A mediação materna

Estudo de Mons. Fernando Ocáriz, publicado na revista Romana, onde reflete sobre a maternidade espiritual de Nossa Senhora.

(Reflexão teológica sobre a Encíclica Redemptoris Mater)*

1. Maternidade espiritual e mediação
2. Mediação participada “em Cristo
3. O mistério da “cheia de graça”
4. Plenitude de graça e mediação materna
5. Mediação materna e “recapitulação em Cristo”


(…) A presente reflexão, sem ser um comentário nem uma exegese da Encíclica Redemptoris Mater, dela partirá e nela se vai inspirar.

Como sabemos, João Paulo II considera o mistério daquela que é a Mãe de Deus, a Mãe da Igreja e a Mãe de cada cristão, numa perspetiva eminentemente bíblica. Nesta perspectiva, sublinha-se de modo particular a interdependência que têm, nos desígnios de Deus, a plenitude da graça, a maternidade divina e a maternidade espiritual de Maria, e também a relação íntima e constitutiva entre o mistério da Mãe e o mistério supremo da Santíssima Trindade.

À luz dessa interdependência e desta relação materna com Maria, vamos deter-nos a considerar a mediação, que é um dos aspetos do mistério da Mãe a que João Paulo II dedicou uma particular atenção.

1. Maternidade espiritual e mediação

Na expressão "feliz aquela que acreditou", podemos encontrar como que uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como «cheia da graça». Se como «cheia de graça» ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: «avançou na peregrinação da fé» e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas direta e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. Mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Assim, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe»[1].

A presença - participação - de Maria no mistério de Cristo está, portanto, intimamente ligada à plenitude da graça em que essa fé se baseia, através da qual ela foi participante, em toda a sua extensão, do itinerário terreno do seu Filho [2]. A participação de Maria no "itinerário terreno" de Cristo atinge o auge na sua etapa conclusiva, ou seja, no cume do Gólgota, onde a Mãe foi associada de modo especial, pela fé e pelo amor, ao sacrifício do Filho, através do "sacrifício do seu coração de Mãe" [3]. Maria "continua a tornar presente o mistério de Cristo aos homens ", porque permanece associada ao Filho na Glória e porque "coopera com o amor materno" na "geração e educação" desses irmãos e irmãs do seu Filho Jesus Cristo [4].

Como João Paulo II explica, em Maria, "esta maternidade na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina" [5], não só enquanto ela concebeu a carne assumida pelo Verbo em unidade de pessoa, mas também enquanto a maternidade divina foi realizada, por desígnio divino, na "cheia de graça" [6], cujo amor materno "amadureceu definitivamente aos pés da Cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho »[7]. Com palavras do Cardeal Ratzinger, podemos dizer que «junto da cruz, Maria se torna novamente mãe. Na dor da compaixão, começa a nova maternidade, a palavra torna-se verdadeira: "Amplia o espaço da tua tenda... porque transbordarás para a direita e para a esquerda e a tua descendência tomaráposse das nações"(Is 54, 2 ss). Assim, a maternidade de Maria dura até o fim do mundo» [8].

A maternidade espiritual de Maria é um aspeto da sua mediação de graça: em certo sentido, o "primeiro aspeto" em relação a cada um dos fiéis. Efetivamente, estes "nascem de Maria" porque ela é medianeira da primeira graça da regeneração sobrenatural. Segundo as conhecidas palavras de Santo Agostinho, Maria é "verdadeiramente a mãe dos membros (de Cristo).... porque.... cooperou com a sua caridade para o nascimento dos fiéis na Igreja, que são os membros dessa Cabeça" [9]. E toda a sua continuada mediação em relação às outras graças é uma "mediação materna" [10]. Escreve o Romano Pontífice: «Efetivamente, a mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e possui um caráter especificamente maternal, que a distingue da mediação das outras criaturas que, de diferentes modos e sempre subordinados, participam na única mediação de Cristo. Também a mediação de Maria permanece participada» [11].

