A justiça

Uma das perguntas que se ouvem mais frequentemente é: Que devo a Deus? E a resposta é muito simples: devemos-Lhe tudo.

A conceção clássica de justiça resumiu-se em poucas palavras com muito significado: ‘Dar a cada um o que é seu’. Esta definição supõe que alguém deve e que alguém dá, ou seja, que há uma relação entre pessoas. Por isso, pensar na virtude da justiça é pensar em relação.

A relação entre pessoas considera que «Deus criou o homem racional conferindo-lhe a dignidade de uma pessoa dotada de iniciativa e do domínio dos seus atos» [1]. Apenas quando consideramos a igual dignidade e a igual liberdade de cada um é possível dizer que as relações entre as pessoas são justas. Não pode haver, por exemplo, relações justas entre as pessoas se umas são escravas das outras, já que essa submissão implica que não se dê conta de ‘quem são os outros’.

AO PENSAR NO TEMA DA JUSTIÇA, CONVÉM QUESTIONARMO-NOS: A QUEM DEVO OU A QUEM DOU?

No entanto, «o enunciado ‘dar a cada um o que é seu’ não expressa tudo o que a justiça implica nem explica a totalidade do que é necessário ao homem para ser justo» [2]. É verdade que a «justiça é dar a cada um o que é seu; mas eu acrescentaria que isso não basta» [3], dizia S. Josemaria. “Não basta” porque não se trata só de respeitar os direitos das outras pessoas, mas também de considerar que nas relações e justiça ‘o outro também é pessoa’.

É por esta razão que, ao tratar o tema da justiça, convém perguntarmo-nos: a quem devo ou a quem dou? Trata-se de perguntar pelo sujeito a quem este tipo de relações se refere. Uma justiça fundamentada na natureza das partes e não das leis.


1. Que devo a Deus?

Uma das perguntas que frequentemente se ouvem é: que devo a Deus? E a resposta é muito simples: devemos-Lhe tudo . De facto, a justiça com Deus ―se é que se pode chamar assim― é diferente da justiça com os outros homens. «As relações entre o homem e Deus não são relações de justiça em sentido próprio» [4]. A razão é que está num nível diferente: a relação é Criador-criatura e não criatura-criatura. Se queremos, portanto, saber como pode ser justa a relação de cada um com Deus, é necessário que nos perguntemos: quem é Deus para nós? Que significa dizer que é Criador? Ou melhor, que é essencialmente Deus?

S. João diz-nos numa das suas cartas: «Deus é Amor» (1Jo4, 8). Estas palavras dão-nos o horizonte para onde se dirige o modo cristão de viver a justa relação com Deus. Um caminho que se encontra inscrito na mesma natureza do homem: Deus, que é amor, criou o homem à sua imagem e semelhança por amor e deu-lhe a capacidade de responder amorosamente mediante a sua liberdade. Pode dizer-se que Deus quis que o homem realize a sua vivência existencial da própria liberdade precisamente através do ato mais essencial e mais próprio da natureza divina, que é amar.

UMA DEPENDÊNCIA TOTAL NÃO SIGNIFICA SUBMISSÃO OU ESCRAVATURA

É certo que a nossa dignidade se deve a Deus Criador, o que cria um vínculo de forte dependência, porque não nos criamos a nós próprios.Uma dependência total que não significa submissão ou escravatura, uma vez que no momento em que Deus nos criou, criou-nos livres. Liberdade humana que é manifestação da liberdade divina e capacidade de resposta para que o homem se decida a corresponder a Deus —que é Amor— amando.

A Sagrada Escritura mostra-nos que o homem justo é o homem bom e santo, ou seja, o homem que, através da sua vida, no exercício contínuo na sua liberdade, se decide pelo bem [5]. De facto, assinala-se Israel como um povo que ama o seu Deus precisamente porque ao longo da sua história se decide por Ele, que é o Bem.

Este caminhar de Israel no percurso do amor, escolhendo o bem, foi assumido por Cristo na sua vida. Ele foi o único verdadeiramente justo ante Deus porque, sendo Filho de Deus, fez-se homem para que o filho do homem fosse filho de Deus. [6]. Cristo, assumindo a natureza humana no Mistério da Encarnação, levou a Deus todas as realidades no Mistério da Redenção. Ele foi o único justo em sentido pleno e ensinou-nos o caminho do homem justo [7]: um caminho humano e divino de doação e correspondência ao amor de Deus Pai.

A RELAÇÃO ENTRE DEUS E OS HOMENS SERÁ JUSTA NA MEDIDA EM QUE TOMEMOS CONSCIÊNCIA DA NOSSA CONDIÇÃO DE FILHOS DE DEUS

Isto significa que «se Deus é amor e a experiência do amor é uma experiência humana, quer dizer que através do amor acedemos a uma imagem mais verdadeira de Deus e dos homens» [8]. Portanto, a relação entre Deus—que é amor—e os homens —criaturas criadas por amor à imagem e semelhança de Deus— será justa na medida em que tomemos consciência da nossa condição de filhos de Deus e, em consequência disso, atuemos por amor e para o amor.


