Dentre os diálogos de Deus com Moisés, recolhidos no livro do Êxodo, há uma cena rodeada de mistério, em que ele pede ao Senhor que lhe mostre o seu rosto. “Ver-me-ás por detrás”, responde, “quanto à minha face, ela não pode ser vista”[1]. Quando chega a plenitude dos tempos, Filipe faz o mesmo pedido a Jesus, numa dessas conversas cheias de confiança que os apóstolos mantinham com o Mestre: “Senhor, mostra-nos o Pai”[2]. E a resposta do Deus encarnado não se faz esperar: “Aquele que me viu, viu também o Pai”[3].
QUANDO MEDITAMOS OS EVANGELHOS, É POSSÍVEL DESCOBRIR AS CARATERÍSTICAS DE DEUS – ENTRE ELAS, E DE MODO EMINENTE, A SUA MISERICÓRDIA – PLASMADAS NA SIMPLICIDADE DAS PALAVRAS E DA VIDA DE JESUS
Jesus Cristo revela-nos o Pai: quando meditamos os Evangelhos é possível descobrir as caraterísticas de Deus – entre elas, e de modo eminente, a sua misericórdia – plasmadas na simplicidade das palavras e da vida de Jesus. A misericórdia divina, que Deus foi mostrando ao longo da história do povo eleito, resplandece no Verbo encarnado. N’Ele, “rosto da misericórdia do Pai”,[4] realiza-se plenamente aquela oração terna que o Senhor tinha ensinado a Moisés, para que os sacerdotes abençoassem os filhos de Israel: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor te mostre a sua face e te conceda a sua graça! O Senhor volte o seu rosto para ti e te dê a paz!”[5]. Em Jesus, Deus faz brilhar definitivamente o seu rosto sobre nós, concede-nos a paz que o mundo não pode dar[6].
Um Deus que procura e escuta
A misericórdia de Deus pode ser vislumbrada desde as primeiras páginas do Génesis. Depois do seu pecado, Adão e Eva escondem-se entre as árvores do jardim, porque sentem a sua nudez, e já não se atrevem a olhar Deus nos olhos. Mas o Senhor sai imediatamente ao seu encontro “e naquele momento começa o exílio longe de Deus, com o pecado, também já existe a promessa do regresso, a possibilidade de regressar a Ele. Imediatamente Deus pergunta: ‘Adão, onde estás?’ Deus procura-o.”[7] O Senhor já lhes anuncia, então, o futuro triunfo sobre a linhagem da serpente, e, inclusive, confeciona-lhes umas roupas de peles como manifestação de que, apesar do pecado, o seu amor por eles não se extinguiu[8]. Deus fecha a porta do paraíso[9], mas abre no horizonte a porta da misericórdia: “Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar com todos de misericórdia”[10].
No livro do Êxodo, o Senhor atua com decisão para libertar os israelitas oprimidos. As suas palavras a Moisés no episódio da sarça ardente projetam-se, como as do Génesis, por todos os séculos: “Eu vi, eu vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para livrá-lo das mãos dos egípcios”[11].
Que exemplo para nós, que às vezes somos lentos para escutar e pôr em prática o que os outros necessitam de nós! Deus é um Pai bom, que vê a tribulação dos seus filhos e intervém para lhes dar a liberdade. Depois de atravessarem o Mar Vermelho, no marco solene do Sinai, o Senhor manifesta-se a Moisés como “Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade”[12].
Um amor “visceral”
O Salmo 86 repete quase literalmente essas palavras do Êxodo: “Deus miserator (rajum) et misericors (janún), patiens et multae misericordiae (jésed) et veritatis (émet) – Deus bondoso e compassivo; lento para a ira, cheio de clemência e fidelidade –”[13]. Na sua tradução da Bíblia para o latim, S. Jerónimo optou por traduzir três conceitos hebraicos com três termos que são quase sinónimos, derivados da palavra “misericórdia”.
Realmente, estes conceitos estão entrelaçados, mas cada um deles contribui com matizes que convém esmiuçar se queremos apreciar a realidade da misericórdia de Deus, que não se expressa completamente numa só palavra.
DEUS ENTERNECE-SE POR NÓS COMO UMA MÃE QUANDO ABRAÇA O SEU FILHO AO COLO, DESEJOSA SOMENTE DE AMAR, PROTEGER, AJUDAR, PRONTA PARA DOAR TUDO, INCLUSIVE A SI MESMA.