Para aprofundar a natureza e o ”conteúdo” da mediação materna de Maria, é oportuno refletir sobre o seu caráter participado e, posteriormente, sobre a sua relação com a plenitude de graça.


2. Mediação participada "em Cristo"

De facto, a Encíclica Redemptoris Mater, retomando e explicando a correspondente doutrina do Concílio Vaticano II, insiste especialmente no caráter "subordinado" e "participado" da mediação de Maria em relação à de Cristo [12].

É claro que os conceitos de participação e subordinação não são equivalentes; efetivamente, nem toda a subordinação implica uma participação, enquanto que toda a participação implica subordinação do participante em relação à totalidade de que participa (quando se trata de participação transcendental, e não simplesmente predicamental, ou seja, quando aquilo que é participado existe e permanece na sua plenitude fora dos participados). Daí que, para aprofundar o nosso conhecimento sobre a mediação de Maria, mais do que analisar diretamente a sua "subordinação" à de Cristo, é oportuno considerá-la no seu caráter de "participação".

Existe certamente um aspeto muito importante da mediação de Santa Maria que se explica suficientemente, do ponto de vista formal, através da noção de subordinação: refiro-me à intercessão da Mãe diante do seu Filho, em favor da humanidade. A este aspeto da mediação se aplica adequadamente a famosa expressão de S. Bernardo segundo a qual Maria é medianeira ad Mediatorem [13]. Não nos vamos deter nesse aspeto, que não apresenta especial dificuldade de compreensão [14].

Recordemos antes o facto de muitos autores (Lépicier, Hugon, Lavaud, Garrigou-Lagrange, Roschini, Sauras, etc.) afirmarem que a mediação materna de Maria Santíssima não se limita à intercessão, mas que se estende também à própria doação da vida sobrenatural, quer dizer, à doação da graça aos homens. Esta posição teológica foi ilustrada principalmente pelo conceito de causalidade instrumental eficiente: Maria, na doação da graça, seria instrumento de Cristo, analogamente ao modo como a Humanidade de Jesus é o instrumento da divindade [15].

Muitos outros autores rejeitaram esta interpretação (Lennerz, Merkelbach, Heris, Terrien, Bittremieux, De la Taille etc.), sobretudo porque consideravam que a causalidade instrumental de Maria na doação efetiva da graça poderia obscurecer – de modo diferente da causalidade instrumental dos sacramentos - o caráter imediato e único da mediação de Cristo entre Deus e os homens: seria - a de Cristo - uma mediação entre Deus e Maria e, somente através dela, entre Deus e os homens. De facto, hoje está amplamente difundida a opinião de que a mediação mariana se limitaria unicamente à intercessão [16].

Contudo, não me parece necessário adotar a chave da causalidade instrumental - que apresenta certamente dificuldades – para afirmar que a mediação de Maria não se limita apenas à intercessão, mas se refere também de alguma forma à efetiva doação da graça.

Para aprofundar este aspeto do mistério da Mãe, é conveniente, como disse antes, ter em conta a noção de participação. Efetivamente, João Paulo II escreve que a mediação de Maria «é mediação em Cristo», além de usar frequentemente este termo para expor a relação da mediação de Maria com a de Cristo [17].

Como é sabido, o ser em Cristo, na sua riqueza e pluriformidade, tanto entitativa como operativa, exprime, especialmente nas Cartas Paulinas, a própria essência do cristianismo [18]. E inclui, como seu aspeto mais radical, a participação na Filiação do Verbo eterno, participação que é constitutiva da filiação divina adotiva [19], mediante a qual os homens se tornam filhos no Filho, segundo a expressão tradicional usada tantas vezes por João Paulo II [20].

