2 de abril, aniversário da morte de S. João Paulo II

Recordamos a este propósito a entrevista com D. Javier Echevarría por ocasião da beatificação de João Paulo II, publicada na revista “Palabra” no seu número de maio de 2011.

— Viveu muito de perto todo o pontificado de João Paulo II. O que é que lhe ficou mais gravado da sua pessoa?

— João Paulo II insistiu frequentemente em que cada homem, cada mulher, atinge a sua plenitude na doação, na entrega de si mesmo a Deus e aos outros. E ele pessoalmente entregou-se ao Senhor e à Igreja com constante generosidade e autêntico sacrifício. A diferença entre o Papa cheio de fortaleza física, que ficou ao leme da Igreja em 1978, e João Paulo II nos seus últimos anos, inclinado sob o peso do cansaço e da doença, não indica somente a passagem do tempo, mas assinala também a medida total da sua entrega.

Numa ocasião acompanhei D. Álvaro del Portillo ao apartamento pontifício a uma hora avançada da tarde. Enquanto esperávamos a chegada do Papa, ouvimos uns passos que se aproximavam por um corredor, como que arrastando os pés. Era o Santo Padre, muito fatigado. D. Álvaro exclamou: “Santo Padre, como está cansado!”. O Papa olhou-o e, com voz firme e amável, respondeu: “Se a estas horas não estivesse cansado, seria sinal de que não teria cumprido o meu dever”.

— Procurando fazer um resumo quase impossível, o que deixou João Paulo II à Igreja?

— Deixou-nos um esplêndido tesouro de doutrina e de exemplo de caridade pastoral. Destacaria, no seu pontificado, um impulso para uma nova evangelização através da vida corrente, através de pessoas ativamente presentes em todos os campos dos afazeres humanos, com uma conduta coerente com a fé.

— Talvez por isso se entendeu muito bem com o Opus Dei, cujo espírito é a santificação e o apostolado na vida corrente...

— Tenho que esclarecer que a veneração e o agradecimento dos fiéis do Opus Dei se estendem a todos os Papas, pelo trabalho que realizaram para o bem da Igreja universal e porque todos, desde Pio XII até hoje, foram providenciais para o desenvolvimento dos apostolados do Opus Dei. Com João Paulo II existe uma particular dívida de gratidão, porque durante o seu pontificado tiveram lugar alguns eventos de especial importância para a história da Obra, como o ter erigido esta parte da Igreja em Prelatura pessoal, a beatificação e canonização de São Josemaria ou a criação da Universidade Pontifícia da Santa Cruz.

Sem dúvida que o Papa via na Obra um instrumento eficaz na linha da evangelização através da vida corrente. Mas, ao mesmo tempo, diria que não teve predileção diferente pelo Opus Dei; João Paulo II foi verdadeiramente o Papa de todos, um pai sensível a todos os carismas que o Espírito Santo suscita. Penso que, com ele, milhões de pessoas se sentiram “filhos prediletos”; e com esta alegria e agradecimento diários viveram os fiéis do Opus Dei.

— João Paulo II conhecia o Opus Dei há muito?

— Durante o Concílio Vaticano II apresentaram-lhe, na Aula Conciliar, D. Álvaro del Portillo, mas depois não houve mais contactos até que em 1971 o jovem cardeal de Cracóvia, Karol Wojtyla, durante um sínodo de Bispos em Roma, assistiu a uma conferência do cardeal Höffner organizada pelo CRIS, “Centro Romano d’Incontri Sacerdotali”, que tinham promovido alguns sacerdotes do Opus Dei. Mais tarde, em 1974, proferiu uma conferência nesse mesmo centro, na qual fez uma referência final a uma expressão de Mons. Escrivá de Balaguer, que este sacerdote considerava o caminho para refletir na terra a paz de Cristo: “santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar com o trabalho”.

Quatro anos mais tarde, o cardeal Wojtyla veio a Villa Tevere, sede central do Opus Dei, almoçar com D. Álvaro. Ficou com muito carinho por D. Álvaro, sobretudo depois de ser eleito para ocupar a Cátedra de Pedro. As pessoas santas entendem-se muito bem.