O adjetivo rajum (miserator), deriva de réjem, que significa “ventre, entranhas, seio materno” e utiliza-se na Bíblia para expressar o nascimento de uma criança[14]. Rajum descreve os sentimentos de uma mãe pelo ser que é literalmente carne da sua carne. “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto das suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca.”[15] Deus “enternece-se por nós como uma mãe quando abraça o seu filho ao colo, desejosa somente de amar, proteger, ajudar, pronta para doar tudo, inclusive a si mesma. Essa é a imagem que este termo sugere. Um amor, portanto, que se pode definir, no bom sentido, como ‘visceral’”[16]. Um amor que sofre especialmente os esquecimentos, desprezos ou abandonos dos seus filhos – “Povo meu, responde-me, que te fiz eu, em que te contristei?”[17] – , mas que, ao mesmo tempo, está sempre disposto a perdoá-los e a passar por cima dessa frieza, “porque não guarda a sua ira para sempre, e se compraz na misericórdia”[18]. É um amor que se compadece pela lamentável situação em que os filhos se possam encontrar com o passar dos anos – “Vou enfaixar as tuas chagas e curar as tuas feridas”[19] – , e que não desiste de recuperá-los se os vê afastados. É um amor solícito para proteger os seus filhos se são assediados ou perseguidos. “Tu, porém, Jacob, servo meu, não temas Israel, não te enchas de pavor! Vou trazer-te da terra longínqua, e livrarei a tua raça da terra do exílio. Jacob tornará a viver em segurança, sem que ninguém mais o inquiete.”[20] Um encontro cordial e emocionado, recetivo ao mínimo detalhe de carinho: “Todos vós, que estais sedentos, vinde à nascente das águas; vinde comer, vós que não tendes alimento. Vinde comprar trigo sem dinheiro, vinho e leite sem pagar!”[21]. É um amor que nos ensina a preocupar-nos pelos outros, a sofrer com os seus sofrimentos e a alegrar-nos com as suas alegrias. A estar realmente próximos de quem nos rodeia, com a nossa oração, interesse, presença... Em resumo, dando o nosso tempo.
Deus é qualificado também como janún (misericors). Este adjetivo, que pode ser traduzido por “compassivo”, deriva da palavra jen, que significa “graça, favor”: algo que se outorga por pura benevolência, que vai além da justiça estrita. Expressa a atitude de Deus que se reflete num dos mandamentos do código da Aliança: “Se tomares como penhor o manto de teu próximo, devolvê-lo-ás antes do pôr-do-sol, porque é a sua única cobertura, é a veste com que cobre a sua nudez; com que dormirá ele? Se me invocasse, eu o ouviria, porque sou misericordioso (janún)”[22]. Trata-se de um mandato inspirado pela compaixão ao pobre, que não consegue pagar o que em justiça deveria: Deus não tolera vê-lo sofrendo, e, nessa compaixão – que Deus sabe inspirar aos seus –abre-se um caminho à verdadeira justiça: “porque eu quero o amor mais que os sacrifícios, e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos”[23]. Quem conhece a Deus de verdade sabe reconhecer o irmão que sofre. Se pedirmos ao Senhor esse olhar compassivo, quantas oportunidades de servir os outros descobriremos! O ano jubilar é uma boa ocasião para que, junto com outras pessoas, façamos alguma obra de misericórdia corporal no lugar em que nos encontramos.
O Deus fiel que sabe esperar
Esse salmo diz também que o Senhor é um Deus de muita misericórdia, multae misericordiae (jésed), utilizando, nesse caso, uma palavra do vocabulário familiar, que se poderia traduzir literalmente por “piedade”. Refere-se, acima de tudo, à bondade própria das relações dos pais com os filhos, destes com os seus pais, ou dos esposos entre si. Por isso, quando Jacob, já muito idoso, está prestes a morrer, chama o seu filho José e pede-lhe: “(...) promete-me, com toda a piedade (jésed) e fidelidade, que não me enterrarás no Egito”[24]. Ou seja, pede-lhe que se porte como corresponde a um filho bom e cumpra esse último desejo de seu pai. Dizer que Deus é pleno em jésed é a mesma coisa que afirmar que Deus nos olha sempre como seus filhos: os seus dons e a sua vocação são irrevogáveis[25]. “Deste Deus misericordioso também se diz que é “lento para a ira”, literalmente, tem um “longo alento”, ou seja, o amplo alento para a longanimidade e capacidade de suportar. Deus sabe esperar, os seus tempos não são os tempos impacientes dos homens; Ele é como o sábio agricultor que sabe esperar, dá tempo à boa semente para crescer, apesar do joio (cf. Mt 13, 24-30)”[26].
