qual destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?”[5]. É o seu interlocutor quem deve responder pessoalmente, depois de ter ouvido e compreendido, também pessoalmente, a mensagem implícita na narrativa. E ele assim faz: "Ele respondeu: “Aquele que usou de misericórdia para com ele." Jesus disse-lhe: “Vai e faz tu o mesmo”»[6].

Aqui vemos que a resposta a uma pergunta aparentemente simples, como quem é o próximo, não passa pelos modos habituais. Jesus não permite que o seu interlocutor se transforme em simples espectador, talvez juiz, da sua resposta, porque a resposta à pergunta do próximo não é compatível com uma atitude teórica desse estilo, mas exige um compromisso prévio por parte de quem faz a pergunta, um compromisso que começa com o reconhecimento de que a narrativa impõe uma mudança de perspetiva, um abandono da posição teórica, de puro espectador.

Compaixão e ação

Na Salvifici Doloris, João Paulo II sublinhou em primeiro lugar este aspeto: “Bom Samaritano é todo o homem que se detém junto ao sofrimento de um outro homem, seja qual for o sofrimento. Parar, neste caso, não significa curiosidade, mas disponibilidade. É como que o abrir-se de uma disposição interior do coração, que também tem a sua expressão emotiva. Bom Samaritano é todo o homem sensível ao sofrimento de outrem, o homem que « se comove » diante da desgraça do próximo. Se Cristo, conhecedor do íntimo do homem, põe em realce esta comoção, quer dizer que ela é importante para todo o nosso modo de comportar-nos diante do sofrimento de outrem. É necessário, portanto, cultivar em si próprio esta sensibilidade do coração, que se demonstra na compaixão por quem sofre. Por vezes esta compaixão acaba por ser a única ou a principal expressão do nosso amor e da nossa solidariedade com o homem que sofre.”(JP II, SD, n. 28).

O Papa ressaltava a necessidade de cultivar a sensibilidade do coração. Mas só isso também não é suficiente. Essa capacidade não é inerte, leva à ação. Assim - continuou João Paulo II - faz parte do amor, da autêntica solidariedade, ir, tanto quanto possível, para além do simples choque, procurando dar uma ajuda eficaz: “O Bom Samaritano da parábola de Cristo não se limita, todavia, à simples comoção e compaixão. Estas transformam-se para ele num estímulo para as ações que tendem a prestar ajuda ao homem ferido. Bom Samaritano, portanto, é, afinal, todo aquele que presta ajuda no sofrimento, seja qual for a sua espécie; uma ajuda, quanto possível, eficaz. Nela põe todo o seu coração, sem poupar nada, nem sequer os meios materiais. Pode-se dizer mesmo que se dá a si próprio, o seu próprio « eu », ao outro. Tocamos aqui um dos pontos-chave de toda a antropologia cristã. O homem « não pode encontrar a sua própria plenitude a não ser no dom sincero de si mesmo ». Bom Samaritano é o homem capaz, exatamente, de um tal dom de si mesmo. ”(JPII, SD, n. 28).

Desde o momento em que é formulada, a pergunta sobre o próximo - quem é o meu próximo - impõe uma tarefa tão alegre quanto infinita: a tarefa de tornar-se permeável às necessidades dos outros e aliviá-los, no que pudermos, de maneira eficaz. Por isso, não nos surpreendemos com as palavras com que Jesus encerra o episódio: “Vai e faz tu o mesmo” (Lc 10,37). Desta forma, a parábola convida-nos a rever o que consideramos, talvez com boa intenção, as nossas prioridades; convida-nos a examinar se poderia haver algo mais importante do que comover-se e deter-se, então, naquele lugar, para curar as feridas da pessoa maltratada.

A questão é que, sem grandes artifícios, expondo o contraste entre a conduta do sacerdote, do levita e do samaritano, a parábola interpela-nos sem rodeios, precisamente como pessoas que de repente se sentem envolvidas e desafiadas pela situação em que outras pessoas se encontram: com quem te identificas? Com o levita? Com o sacerdote? Com o samaritano? Imediatamente nos perguntamos o que acontece no coração de cada um para que passe ao largo ou, ao contrário, pare diante do homem maltratado; o que acontece no nosso coração. Deste modo, a parábola convida-nos a rever o que consideramos, talvez com boa intenção, as nossas prioridades; o outro, que vem ao meu encontro, desafia os meus conceitos e sacode a minha inércia, também a minha inércia moral.