É importante notar que o facto de nós sermos filhos do Pai em Cristo, mediante a participação na Sua Filiação divina, não diminui nem multiplica a Filiação do Verbo. Na realidade, Cristo continua a ser o Unigénito do Pai, mesmo sendo o Primogénito entre muitos irmãos, porque, com palavras de Scheeben - cujo centenário da morte será celebrado dentro de alguns meses - «nós não somos simplesmente filhos adotivos, mas membros do Filho natural. Portanto, como tal, entramos também realmente nessa relação pessoal em que o Filho de Deus está com o Seu Pai. É segundo a verdade, e não apenas segundo analogia ou semelhança, que chamamos Pai nosso ao Pai do Verbo. E efetivamente, isto não acontece por uma simples relação análoga, mas por aquela única e mesma relação pela qual Ele é o Pai de Cristo. É-o de um modo semelhante àquele pelo qual Ele, que é o Pai do Verbo eterno, é também, pela mesma relação, o Pai do Homem-Deus na Sua humanidade (...). De certa forma - conclui Scheeben -, somos um único Filho do Pai, com Ele e n’Ele» [21].

A mesma dialética entre o Uno e o múltiplo se deve também aplicar a todos os outros aspetos do ser em Cristo por participação. Por isso, no que se refere a uma mediação em Cristo por participação na Sua única mediação, não há dúvida de que uma tal mediação participada não diminui nem multiplica a única mediação entre Deus e os homens própria de Jesus Cristo. Trata-se portanto da participação expressa em grego, tanto clássico como neotestamentário, pelo termo koinonía: comunhão por participação, ou participação enquanto comunhão espiritual de muitos com algo ou alguém que permanece único e indiviso [22]. Isto, na realidade, é aplicável não apenas à mediação materna de Maria, mas também a todas as outras mediações subordinadas, participadas, da mediação de Cristo.

Mas afirmar que uma das mediações participadas - a de Maria - é mediação também na doação efetiva da graça significa afirmar, in radice, que Maria participa de alguma maneira na capitalidade de Cristo, e isto leva-nos a considerar a conexão da "mediação materna" com a "plenitude de graça" a que nos referíamos no início. Detenhamo-nos antes, brevemente, na plenitude de graça de Maria considerada em si mesma.


3. O mistério da "cheia de graça"

Maria é, já antes da Encarnação, a kecharitoméne (Lc 1, 28): a gratificata, segundo a versão latina do Codex Palatinus (e) da tradição africana; a gratia plena da Vulgata. Não é possível nem necessário determo-nos aqui a considerar as interpretações, antigas e recentes, da palavra kecharitoméne [23]. De qualquer maneira, embora só a exegese de Lc 1, 28 não pareça levar à ideia de "plenitude" de graça santificante, mas sim a afirmar que Maria é chamada pelo anjo "transformada pela graça", "em preparação para a divina maternidade virginal [24], há indubitavelmente razões seguras, inclusive cristológicas e eclesiológicas, para afirmar em Maria uma peculiar "plenitude de graça", como o Magistério da Igreja ensinou em repetidas ocasiões [25].

É tradicional considerar três aspetos da plenitude de graça de Maria: em primeiro lugar, a total imunidade de pecado e a perfeição das virtudes; em segundo, o que S. Tomás denomina refluentia o redundantia da divinização da alma de Maria na sua carne; e finalmente, como consequência disso, a plenitude de graça faz que Ela seja, em certo sentido, fonte de graça para os homens [26].

É interessante notar que S. Tomás considera a "plenitude de graça" não só como moralmente conveniente à dignidade da que tinha sido predestinada para a maternidade divina, mas também como uma especial "continuidade ontológica" com essa maternidade. De facto, chega a afirmar que aquele aspeto da plenitude de graça que ele designa redundantia da graça na carne de Maria foi uma predisposição específica, decerto não absolutamente necessária, mas querida por Deus, para que Ela concebesse um Homem que era o Filho de Deus [27].

Assim, do mesmo modo que espírito e matéria constituem no homem uma unidade substancial, também em nós – com palavras de Monsenhor Josemaria Escrivá – "a divinização envolve o homem todo, como antecipação da ressurreição gloriosa" [28]. Põe-se então a seguinte pergunta, de forma imediata: qual pode ser a peculiaridade da redundantia da graça na carne, no caso de Maria? Ou seja, permanece algum "espaço metafísico" para conceber uma plena redundância da graça na carne, que seja consequência da plenitude da graça e se dirija, como afirma S. Tomás, à maternidade divina? Uma plenitude de redundância deste tipo não parece outra coisa senão a total santificação ou deificação da carne na sua própria materialidade, ainda mais difícil de entender para nós do que a deificação do espírito, mas não impossível. A deificação da carne é, com efeito, o estado escatológico definitivo da matéria humana, que já se realizou em Cristo e na sua Mãe, na Glória [29].