2. Que devo aos outros homens?

A segunda pergunta a que queremos responder é: que devo aos outros? Neste caso, quando se fala de justiça entre os homens, é fácil confundir os deveres que emanam desta virtude com os da caridade. Um dever de justiça e um dever de caridade não são a mesma coisa. É diferente questionarmo-nos “que devo a uma pessoa?” e “porque devo preocupar-me com o próximo?”.

O perigo consiste em atribuir à caridade «coisas que, na verdade, pertencem aos mais estritos deveres de justiça, falsificando assim a verdadeira natureza dos problemas sociais, ou em que a insistência sobre os vínculos mais íntimos leve ao descuido das exigências mais básicas da justiça. Por exemplo, os vínculos de caridade que existem entre quem encarrega alguém de fazer um trabalho e quem o cumpre não podem levar de maneira alguma a que se pague menos do que é devido ou a cumprir o trabalho de modo descuidado» [9]. Impõe-se, portanto, a necessidade de entender bem a natureza desta virtude.

O «objeto da virtude da justiça é, pois, dar a cada um o seu direito, dar ou respeitar o que é seu e lhe é devido: a vida, a liberdade, os bens dos quais é legítimo proprietário, a fama, etc. Em resumo, pode afirmar-se que o objeto da virtude da justiça é o direito, mas entendendo por direito a coisa justa em si mesma, o justo, não a lei nem a ciência do direito» [10].

NA JUSTIÇA NÃO CABE A ACEÇÃO DE PESSOAS

Isto realça três características fundamentais. A primeira é a alteridade. No sentido mais óbvio, significa que a justiça é para os outros e, portanto, requerem-se sempre duas ou mais pessoas físicas ou morais. As obrigações e os deveres que dizem respeito ao próprio não são objeto da justiça.

No sentido mais profundo, a alteridade apresenta a pergunta mais essencial: Quem é o outro? A justiça representa-se habitualmente como uma mulher que tem os olhos vendados.É uma imagem que pretende salientar a importância de considerar que “o outro”, seja simpático ou antipático, conhecido ou desconhecido, irmão ou estrangeiro, etc., também é pessoa e tem a mesma dignidade que nós. Em consequência, não cabe a aceção de pessoas, o exercício despótico da autoridade, a degradação da reputação dos outros [11], etc., mas todos devem ser tratados e considerados como o que são: pessoas com a mesma dignidade de todos os outros [12].

A segunda característica mostra que na justiça existe um ‘débito em sentido estrito’. A justiça exige que se dê a cada um o que é estritamente seu. Alguns exemplos da atitude própria de um homem justo no âmbito do trabalho consistem em esforçar-se para não atrasar os outros, aproveitar as horas que se têm, pagar pontualmente, etc. Pelo contrário, comportamentos como reter o salário dos trabalhadores, roubar, defraudar ou não pagar as dívidas são contrários à virtude da justiça precisamente porque não se dá o que é devido. [13]. «Por isso, ‘o outro’ pode exigir e reivindicar ativamente o cumprimento do dever da justiça da nossa parte e a comunidade política pode legitimamente usar a coação para que o dever da justiça seja cumprido» [14].

A JUSTIÇA IMPLICA FUNDAMENTALMENTE RECONHECER QUE QUALQUER HOMEM, PELO FACTO DE SER HOMEM, TEM A MESMA PERSONALIDADE, SUBJETIVIDADE E DIGNIDADE FUNDAMENTAL

A terceira característica consiste na igualdade. Salienta que o cumprimento do dever da justiça restabelece a igualdade entre duas pessoas. Quando se encarrega alguém de um trabalho e se paga depois de o obter, restabelece-se a igualdade. A justiça só se pode dar entre pessoas que se encontram num plano de igualdade fundamental, ou seja, se se considera que ‘o outro é pessoa’.

Estas três características «realçam que a justiça implica fundamentalmente reconhecer que qualquer homem, pelo facto de ser homem, tem a mesma personalidade, subjetividade e dignidade fundamental» [15].

O caminho que S. Josemaria ensina para a prática da justiça nas suas três características implica, em primeiro lugar, «cumprir os próprios deveres» [16]. Deveres que se manifestam nas ocasiões mais normais da própria vida—os que vêm dos contratos e convenções que se acordem; a atenção à família; a atenção ao trabalho e as implicações que traz; a atenção à comunidade de vizinhos, aos amigos, às iniciativas, etc.— e pelas quais se concretiza a consideração pelos outros. Esta forma de viver a justiça tem como fundamento dar-se conta de ‘quem são os outros’ e dar-lhes o que se lhes deve.

O âmbito familiar é um lugar privilegiado para começar a viver a virtude da justiça. Por exemplo, o reconhecimento do cansaço de cada um dos esposos no fim de um longo dia de trabalho faz parte da virtude da justiça. A consequência disto será a prática de algumas características próprias da virtude da caridade, como a amabilidade ao falar e ao pedir ajuda. Outros exemplos da virtude da justiça na família são o respeito dos filhos pelos pais e pelos avós, a colaboração no que se refere à atenção aos filhos e nas tarefas de casa, dedicar o tempo necessário aos filhos em função das circunstâncias próprias de cada um, etc.