— Poderia contar alguma recordação dos seus primeiros encontros com o novo Papa?

— Inesperadamente, o primeiro encontro teve lugar no dia seguinte à eleição, a 17 de outubro de 1978. D. Andrea Deskur, um Bispo polaco que era então Presidente do Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais, e que era amigo fraterno de D. Álvaro e ainda mais amigo de Karol Wojtyla desde a sua juventude, encontrava-se internado na Policlínica Gemelli por causa de um AVC que tinha sofrido alguns dias antes.

No dia da eleição do Papa, D. Álvaro ligou-lhe pelo telefone. Não lhe queria dar a boa notícia diretamente, para não lhe provocar alguma emoção que, porventura, lhe pudesse fazer mal. Limitou-se a perguntar: “Andrea, sabes quem elegeram Papa?”. Deskur respondeu: “Não podiam ter feito melhor eleição”. E acrescentou: “Amanhã encontro-me com ele”. D. Álvaro pensou que o doente estava a delirar; como é que ia sair do Vaticano o Papa recém-eleito?

No dia seguinte D. Álvaro foi visitar o seu amigo. Eu acompanhei-o. E que enorme surpresa quando, ao sair do quarto do doente, nos disseram que devíamos esperar num canto com outras pessoas, porque tinha chegado o Papa e tinham bloqueado a saída do andar. Maior surpresa ainda quando, ao abandonar o quarto do doente, João Paulo II se dirigiu a D. Álvaro e lhe deu um abraço. D. Álvaro comoveu-se filialmente e, ao beijar o anel ao novo Pontífice, notou que levava o terço na mão.

Foram dias muito intensos, os do início do pontificado. Pudemos ver o Papa com uma frequência que não teríamos imaginado. Por exemplo, D. Álvaro quis ir rezar ao santuário de La Mentorella, perto de Roma, para encomendar o novo Papa à intercessão da Santíssima Virgem. E ali mesmo, apoiado no carro, escreveu um postal a João Paulo II em que lhe manifestava o seu desejo de o ajudar com a oração; punha à sua disposição as mais de sessenta mil Missas que diariamente ofereciam os fiéis do Opus Dei pelas intenções de quem fazia cabeça na Obra; era, precisava nessas palavras, o melhor apoio que lhe poderia oferecer. Passados poucos dias, recebeu um telefonema do próprio Papa; queria agradecer aquele gesto; pelo tom de voz percebia-se que o tinha comovido o tesouro que tinha posto nas suas mãos, e pode dizer-se que se tocava o grande amor do Pontífice à Eucaristia.

No dia 28 de outubro, João Paulo II recebeu-o pela primeira vez numa audiência informal. Encontravam-se também presentes Mons. Joaquín Alonso e eu, e pudemos ver como o Papa escutava com muita atenção e afeto o que D. Álvaro lhe referiu. Recordo que afirmou com segurança, dando um significativo e carinhoso murro na mesa, que a Igreja ia superar todas as dificuldades com a ajuda da Virgem Santíssima, o primeiro opus Dei, a mais importante obra de Deus. D. Álvaro respondeu que partilhava plenamente dessa esperança. Também nesses momentos, D. Álvaro comentou-lhe que, por motivo da Sede Vacante, pelo inesperado falecimento do venerado João Paulo I, não se tinha podido receber a carta que o novo Pontífice, anterior Patriarca de Veneza, tinha querido enviar pelo 50º aniversário da fundação do Opus Dei. Álvaro del Portillo acrescentou que João Paulo I tinha entendido muito bem que o Opus Dei, de facto, não era um Instituto Secular e que havia que pensar na solução jurídica oportuna. Novamente, referindo-se a essa carta, João Paulo II disse: “La facciamo!”.

— Poderia contar algum outro detalhe a respeito dos trabalhos finais para erigir o Opus Dei em Prelatura pessoal?