Por isso, na perspetiva de S. Tomás, talvez se possa pensar que a plenitude de graça implicaria uma certa "deificação escatológica antecipada" da carne de Maria, análoga à do Cristo pré-pascal, cuja carne, segundo S. Tomás, era uma carne deificada não apenas no sentido de que pertencia a uma Pessoa divina, mas enquanto participava em si mesma dos dons da divindade da forma mais abundante, ou seja, em plenitude [30].

Em todo o caso, a especial santificação de Maria, mesmo que tivesse sido uma "antecipada plenitude escatológica", permaneceu na Terra num estado de "kenosis", análogo ao da Humanidade do seu Filho. Efetivamente, são também palavras do Fundador do Opus Dei: «se Deus quis, por um lado, exaltar a sua Mãe, por outro, durante a sua vida terrena, não foram poupados a Maria a experiência da dor, nem o cansaço do trabalho, nem o claro-escuro da fé»[31]. Um "claro-escuro" que - com João Paulo II - podemos considerar, especialmente aos pés da Cruz do Filho, como «a mais profunda kenosis da fé na História da humanidade» [32]. Uma kénosis da fé que se manifesta particularmente - nas palavras de D. Álvaro del Portillo - no facto de, «quando a missão de Cristo parece terminar com o fracasso mais absoluto e os discípulos deixam o Mestre só, a Virgem Maria caminha com passo decidido na peregrinação da fé, e acredita, contra toda a esperança, que tudo o que Deus disse sobre o Seu Filho se realizará» [33].


4. Plenitude de graça e mediação materna

Retomemos agora o discurso da mediação materna de Maria na efetiva doação da graça, à luz da plenitude de graça, já verdadeiramente consumada na glória: com a Assunção, de facto, Maria foi santificada "completa e totalmente no cumprimento escatológico» [34]. Antes de mais, é oportuno lembrar que a graça sobrenatural, que os homens recebem de Cristo através da mediação de Maria, não é um "objeto" que possa passar de mão em mão: a graça é um modo de ser sobrenatural, originado por Deus no mais íntimo do espírito criado, que diviniza ou deifica a pessoa e é inseparável das missões invisíveis do Filho e do Espírito Santo, mediante as quais o espírito finito, como diz S. Tomás, «fit particeps divini Verbi et procedentis Amoris» [35].

Como sabemos, entre estas duas missões, que são inseparáveis, há uma ordem inversa à das processões eternas. Por outras palavras, o termo da ação divina ad extra - ação comum às três Pessoas divinas - é "a introdução" da criatura na vida intratrinitária que as missões incluem: uma "introdução" que "começa" (não no sentido temporal) através da união, por participação, com a Pessoa do Espírito Santo. União essa que "plasma" no espírito finito a participação (semelhança e união) com o Filho, pela qual no Filho se é filho do Pai [36]. Ou seja, como escreve João Paulo II: «Ele mesmo (o Espírito Santo), como Amor, é o eterno Dom incriado. N'Ele está a fonte e o início de toda a boa dádiva para as criaturas» [37].

À luz destas reflexões, surge a questão: como é possível uma mediação humana - a de Maria - na doação da vida sobrenatural, não só por intercessão, mas também por efetiva doação ou "distribuição" da graça, se esta "começa" sempre com a missão do Espírito Santo? Mais uma vez, o mistério da Mãe se ilumina pelo mistério do Filho. Não há dúvida que Jesus Cristo é, na sua Humanidade, mediador da vida sobrenatural para os homens, não apenas por via de mérito e de intercessão, mas também por via de eficiência, na medida em que a sua Humanidade é "instrumento da divindade": o organon tes theiótetos, na famosa expressão de S. João Damasceno [38]. Por isso, Cristo pode e deve ser chamado fonte ou princípio da graça [39]. O que significa, entre outras coisas, que Deus quis que, na atual economia, o Espírito Santo seja "enviado" aos homens, do Pai, pelo Filho, através da Humanidade do Filho, plena e definitivamente glorificada e elevada ad dexteram Patris [40], com a qual Santa Maria, depois da Assunção, está unida, numa koinonía (comunhão-participação) da mais alta intimidade e intensidade compatível com a distinção pessoal.