"Dou-vos um mandamento novo”

No rosto do outro pode ver-se a imagem de Deus, de uma forma que torna relevante não só a linguagem da compaixão e da empatia, mas também a do mandato: não sem um certo paradoxo, o outro pode exigir aquele tipo de atenção que conta como amor, e que só pode ser dispensado livremente.

Há um dever de amar porque, como diz S. Paulo, “quem ama o próximo cumpre a lei” (Rm 13, 8). Porém, como observa Bento XVI, “o mandamento do amor só é possível porque não é uma mera exigência: o amor pode ser 'mandado' porque é dado de antemão” [7]. S. João é muito claro sobre o assunto: “Nisto consiste o amor: em não ter sido nós que amamos a Deus, mas em ter sido Ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros ”(1 Jo 4, 10-11). O interessante é que o inverso de "se Deus nos amou assim" torna-se "devemos amar-nos uns aos outros". Por outras palavras: o amor recebido de Deus deve ser dado aos outros.

Alma sacerdotal e mentalidade laical

Numa carta escrita aos fiéis do Opus Dei em janeiro de 1993, o Beato Álvaro del Portillo glosou a parábola do Bom Samaritano, para ilustrar a forma concreta como "alma sacerdotal" e "mentalidade laical" - duas expressões com que S. Josemaria definia a condição dos fiéis que vivem a sua vocação no meio do mundo - convergem na ação ordinária do cristão.

O Beato Álvaro convida a reconhecer a imagem de Cristo que continua presente em todos os que sofrem, com os quais ele se identifica, no homem maltratado. Mas, precisamente por isso, salienta que, não só aquele que sofre, mas também aquele que se compadece de forma operativa, é imagem de Cristo. Com efeito: meditando sobre o comportamento do samaritano, que “interrompeu o seu caminho, mudou os seus planos, dedicou o seu tempo, empregou os meios à sua disposição”, o Bem-aventurado Álvaro insistia: “o samaritano é também imagem de Cristo, modelo de alma sacerdotal, porque a dor não é só meio de santificação para quem a sofre, mas também para aquele que se compadece de quem sofre e se sacrifica para cuidar dele … ”(I.93, n. 19). Ao sublinhar que “a dor não é só meio de santificação para quem padece, mas também para quem se compadece”, D. Álvaro dá a entender que o protagonismo não está naquele que se faz próximo daquele que sofre, mas, sobretudo naquele que sofre. É com este que Cristo se identifica em primeira instância. É ele quem estabelece o padrão, o critério com o qual as personagens que passam ao seu lado irão ou não adquirir a sua condição de próximos, em última instância, atualizando a sua alma sacerdotal.

Uma inflexão significativa

Não reconheceremos Deus no próximo se não nos acercamos dele no seu sofrimento, se não nos deixamos comover pelas suas necessidades, de modo a modificar os nossos planos. Essa disposição é parte essencial e constitutiva da compaixão mostrada pelo samaritano. D. Álvaro, tal como João Paulo II, não se limita a destacar a necessidade de uma atitude compassiva, mas ressalta a necessidade de que tal atitude seja acompanhada de obras eficazes. Nesse contexto, ele introduz uma inflexão significativa: “Depois, após ter transportado pessoalmente o doente para a pousada, que faz o samaritano? Tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro e disse-lhe: cuida dele, e tudo o que gastares a mais eu te darei quando voltar (Lc 10,25): continua o seu caminho, porque está incumbido de outros deveres que não pode descurar. Não é um pedido de desculpas, não é uma fuga, não faria bem se ficasse mais tempo: seria sentimentalismo, seria negligenciar outras obrigações. A mesma caridade que o fez parar, leva-o a continuar o seu caminho. É Cristo quem nos dá o exemplo »(I.93, n. 19)