— Já Paulo VI e João Paulo I tinham manifestado a sua intenção de concluir o iter jurídico da Obra, mas o Senhor chamou-os antes que pudessem enfrentar a questão. João Paulo II quis interesar-se desde muito cedo. Pôs o estudo nas mãos do cardeal Sebastiano Baggio, Prefeito da Congregação para os Bispos, e foi nomeada uma comissão paritária composta por peritos em Direito Canónico da Santa Sé e do Opus Dei. O Papa seguiu com atenção todos os passos, conhecia muito bem os pormenores. Os detalhes técnico-canónicos são bem conhecidos. Gostaria aqui de salientar o interesse paterno que o Santo Padre pôs naquele processo, ao mesmo tempo que deixava aos canonistas inteira liberdade para estudar as questões. Foi também muito paternal – não só prudente – ao enfrentar as dificuldades provocadas pelas objeções de alguns Bispos, de resto compreensíveis ao tratar-se de uma figura canónica nova. Ele próprio procurou encarregar-se disso, dispondo que essas objeções fossem consideradas e resolvidas adequadamente.

— Em que medida interveio João Paulo II no governo do Opus Dei? Deu indicações?

— O mais importante, claro está, foi erigir o Opus Dei em Prelatura pessoal, ato com o qual punha esta parte da Igreja formada por leigos e sacerdotes, homens e mulheres de todas as classes e condições, sob a jurisdição de um prelado para que – também com o seu presbitério – servisse melhor a Igreja universal, em comunhão com as igrejas particulares. De resto, sugeria ao Prelado iniciativas apostólicas, já que estava muito convencido da eficácia do apostolado pessoal de cada fiel do Opus Dei e de todos aqueles – pessoas de todos os ambientes da sociedade – que se aproximam do trabalho apostólico da Obra.

Uma petição expressa do Papa, por exemplo, foi a de erigir o seminário internacional Sedes Sapientiae, em Roma, com o objetivo de formar sacerdotes que pudessem ser depois formadores em seminários de diversos países, também nos que acabavam de conseguir a liberdade após o período de domínio soviético.

A resposta de D. Álvaro, sempre pronta e fiel, estimulava-o também a sugerir iniciativas de apostolado. João Paulo II falava da nova evangelização pelo menos desde 1981, mas foi em 1985 que deu um forte impulso a esta prioridade pastoral, sobretudo nos países da Europa ocidental e América do Norte, onde os sintomas do secularismo iam crescendo de modo alarmante. Uma data simbólica é a de 11 de outubro de 1985, dia em que o Santo Padre concluiu um Sínodo extraordinário de Bispos, celebrado em Roma, convidando a Igreja para um renovado impulso missionário, desejo que comentou com o Prelado numa conversa. D. Álvaro fez-se imediatamente eco deste programa, e com data de 25 de dezembro do mesmo ano, escreveu uma Carta pastoral aos fiéis da Prelatura, urgindo-os a colaborar com todas as suas forças nesta tarefa, que era particularmente necessária sobretudo nos países da velha Europa, Estados Unidos e Canadá.

O Papa convidou D. Álvaro a começar o trabalho da Obra nos países escandinavos. E, naturalmente, na Polónia. Pormenorizava que era muito importante difundir entre o povo de Deus na Polónia a necessidade da direção espiritual pessoal e sabia como se praticava assiduamente no Opus Dei. Este alento em continuar a missão evangelizadora com o espírito próprio do Opus Dei, o Papa continuou-o a dar a D. Álvaro – como fez depois comigo – até ao final da sua vida.

Em diversas audiências, o Papa deu-lhe várias indicações, juntamente com o estímulo para continuar nos trabalhos apostólicos que já se realizavam, por exemplo, a recomendação de que se trabalhasse muito a fundo no apostolado com os intelectuais, especialmente através das pessoas que já se encontram nesses ambientes, procurando alentá-los na sua tarefa, e mostrar-lhes que a fé e a razão não andam por caminhos separados, e muito menos opostos. João Paulo II pensava que os intelectuais eram pessoas chave para a nova evangelização, e preocupava-se de que se lhes prestasse um cuidado pastoral particular. Do mesmo modo considerava prioritária a evangelização das pessoas que desempenham cargos de responsabilidade no âmbito político e económico, porque é a maneira mais eficaz de melhorar a situação de todos, em primeiro lugar dos mais necessitados. Neste sentido, animava os fiéis da Prelatura e muitas outras pessoas que trabalham em escolas de negócios, dizendo: “Se aqueles que estudam estas matérias se tornam cristãos, se se convertem, será mais fácil erradicar a pobreza”.