Portanto, não parece infundado atribuir um significado mais profundo que o de uma simples "apropriação" a expressões tradicionais como a de Santo André de Creta, segundo a qual Maria é "a Mãe de quem provém, sobre todos, o Espírito" [41]. E é propriamente a noção de participação, koinonía, que permite afirmar a participação de Maria na capitalidade de Cristo e portanto, a sua mediação na efetiva doação da graça, sem que isso permita, de modo nenhum, uma duplicidade de fontes ou de cabeças, que sem dúvida se teria de excluir, tanto por razões dogmáticas, como pela dialética da participação metafísica de estrutura transcendental.

Nesta perspetiva, as afirmações que apresentam a Virgem como o "colo" ou o "aqueduto" através do qual nos chega a graça da Cabeça ou da Fonte, embora retenham um certo valor metafórico, são em grande parte insuficientes. Deveríamos antes dizer que os homens recebem a graça de Deus através de Cristo e de Maria, porque, num sentido muito mais real e profundo - e por isso, muito mais misterioso – que o das palavras de Lucas referentes aos primeiros cristãos (cf. At 4, 32), Maria é cor unum et anima una com Cristo. Assim, como dizia Monsenhor Escrivá, o cristão encontra em Maria «todo o amor de Cristo» e, em Cristo, vê-se «imerso nessa vida inefável de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo» [42].


5. Mediação materna e "recapitulação em Cristo"

Depois da Assunção, a plenitude de graça de Maria alcançou certamente o estado escatológico, estado que, referido a toda a criação, é descrito por S. Paulo como resultado da " recapitulação” (anakefalaíosis) de todas as coisas em Cristo (cf. Ef 1, 10). Esta realidade está rodeada de uma luz que é inacessível para nós: de facto, «nem olho viu, nem ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou o que Deus tem preparado para aqueles que O amam» (1 Cor 2, 9).

Não é agora o momento de falarmos na exegese literal ou na interpretação teológica da "recapitulação" escatológica de tudo em Cristo [43]. Contudo, não há dúvida de que esse é o significado verdadeiro e sobrenatural - estranho a qualquer monismo panteísta - daquele retorno final do múltiplo ao Uno, que algumas filosofias vislumbraram de formas necessariamente inadequadas e, em vários aspetos, erradas. Uma unidade com Deus em Cristo que, conservando a necessária distinção entre criatura e Criador e a que existe entre as várias criaturas, tem como paradigma - no caso da pessoa humana - a própria unidade da Trindade divina. Efetivamente, o Senhor, já referindo-se à vida terrena dos Apóstolos, vida em que a graça é incoação da glória, se exprimiu desta maneira: "como Tu, ó Pai, estás em mim e Eu em Ti, que eles também sejam um em nós (...) Eu neles e Tu em mim, para que eles sejam um» (Jo 17, 21-23).

Este mistério de unidade - de comunhão - com Deus em Cristo, é o mistério da Igreja, Corpo de Cristo (cf. Cl 1, 18) e, de acordo com as famosas palavras de S. Cipriano , «de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti plebs adunata» [44]. Uma Igreja que, no seu estado escatológico, será «a plenitude (pléroma) daquele (Cristo) que se realiza plenamente em todas as coisas» (Ef 1, 23), porque Cristo glorioso preencherá (hima plerósei) todas as coisas (cf. Ef 4, 10), e estas participarão, «n’Ele, da Sua plenitude (em auto pepleroménoi)» (Cl 2, 10).