A MISERICÓRDIA NÃO É UMA COMÉDIA QUE DISSIMULA AS OFENSAS E AS FERIDAS COMO SE NÃO TIVESSEM EXISTIDO
Por último, afirma-se que a misericórdia do Senhor é presidida pela abundância de verdade: et veritatis (émet). Efetivamente, a misericórdia não é uma comédia que dissimula as ofensas e as feridas como se não tivessem existido: as feridas não se enfaixam “sem antes serem tratadas e medicadas”[27], porque infetariam. O Senhor “é Médico e cura o nosso egoísmo se deixamos que sua graça penetre até ao fundo da alma”.[28] Deixar que nos cure significa reconhecer-nos pecadores, mostrar-lhe as feridas com a disposição de colocar os meios oportunos para tratá-las. “Se alguma vez cais, filho, acode prontamente à Confissão e à direção espiritual: mostra a ferida!, para que te curem a fundo, para que te tirem todas as possibilidades de infeção, mesmo que te doa como numa operação cirúrgica.”[29]. E então o Senhor promete que “se os vossos pecados forem escarlates, tornar-se-ão brancos como a neve! Se forem vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã!”[30].
Uma relação estável e serena com Deus e com os outros só se pode construir sobre a verdade. A verdadeira felicidade – escreve Santo Agostinho, refletindo sobre a nossa vida na terra e a que nos espera no céu – é a alegria da verdade, gaudium de veritate[31]. Viver na verdade é muito mais do que “saber” algumas coisas. Por isso o termo hebraico émet significa tanto “verdade” como “fidelidade”: a pessoa sincera é fiel, e quem deseja ser fiel ama a verdade. “Uma ‘lealdade’ sem limites: eis aqui a última palavra da revelação de Deus a Moisés. A fidelidade de Deus nunca falha, porque o Senhor é o guardião que, como diz o Salmo, não dorme, mas vela continuamente sobre nós para levar-nos para a vida: ‘Não permitirá que o teu pé escorregue, o teu guardião não dorme, não dorme nem repousa o guardião de Israel (...). O Senhor guarda-te de todo o mal, ele guarda a tua alma; o Senhor guarda as tuas entradas e saídas agora e para sempre (121, 3-4.7-8)’”.[32]
Resumindo, no Antigo Testamento, a misericórdia divina é a ternura materna e profundamente carinhosa que o Senhor oferece a quem se encontra necessitado e reconhece a verdade da sua situação: as suas debilidades, erros, pecados ou infidelidades. Deus não somente o liberta daquilo que o oprime, mas também o cura e restaura a sua dignidade de filho.
O rosto da misericórdia do Pai
“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos o que tocamos com as nossas mãos relativamente ao Verbo da vida...”[33]. Essas palavras vibrantes do apóstolo a quem Jesus amava chegam até nós com a mesma força com que foram escritas. Em Jesus, o apóstolo viu e tocou o amor de Deus coisa que todos os cristãos podemos fazer, “para que nossa alegria seja completa”[34].
Jesus Cristo “é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus”[35]. Por isso, S. Josemaria nos convidava a não nos cansarmos de saborear “as cenas comoventes em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos ou relata com frases humanas e divinas a história sublime do perdão e do seu contínuo Amor pelos seus filhos”[36].