— E D. Álvaro, dava sugestões ao Papa sobre a Igreja?

— Nalgumas ocasiões pedia-lhas o Santo Padre. Em finais de 1978, quando se questionava sobre a oportunidade de fazer a viagem ao México para a reunião do CELAM – era uma situação bastante delicada – o Papa comentou a D. Álvaro, diante de outras pessoas, que tinha ouvido várias opiniões sobre o assunto. Claramente estava a pedir-lhe a sua. Com simplicidade, D. Álvaro sugeriu-lhe que empreendesse a viagem, pois seria um bem muito grande para a Igreja no México, na América Latina e em todo o mundo. O tom da voz de D. Álvaro era comedido; dava a entender que lhe pareceria bem qualquer decisão que o Papa tomasse. A viagem realizou-se com os resultados extraordinários que todos conhecemos. Naturalmente, o Papa deve ter consultado outras pessoas e os organismos da Cúria romana.

Depois da viagem ao México, convidou-nos para um almoço e contou com alegria muitos detalhes da sua visita aquele país. Não falava do seu trabalho, mas da fé e da resposta do povo mexicano ante a presença do sucessor de São Pedro.

Em várias ocasiões, D. Álvaro sugeriu a João Paulo II que escrevesse uma carta ou uma exortação sobre São José, para fomentar a devoção dos fiéis e para lhe pedir que protegesse a Igreja. Por isso, foi extraordinária a sua alegria quando se publicou a Exortação Apostólica Redemptoris Custos, de 15 de agosto de 1989.

Recordo outra sugestão relacionada com a piedade. Tínhamos convidado para almoçar em Villa Tevere um sacerdote espanhol do Cabido de São Pedro, Mons. Pedro Altabella. Foi mencionado o bem que fazia às almas a prática da exposição permanente do Santíssimo Sacramento nalgumas igrejas. D. Joaquín Alonso comentou que seria um bem muito grande seguir esse costume em São Pedro e D. Álvaro apoiou-o vivamente. O sacerdote “agarrou” a sugestão e comentou que diligenciaria para a fazer chegar in altissimis. Passado pouco tempo começou esse culto à Eucaristia na basílica vaticana que produziu tão bons frutos. Estávamos em 1981.

Num dos convites que recebemos do Papa para almoçar nos aposentos pontifícios, D. Álvaro falou da necessidade de fomentar as confissões, para facilitar às pessoas o reencontro com o Senhor, sensibilizando os sacerdotes e os leigos para que participassem neste apostolado. Para ilustrar o que dizia, relatou algumas histórias dos bons resultados que se tinham obtido pelo mundo com este modo de ajudar as almas. João Paulo II, com um sorriso de assentimento, comentou: “Faz-me lembrar os bons párocos zelosos dos meus tempos, que gastavam as suas vidas com esta maneira de atender as almas que amavam com todas as suas forças”. Outras vezes, em conversas semelhantes, o Papa dizia, referindo-se aos fiéis do Opus Dei, leigos e sacerdotes: “Vocês têm o carisma da Confissão”. Sei que o dizia também a outras pessoas, porque nos foi comentado, ao falar da Obra.

— O Papa visitou algum centro do Opus Dei?

— No plano de visitas pastorais às paróquias de Roma, esteve também nas três confiadas ao Opus Dei e deteve-se nos centros anexos.