Nos santos, a realidade da glória escatológica será a realização final, no espírito e na carne, do ser em Cristo, específico da vida sobrenatural. Tal cumprimento já se realizou em Maria no grau correspondente à sua plenitude de graça, que inclui em si a plenitude da união (koinonia) com Cristo, a todos os níveis do ser e do operar. Essa plenitude de união escatológica, exclusiva da cheia de graça, é a raiz da distinção entre a mediação materna e a mediação dos santos na glória e dos justos na Igreja terrena, e é ao mesmo tempo, a raiz da distinção entre a participação de Maria na capitalidade de Cristo e aquela relação mística de comunhão espiritual entre todos, que é a Comunhão dos santos.

Pela excecional união da Mãe com o Filho, culminando na sua glorificação definitiva depois da Assunção, «Maria, escreve João Paulo II, está como que envolvida por toda a realidade da comunhão dos santos; e a sua própria união com o Filho na glória está toda ela direcionada para a plenitude definitiva do Reino, quando a Deus for tudo em todos»». [45].

Consequentemente, a união de Maria com Cristo é a raiz mais profunda do íntimo vínculo da Virgem Maria com a Igreja e da sua mediação materna com a maternidade da Igreja. Não nos podemos debruçar aqui sobre esse importante aspeto do mistério da Mãe [46], mas do que foi recordado, emerge claramente a superação da contraposição entre a chamada perspectiva "cristocêntrica" e "eclesiotípica" na consideração teológica da cooperação de Maria para a salvação dos homens; superação a que conduz já, de facto, a orientação mariológica do capítulo VIII da Constituição dogmática Lumen Gentium [47].

Conclusão

Chegados a este ponto, apercebemo-nos melhor de que se poderiam considerar outros aspetos do mistério da mediação materna e aprofundar ainda mais as reflexões expostas. De qualquer forma, gostaria de acabar salientando que, perante o mistério da Mãe de Deus, como perante o mistério do próprio Deus, chega sempre um momento em que a atitude teologicamente mais razoável é, segundo as conhecidas palavras do Pseudo-Dionísio, a de uma silenciosa veneração: «indicibilia (Deitatis) casto silentio venerantes» [48], sem pretendermos limitar o mistério àquilo que está ao alcance da nossa compreensão. Um "casto silêncio", em que ressoa ainda o eco sempre presente da saudação do Anjo Àquela que, cheia de graça, é Mãe de Deus e nossa Mãe.

Fernando Ocáriz

Professor de Teologia Fundamental e Dogmática


NOTAS

* Texto da lição inaugural do ano académico de 1987-88 no Centro Académico Romano da Santa Cruz (atualmente:Pontifícia Universidade da Santa Cruz)

[1] JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, 25-3-1987, nº 19 / b.

[2] Cf. Ibid., nº 12 / c.

[3] JOÃO PAULO II, Encíclica Dives in misericordia, 30-11-1980, nº 9 / b. Cf. Dominum et vivificantem, 18 -5-1986, nº 16 / f; Encíclica Redemptoris Mater, nn. 19, 23, 24.

[4] Cf. JOÃO PAULO II, EncíclicaRedemptoris Mater, nº 6 / b.

[5] Ibid., nº 22 / b.

[6] Cf Ibid., nº 39 / c-d.

[7] Ibid., nº 23 / c.

[8] J. RATZINGER, Homilia no Seminário Internacional da Prelatura do Opus Dei, 14-4- 1987, em "Romana" 4 (1987/1) 116-117.

[9] Santo Agostinho, De sancta Virginitate, 6: PL 40, 399.

[10] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium,nº 62.

[11] JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nº 38 /c.

[12] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium,nº 62; JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nn. 38 / b-c, 40 / a.

[13] S. BERNARDO, In Dominica infra oct. Assumptionis Sermo, 2: cit. por JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nota (96).

[14] Sobre mediação como intercessão materna, cf. especialmente JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nn. 21 / c, 40.