3. O que devo a Deus, devo aos outros?

Poderíamos ainda fazer uma última pergunta: Devo aos outros o que devo a Deus? O reconhecimento da intrínseca união que há entre a justa relação com Deus e a justiça em relação aos outros homens leva a se perceba firmemente que «quando há amor de Deus, o cristão também não se sente indiferente perante a sorte dos outros homens» [17] . Por isso, «não se ama a justiça se não se ama vê-la cumprida em relação aos outros» [18].

A inseparabilidade entre o que se deve a Deus—adorá-Lo, obedecer-Lhe e amá-Lo; entregar-Lhe tudo o que somos e temos, porque tudo é seu—e o que deve ser a justiça no que concerne aos homens —não só dar a cada um o seu direito, mas também valorizá-lo e apreciá-lo como pessoa—, influencia o modo cristão de viver a justiça com os outros. Por um lado, saber que Deus nos deu tudo e nos ama leva a querer amar os outros como Deus os ama. Esta é a medida que estabeleceu Cristo: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» [19]. Por outro lado, ser justo diante de Deus, amá-Lo, significa também ser justo com os outros homens e querer um mundo mais justo.

O CONVÍVIO PACÍFICO APOIA-SE NECESSARIAMENTE NA JUSTIÇA E NA CARIDADE

O Magistério da Igreja repetiu-o em numerosas ocasiões, quando insiste que o convívio pacífico se apoia necessariamente na justiça e na caridade. Uma sem a outra não é suficiente. S. João Paulo II referia-se a isto ao dizer que «a experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça por si só não é suficiente» [20].

O trabalho é, nos ensinamentos de S. Josemaria, o lugar onde se harmoniza a prática da justiça e da caridade. Um caminho no qual se destaca a inseparabilidade entre o homem justo diante de Deus e o homem justo com os outros. Assim o resumiu claramente quando dizia que um dever básico da justiça consistia em trabalhar bem: «Esse trabalho que ocupa os nossos dias e as nossas energias tem que ser uma oferenda digna para o Criador» [21], e uma tarefa que melhore a vida dos homens. São muito vastos os campos, aspetos e detalhes que podem ajudar a viver este caminho [22]. A reflexão pessoal de cada um pode ajudar a entrar nesse caminho.

Ignacio Ramoneda Pérez del Pulgar

Tradução de Maria Inês Moreira


[1]Catecismo da Igreja Católica, n. 1730.

[2]M. A. Ferrari, Justicia, en J. L. Illanes (ed.), Diccionario de san Josemaría Escrivá de Balaguer, Monte Carmelo, Pamplona 2013, p. 705.

[3]S. Josemaria, Amigos de Deus, nº 83

[4]Á. Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi, III: Morale Speciale, EDUSC, Roma 2008, p. 39.

[5]«‘Justo’ é o ‘homem bom’ porque cumpre a lei divina (Pr 10, 28; Sb 3, 10; etc.); o ‘justo’ por excelência será o Messias (Is 45, 8; 53; Sb 2, 18); ‘aquele que é justo pratica a justiça e o direito’ (Ez 18, 5); há sinonímia entre justiça e santidade (cfr. Mt 3, 15; 5, 6-10; 6, 1-33, 15, 20; 21, 32); ‘justo’ é o homem bom, fiel a Deus (cfr. Mt 23, 34; Lc 1, 6; Hch 10, 22; 2 P 2, 8); o ‘justo’ por excelência é Jesus Cristo (cfr. Mt 27,19; Lc 23, 47; Hch 3, 14)» (Ferrari, Justicia, p. 706).

[6]Cf. Athanasius de Alexandria, De Incarnatione, 54, 3 (PG 25, 192B).

[7]Cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et Spes, 7-XII-1965, «AAS» 58 (1966) n. 22.

[8]I. Adeva Martín, Caridad-Amor, en Diccionario de Teología.

[9]Rodríguez Luño, Scelti in Cristo, III, p. 43.

[10]Ibíd., p. 37.

[11]Catecismo da Igreja Católica, nn.2493-2499.

[12]«Ouvi a causa dos vossos irmãos, e julgai justamente entre o homem e seu irmão, e entre o estrangeiro que está com ele. Não discriminareis as pessoas em juízo; ouvireis assim o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus. porém a causa que vos for difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei» (Dt 1, 16-17).

[13]Catecismo da Igreja Católica, n. 2240.

[14]Rodríguez Luño, Scelti in Cristo, III, p. 38.

[15]Ibíd.,III, p. 39.

[16]Ferrari, Justicia, p. 706.

[17]Ibíd., n. 67.

[18]S. Josemaria, Cristo que passa, nº 52.

[19]Jo13, 34b.

[20]João Paulo II, Carta Encíclica Dives in Misericordia (20-XII-1980), «AAS» 72 (1980) n. 12.

[21]S. Josemaria, Amigos de Deus, nº 55

[22]Cf. Fernández Carvajal, F., Pasó haciendo el bien, Palabra, Madrid 2016.