O AMOR INCONDICIONAL DO SENHOR CHEGA À SUA MÁXIMA EXPRESSÃO NA SUA PAIXÃO. AÍ TUDO É PERDÃO, PACIÊNCIA DIANTE DOS NOSSOS PECADOS, PALAVRAS SEM NENHUM SABOR DE AMARGURA
Cristo é o bom samaritano [37] que não passa longe de quem padece qualquer necessidade espiritual ou material, que se comove e põe remédio à desgraça. “Deus mistura-se com nossas misérias, aproxima-se das nossas feridas e, com as suas mãos, faz com que sejam curadas. Fez-se homem para ter mãos. É um trabalho de Jesus, pessoal: um homem cometeu o pecado, um homem vem curá-lo”[38]. Toda a vida de Jesus está cheia de gestos de misericórdia: perdoa os pecados do paralítico que descem numa maca pelo teto da casa em que o Senhor estava[39], ressuscita e entrega vivo à sua mãe, a viúva de Naim, o seu filho único [40], alimenta milagrosamente as multidões que o seguem para que não desfaleçam[41]. “O que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham”.
Esse amor incondicional do Senhor chega à sua máxima expressão na sua Paixão. Aí tudo é perdão, paciência diante dos nossos pecados, palavras sem nenhum sabor de amargura. Cravado num madeiro, comove-se diante da confissão sincera de um ladrão – “quanto a nós fez-se justiça, porque recebemos o castigo que mereciam as nossas ações, mas Este não fez mal algum”[42]– e imediatamente lhe pede: “Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino!”[43]. Trata-se de uma imagem perfeita da misericórdia: Jesus acolhe a petição daquele homem necessitado de carinho, que reconhece com simplicidade o mal na sua vida; perdoa-o, e abre-lhe a porta de entrada para o céu: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”[44]. Essa resposta de Jesus mostra que Ele esperava esse momento, como o espera para cada um de nós uma vez, muitas vezes. “Jesus acolhia com bondade os pecadores. Se pensarmos de modo humano, o pecador seria um inimigo de Deus, mas Ele aproximava-se deles com bondade, amava-os e mudava o seu coração”[45].
Nossa Senhora estava ao pé da cruz. Confiados na sua intercessão, podemos dirigir-nos a Deus com S. Josemaria, que seguindo uma inspiração divina, rezava: “Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae ut misericordiam consequamur”[46] – “Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia”.
Francisco Varo
[1] Ex 33,23.
[2] Jo 14, 8
[3] Jo 14, 9
[4] Francisco, Bula Misericordiae vultus (11-IV-2015), n. 1.
[5] Num 6, 24-26
[6] Cfr. Jo 14,27
[7] Francisco, Homilia, 7-IV-2013. Cfr. Gn 3, 9.
[8] Cfr. Gn 3, 14-21
[9] Cfr. Gn 3, 24
[10] Rom 11, 32
[11] Ex 3, 7-8.
[12] Ex 34, 6. Uma expressão quase idêntica se repete em vários lugares da Sagrada Escritura, especialmente nos Salmos 86(85), 15 e 103 (102), 8.
[13] Sal 86 (85), 15.
[14] Por exemplo em Ex 13,2: “Consagrar-me-ás todo primogênito (aquele que abre o ventre materno, réjem) entre os israelitas, tanto homem como animal: ele será meu.”
[15] Is 49,15.
[16] Francisco, Audiência, 13-I-2016.
[17] Mq 6, 3.
[18] Mq 7,18.
[19] Jr 30,17.
[20] Jr 46,27.
[21] Is 55, 1.
[22] Ex 22, 25-26.
[23] Os 6,6.
[24] Gn 47,29.
[25] Cfr. Rm 11, 29.
[26] Francisco, Audiência, 13-I-2016.
[27] Francisco, Discurso, 18-X-2014.
[28] São Josemaria, Cristo que passa, nº. 93.
[29] São Josemaria, Forja, nº. 192.
[30] Is 1,18
[31] Santo Agostinho, Confissões, X.23.33.
[32] Francisco, Audiência, 13-I-2016.
[33] I Jo 1,1.
[34] I Jo 1,4.
[35] Joseph Ratzinger, Homilia, Missa pro eligendo pontifice, 18-IV-2005.
[36] Amigos de Deus, n. 216.
[37] Lc 10, 33-35.
[38] Francisco, Homilia em Santa Marta, 22-X-2013.
[39] Cfr. Mc 2, 3-12.
[40] Cfr. Lc 7, 11-15.
[41] Cfr. Mt 14, 13-21; 15, 32-39.
[42] Francisco, Misericordiae vultus, n. 8.
[43] Lc 23, 41-42.
[44] Lc 23, 43.
[45] Francisco, Audiência, 20-II-2016.
[46] Cfr. Hb 4, 16.