[15] Cf., por exemplo, G.M. ROSCHINI, La Madre de Dios según la fe y la teología, Ed. Apostolado de la Prensa, Madrid 1962, vol.I, pp. 647-650.

[16] Cf., por exemplo, J.—H. NICOLAS, Synthèse dogmatique. De la Trinité a la Trinité, Ed. Universitaires, Fribourg - Beauchese, Paris 1985, pp. 553-555.

[17] JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nº 38 / a.

[18] Cf., por exemplo, M. MEINERTZ, Teologia del Nuevo Testamento, Ed. Fax, Madrid, 2ª ed. 1966, p. 414; A. WIKENHAUSER, Die Christusmystik des Apostels Paulus, 2ª ed., Freiburg 1956.

[19] «Deus autem ab æterno prædestinavit quos debet adducere in gloriam. Etisti sunt omnes illi qui sunt participa filiationis Filii eius »(SAINT THOMAS OF AQUINO, In Epist. Ad Hebræos, c. Il, lec. 3); cf. também Epist. ad Romanos, c.I, lec 3.

[20] Cf., por exemplo, JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nº 8 / d; Encíclica Redemptor hominis, 4-3-1979, nº 18 / b-c.

[21] M.J. SCHEEBEN, I misteri del cristianismo, Morcelliana, Brescia, 3ª ed. 1960, p. 378. Sobre este tema, cf. F. OCÁRIZ, Hijos de Dios en Cristo. Introducción a una teología de la participación sobrenatural, Eunsa, Pamplona 1972; IDEM, La Santísima Trinidad y el misterio de nuestra deificación, in "Scripta Theologica" 6 (1974) pp. 363-390; IDEM, La elevación sobrenatural como re-creación en Cristo, in "Atti dell'VIII Congresso Tomistico Internazionale", Lib. Edit. Vaticana 1981, vol. IV, pp. 281-292; IDEM, Partecipazione dell'essere e soprannaturale, in AA.VV. "Essere e libertà. Studi in onore di Cornelio Fabro", Università di Perugia, 1984, pp. 141-153. IDEM, Il Mistero della grazia in Scheeben: teologo cattolico d'ispirazione tomista", Libreria Editrice Vaticana 1988, pp. 227-235.

[22] Cf., por exemplo, S.MUÑOZ IGLESIAS, Concepto bíblico de Koinonía, en "XIII Semana Bíblica Española (1952)" C.S.I.C., Madrid 1953, p. 223.

[23] Sobre as diferentes interpretações dadas pela patrística, cf. as referências indicadas por João Paulo II na nota (21) da Encíclica Redemptoris Mater. Para um estudo filológico e teológico, cf. os recentes e importantes estudos de I. DE LA POTTERIE, "Kecharitoméne en Lc 1,28. Étude philologique: "Biblica" 68 (1987) 357-382, y Kecharitoméne in Lc 1,28. Étude exégétique et théologique: "Biblica" 68 (1987) 480-508.

[24] Cf. I. DE LA POTTERIE, art. cit, especialmente pp. 382, 506-507.

[25] Cf., por exemplo, Pio IX, Ex. apost. Ineffabilis Deus, 8-12-1854: DS 2800-2801; Leão XIII, Encíclica Magnæ Dei Matris, 8-9-1892: AL 12, p. 224; Pio XI, Encíclica Lux veritatis, 25-12-1931: AAS 23 (1931) p. 521; CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, nº 53; JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nn. 8-11.

[26] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Expositio salutationis angelicæ; Summa Theologiæ, III q 27, a. 5 ad 1. Sobre este assunto, cf. C. FABRO, "La partecipazione di Maria alla grazia di Cristo secondo San Tommaso: Ephemerides Mariologicæ" 24 (1974) pp. 389-406.

[27] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Expositio salutationis angelicæ; in Evang. Ioan., c. I, lec. X.

[28] JOSEMARIA ESCRIVÁ, Cristo que passa, Ed.Prumo/Rei dos Livros, Lisboa, 1997, nº 103.