Talvez o mais singular a este respeito é que, quando se encontrava bem de saúde, passou várias vezes por uma casa de retiros da Obra nos Abruzos, chamada Tor d’Aveia. A quinta está situada na encosta de um monte e a partir dali podem fazer-se bonitas excursões ou, então, praticar esqui. Como é sabido, o Papa necessitava, de vez em quando, de fazer algum descanso e aí podia fazê-lo de forma discreta. Saía do Vaticano em privado, seguido pelo carro da escolta e chegava a Tor d’Aveia – a pouco mais de uma hora de Roma – sem que ninguém o notasse. Era um bom descanso para o Papa. As mulheres da Obra encarregadas da casa puderam ter momentos de tertúlia com ele e com o seu secretário, mas guardaram silêncio para que ninguém incomodasse o Papa. Mesmo D. Álvaro foi lá apenas uma vez para o acolher. De maneira análoga, João Paulo II esteve uma vez noutro centro de conferências que utilizamos em Ovindoli, não muito longe dali, onde há uma estação de esqui.

— Esteve muitas vezes nos aposentos do Papa, convidado para almoçar. De que se falava nesses encontros?

— De muitos temas, num contexto familiar: a situação da Igreja, o apostolado dos fiéis do Opus Dei em diversos países, etc.

Uma dessas vezes o Papa ofereceu a D. Álvaro uma edição pequena do Novo Testamento, que ele utilizou depois durante as viagens, para recordar expressamente o Romano Pontífice. Não a usava nas outras ocasiões porque tinha uma letra muito pequena.

— Algumas recordações relacionadas com o atentado de 1981?

— Nesses momentos estávamos reunidos com o Conselho do Prelado para os apostolados com as mulheres. Logo que a notícia foi conhecida, interrompemos a reunião e fomos à Policlínica Gemelli. D. Álvaro pôde entrar, convidado por Mons. Angelini, para o local em que se encontravam alguns membros da Cúria, enquanto os médicos operavam o Santo Padre.

D. Álvaro pediu imediatamente a toda a Obra que rezássemos pelo Papa. Íamos com frequência ao Gemelli, sabendo, no entanto, que não poderíamos entrar para o visitar; bastava-nos rezar pela sua Pessoa com aquela presença física mais próxima.

Na altura da viagem ao México, D. Álvaro tinha oferecido ao Papa uma cassete com canções mexicanas; são canções de amor que o povo canta também à Virgem de Guadalupe. Pois bem, um dia em que nos deixaram visitar o Santo Padre no policlínico, encontrámo-lo a ouvir num gravador aquelas canções. “Ajudam-me a rezar”, comentou. Nada fazia pressagiar este encontro, mas foi o próprio Papa que deu indicações para que entrássemos no quarto. D. Álvaro pôs filialmente uma mão sobre o braço do Santo Padre, e comprovou que a febre era muito alta. O encontro durou pouco, como é lógico. Mas notava-se que a Igreja rezava por Pedro, como em Jerusalém, e que Pedro oferecia tudo pela Igreja de Jesus Cristo.

— Não falámos ainda da beatificação e canonização de São Josemaría, proclamadas por João Paulo II.

— O Papa estava muito contente por elevar aos altares o fundador da Obra. Como se recordará, antes da beatificação em 1992 houve algumas incompreensões que produziram um certo alvoroço. Eram sacudidelas do demónio para impedir aquilo que, como disse João Paulo II imediatamente depois da beatificação, foi “uma grande manifestação de fé”. Ao concluir a cerimónia, o próprio João Paulo II manifestou a sua alegria ao ver aquela multidão em recolhimento e oração, e disse a D. Álvaro, que o acompanhava para a basílica de São Pedro: “Agora entendo porque é que alguns sectários não queriam que acontecesse esta manifestação de fé”. O Papa acrescentou que agradecia ao Senhor que se tivesse realizado aquela cerimónia, em que também tinha beatificado a Madre Bakhita, canossiana, porque tinha podido fazer chegar ao mundo a situação trágica da Igreja no Sudão. Enfim, o que ficou para a história é o bem que a devoção a São Josemaria está a fazer em toda a Igreja. E o Papa tinha consciência disso.

Na canonização, o Papa definiu São Josemaria como “o santo do quotidiano”, muito em sintonia com aquela sua ideia de evangelizar a sociedade através da vida corrente: na igreja doméstica que é cada família, no trabalho, no desporto e nas relações sociais.

— Falou das críticas, que também não faltaram a João Paulo II. Com que espírito enfrentava o Papa essas contradições?