Neste texto, D. Álvaro recorda o horizonte microscópico e macroscópico da caridade quando, por um lado, assinala que «um cristão nunca pode fechar os olhos à indigência do próximo, seja ela moral ou material», pois «precisamente, o amor de Deus, no qual a caridade consiste principalmente, dilata as pupilas dos nossos olhos, permitindo-nos reconhecer Cristo em quem sofre, e acende no nosso coração o desejo de nos tornarmos obras de misericórdia, silenciosamente, sem aparato ”(I.93, n. . 19), levando a "instilar esse afã nas pessoas ao nosso redor, para que não se comportem de forma egoísta, virando as costas à dor, solidão ou miséria" (I.93, n. 19). Mas, por outro lado, e com a mesma energia, não cessa de nos convidar a reconhecer a projeção da caridade nas relações sociais, económicas e políticas, nas quais se desenrola, de facto, a nossa vida quotidiana: não apenas em encontros inesperados, onde as necessidades do outro se nos apresentam de forma clamorosa, mas nos encontros quotidianos, que constituem o tecido habitual da vida, deve dar-se espaço à caridade, deve - para usar a mesma linguagem - pôr-se em prática a alma sacerdotal: «O desejo de atender e remediar no que seja possível as necessidades materiais do outro, sem descurar as demais obrigações de cada um, como o bom samaritano, é algo característico da fusão entre alma sacerdotal e mentalidade laical. O que Deus nos pede, em primeiro lugar, é que santifiquemos o trabalho profissional e os deveres quotidianos. No meio dessas atividades, permite que encontremos a miséria e a dor de outras pessoas; então, um sinal claro de que desempenhamos as nossas tarefas com alma sacerdotal, é que não passemos ao largo, indiferentes; e um sinal não menos claro é que o façamos sem abandonar os outros deveres que devemos santificar ”(I.93, n. 20).

Caridade no próprio lugar

Como testemunha fiel da mensagem de S. Josemaria, que instituiu a expressão "mentalidade laical" para se referir à naturalidade com que os cristãos comuns, cidadãos e trabalhadores entre os seus iguais, com uma mesma forma de ver o mundo e as mesmas preocupações, infundem a luz da fé e da caridade nessas realidades humanas, o Beato Álvaro insiste no valor santificador da vida ordinária: o espírito cristão não se revela apenas nos casos extraordinários, mas também na vida quotidiana.

«Deus quer que permaneçais no vosso lugar. A partir daí, podeis realizar - estais realizando - uma obra colossal em benefício dos pobres e indigentes, daqueles que sofrem a ignorância, a solidão e a dor - em tantas ocasiões por causa da injustiça dos homens - porque ao procurar a santidade com todas as vossas forças, santificando o trabalho profissional e as relações familiares e sociais, contribuís para incorporar na sociedade o espírito cristão ”(I.93, n. 20).

Para deixar claro que esta mensagem não se dirige a uns poucos, mas a todos, seja qual for o seu lugar no mundo, afirma: «Não me refiro apenas aos que ocupam posições de destaque nos meios económico, político e social; Penso em todas as filhas e em todos os filhos do nosso Padre, que, ao converter o seu trabalho e todo o seu dia em oração - tarefas talvez sem brilho, como o trabalho e a vida da Virgem e de S. José -, estais colocando Cristo no cume das atividades humanas e Ele - não duvideis - atrairá a si todas as coisas, saciando a vossa fome e a sede de justiça ”(I.93, n. 20).

É toda a teologia do valor santificador do trabalho e a vida quotidiana, que S. Josemaria põe em relevo ao referi-la aos anos da vida oculta de Jesus em Nazaré, que se encontra nestas palavras. O facto de que a adequada interpretação da passagem requeira adotar uma perspetiva teológica não deve impedir-nos de reconhecer a estrutura ética que ela pressupõe, já sublinhada pela Doutrina Social da Igreja quando coloca o trabalho humano no coração de toda a questão social. Pois, em última análise, o que a interpretação de D. Álvaro desta parábola põe em relevo é a dimensão intrinsecamente solidária de todo o trabalho humano e, nessa medida, que a solidariedade expressa pelo bom samaritano não deve ficar reservada exclusivamente para situações extraordinárias, mas atualizar-se no dia a dia da profissão.

O exemplo do estalajadeiro

É precisamente este aspeto que se destaca de forma singular na parte final do seu comentário, que, mesmo fazendo eco da pregação do Fundador do Opus Dei, não deixa de ser original: «Meditemos também no final da parábola. Para cuidar do ferido, o samaritano também recorreu ao estalajadeiro. Que teria conseguido sem ele? O Nosso Padre admirava a figura deste homem - o dono da estalagem - que passou despercebido, fez a maior parte do trabalho e agiu profissionalmente. Ao contemplar o comportamento dele, entendei, por um lado, que todos podeis agir como ele, no exercício do vosso trabalho, porque qualquer trabalho profissional oferece de forma mais ou menos direta a oportunidade de ajudar os necessitados. Certamente é possível que exercendo a sua profissão, o médico, o advogado ou o empresário não feche os olhos às necessidades materiais que a lei não o obriga a resolver, porque sabe que a justiça e o amor o obrigam; do mesmo modo um trabalhador de escritório, um trabalhador manual ou um agricultor encontram uma forma de servir os outros, talvez no meio de grandes dificuldades pessoais. Sem esquecer - insisto mais uma vez - que o desempenho fiel do trabalho profissional já é um exercício de caridade para com as pessoas e a sociedade ”(I.93, n. 21).