[29] Sobre a espiritualização e deificação do corpo no estado escatológico, cf. JOÃO PAULO II, Discurso de 9-12-1981: "Insegnamenti di Juan Pablo II" 4-2 (1981) pp. 880-883. Cf. também F. OCÁRIZ, La Resurrección de Jesucristo: "Cristo, Hijo de Dios y Redentor del hombre. Atas do III Simpósio Internacional de Teologia da Universidade de Navarra", Eunsa, Pamplona 1982, pp. 756-761.

[30] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, In III Sent., D. 5, q. I, 2 ad 6.

[31] JOSEMARIA ESCRIVÁ, Cristo que passa, cit., nº 172.

[32] JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nº 18 / c.. S. Basílio Magno chega a afirmar que a fé de Maria sofreu no Calvário o assalto da dúvida (cf. S. BASILIO, Epistula 260, 9: PG 32, 965): essa opinião, embora não seja muito comum, também não deve necessariamente excluir-se, porque - pela própria natureza da fé - a tentação da dúvida é possível sem a menor culpa, e é totalmente compatível com os mais altos graus de fé.

[33] ÁLVARO DEL PORTILLO, Carta Pastoral, 31-5-1987, nº 19, cit. p. 74.

[34] J. RATZINGER, La Figlia di Sion, Jaca Book, Milão 1979, p. 71.

[35] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiæ, I, q. 38, a. I c. Cf. também M.J. SCHEEBEN, I misteri del cristianesimo, cit. p. 179: "La missione di una persona divina consiste nel fatto che la creatura partecipa di essa (presso i Padri greci, metoché, koinonía) ".

[36] Cf. M.J. SCHEEBEN, I misteri del Christianismo, cit., p. 182; E. HUGON, Le Mystère de la Très Sainte Trinité, Téqui, París 1921, pp. 245-246; J.—H. NICOLAS, Les profondeurs de la grâce, Beauchesne, París 1968, p. 551.

[37] JOÃO PAULO II, Encíclica Dominum et vivificantem, nº 34. Sobre a graça da adoção filial e da missão do Espírito Santo, cf. também o nº 52 da mesma encíclica.

[38] S. JOÃO DAMASCENO, De fide orthodoxa, III c. 19: PG 94, 1080.

[39] "Christus autem est principium gratiæ, secundum divinitatem quidem auctoritative, secundum humanitem vero instrumentaliter" (S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiæ III, q. 27, a. 5).

[40] Cf. F. OCÁRIZ, La Resurrección de Jesucristo, cit., pp. 766-770.

[41] SANTO ANDRÉ DE CRETA, Omelie mariane, Città Nuova, Roma 1987, homilia II, p. 57.

[42] JOSEMARIA ESCRIVÁ, Amigos de Deus, Lisboa, Diel, 2010, nº 293.

[43] Sobre o significado de anakefalaíosis, na História da exegese de Ef 1, 10, cf. J. M. CASCIARO, Estudios sobre Cristología del Nuevo Testamento, Eunsa, Pamplona 1982, pp. 308-324.

[44] S.CIPRIANO, De oratione Dominica, 23: PL 4, 553. Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, nn. 2-4.

[45] JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nº 41 / d.

[46] Cf. JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater, nn. 42-47. Cf também H. DE LUBAC, Méditation sur l'Église, Aubier, Paris 1953, cap. IX: "L'Église et la Vierge Marie". Para uma visão de conjunto das relações entre Maria e a Igreja na patrística, cf. Y. CONGAR, Marie et l'Église dans la pensée patristique: "Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques" 38 (1954) 3-38.

[47] Cf. E. LLAMAS, La cooperación de Maria a la salvación. Nueva perspectiva después del Vaticano II: "Scripta de Maria" 2 (1979) 423-447.

[48] PSEUDO-DIONISIO, De divinis nominibus, c. I, n. 11, de acordo com a tradução latina usada por S. Tomás de Aquino, "In librum Beati, Dionysii De Divinis Nominibus expositio", Marietti, Torino-Roma 1950, p. 13 (§ 3, 11), diferente da tradução usada na Patrologia de Migne (cf. PG 3, 590).