— Era muito sobrenatural e sabia carregar a cruz. Além disso, era muito determinado e continuava em frente procurando o bem da Igreja. Uma vez D. Álvaro participou na oração do Terço com o Papa. Costumava ir sempre um grupo de pessoas e naquela ocasião estava também a Madre Teresa de Calcutá. No final da oração, o Papa apresentou a Madre Teresa a D. Álvaro, que lhe agradeceu porque sacerdotes da Obra tinham atendido muito bem as suas monjas em várias partes do mundo. Então o Papa disse-lhe meio a brincar meio a sério: “Madre, porque é que muitos criticam o Papa e o Opus Dei enquanto todos falam bem da Madre Teresa?”. E ela respondeu com grande sinceridade: “Rezem por mim, para que seja humilde”.

— João Paulo II quis rezar diante dos restos mortais de D. Álvaro no dia da sua morte. Poderia contar algo daqueles momentos?

— Em 11 de março de 1994, no seu 80º aniversário, D. Álvaro recebeu um texto autógrafo de João Paulo II, escrito sobre uma fotografia: “Ao venerado e querido irmão Álvaro del Portillo, que com a alma agradecida ao Senhor, celebra o seu octogésimo aniversário, expressando-lhe o meu vivo apreço pelo seu fiel trabalho ao serviço da Igreja, e implorando abundantes graças celestiais para um ministério ainda longo e rico em frutos, concedo-lhe, do coração, uma especial bênção apostólica, tornando-a extensiva, com afeto, a todos os sacerdotes e leigos da Prelatura”.

Na tarde de 22 de março de 1994 tínhamos regressado de uma peregrinação à Terra Santa e passadas poucas horas, na madrugada do dia 23, o Senhor chamou a Si o Prelado do Opus Dei. Comuniquei a notícia a D. Stanislaw Dziwisz, secretário particular de João Paulo II, pelas seis e meia da manhã. D. Stanislaw disse-me que a comunicaria ao Santo Padre e que encomendariam a Deus na Missa o eterno descanso do Prelado. Tivemos a amável surpresa de que, por volta das dez horas da manhã, ligou o Prefeito da Casa Pontifícia, Mons. Monduzzi, para informar que o Santo Padre desejava ir à tarde à sede da Cúria Prelatícia, para rezar diante do corpo de D. Álvaro. Não me detenho em pormenores dessa visita, mas quero assinalar o interesse manifestado por João Paulo II. Perguntou-me a que horas e onde tinha celebrado D. Álvaro a sua última Missa, porque sabia que tinha regressado a Roma no dia anterior. Quando lhe respondi que às onze da manhã, na igreja do Cenáculo, surpreendeu-me que o Papa fizesse rapidamente o cálculo entre a hora da Santa Missa e a da sua ida para o Céu. No final agradeci-lhe a visita, tão insólita, mas o Papa atalhou dizendo: “Tinha de ser, tinha de ser”.

— E, depois da sua nomeação como Prelado em 1994, teve ocasiões similares de relação com João Paulo II?

— O Papa continuou a ser igualmente paternal e afetuoso. Por exemplo, telefonou-me pessoalmente para me anunciar a nomeação como prelado. Eu, em diversas ocasiões, fui-o informando sobre o desenvolvimento dos apostolados da Obra e pude comprovar a sua alegria. Poucos meses depois da nomeação, quis conferir-me a ordenação episcopal. A partir do ano 2000 o Papa estava já mais doente, mas continuou a ter a delicadeza de me receber em audiência com certa frequência, para ter notícias das atividades apostólicas da Obra em todo o mundo.

Três dias depois da morte do Papa fui com D. Joaquín Alonso rezar diante dos seus restos mortais na Basílica de São Pedro e cumprimentar D. Stanislaw, que nos convidou para rezar na capela privada e em seguida nos encorajou a subir ao terraço do palácio apostólico. Queria mostrar-nos o rio de gente que vinha prestar a última homenagem ao Papa e a quantidade de televisões de todo o mundo que se tinham instalado nos arredores da Praça de São Pedro. Pouco depois, entregou-me uma batina de João Paulo II, para que a conservássemos como relíquia.

Michele Dolz