O estalajadeiro, a quem o samaritano confia o homem ferido para que o "cuide", desempenha uma tarefa profissional impregnada de caridade. Com a sua ação, atualiza os laços éticos de solidariedade aos quais a vida social nos convoca e eleva-os a uma nova dimensão. Ouso dizer que, principalmente numa sociedade em que as interdependências são cada vez mais evidentes, perceber a dimensão ética intrínseca dos vínculos profissionais é de particular importância. Neste sentido, qualquer trabalho, realizado com fidelidade e com um olhar atento às necessidades das pessoas envolvidas, pode e deve ser considerado um verdadeiro exercício de solidariedade e de caridade. Além disso, a ajuda eficaz que, como víamos, caracteriza a autêntica compaixão, muitas vezes exige uma solução profissional, informada pelo mesmo princípio. Por isso mesmo - prossegue D. Álvaro - «a preocupação pelos pobres e pelos enfermos… deve encorajar a promover ou a participar nos trabalhos de assistência, com os quais se procura suprir de forma profissional, essas necessidades humanas e tantas outras». (I.93, n.21).

Com efeito: a caridade não só abre os olhos às necessidades dos outros, mas, como já dissemos, com as palavras de S. João Paulo II, move-se para remediá-las eficazmente, de uma forma que não perca de vista o bem da pessoa. O beato Álvaro exprime-o recorrendo a conceitos estabelecidos por S. Josemaria: a alma sacerdotal que anima todo o cristão que vive no meio do mundo e aí realiza um trabalho profissional, deve motivá-lo a reconhecer as necessidades dos outros e a contribuir para a sua solução com a mentalidade laical e profissional que lhe é própria: promover escolas, colégios, centros de formação profissional, hospitais, centros de assistência, centros de investigação, etc.

Anos mais tarde, João Paulo II desenvolveu esta mesma ideia no seu livro Levantai-vos, Vamos!, para se referir à forma como os leigos realizam a sua vocação no mundo: “Os leigos podem cumprir a sua vocação no mundo e alcançar a santidade não apenas comprometendo-se ativamente em favor dos pobres e necessitados, mas também incentivando a sociedade no sentido do cumprimento dos deveres profissionais, com espírito cristão, e com o testemunho de uma vida familiar exemplar. Não penso apenas naqueles que ocupam posições de liderança na vida em sociedade, mas em todos aqueles que sabem transformar o seu quotidiano em oração, colocando Cristo no centro da sua actividade. Ele é aquele que atrai todos a si, saciando a sua fome e sede de justiça ”(Mt 5,6). E acrescentou: «Não é esta a lição que surge do final da parábola do Bom Samaritano (Lc 10,34-35)? Após prestar os primeiros cuidados, o bom samaritano entrega o ferido ao estalajadeiro. Que poderia ter feito sem ele? Na verdade, o estalajadeiro, permanecendo anónimo, fez a maior parte do trabalho. Todos podem agir como ele, cumprindo suas próprias tarefas com espírito de serviço. Toda a ocupação oferece a oportunidade, mais ou menos direta, de ajudar quem necessita. (...) O cumprimento fiel dos deveres profissionais já é praticar o amor às pessoas e à sociedade»[8].

Ana Marta González


[1] Papa Francisco, Encíclica Fratelli Tutti, n. 56

[2] Ana Marta González, En torno al Buen Samaritano. Leituras do século 20, 50, 3, pp. 533-559, Scripta Theologica, 2018.

https://doi.org/10.15581/006.50.3.533-559

[3] Lc 15,25.

[4] Lc 15,26-29.

[5] Lc 10, 36.

[6] Lc 10, 37.

[7] Bento XVI, Deus caritas est, n. 14

[8] S. João Paulo II, Levantai-vos, vamos!, pp. 107-108.