Em certa ocasião, um doutor da lei se aproximou de Jesus para perguntar o que devia fazer para conseguir a vida eterna. Na realidade, ele queria testar a ortodoxia do rabi de Nazaré, de quem, ao que parece, não sabia o que pensar[1]. Mas Jesus não se incomodou. Aceitou o diálogo e lhe devolveu a pergunta «O que está escrito na lei? Como é que lês?»[2]. O doutor respondeu com umas palavras do Shemá Israel, Escuta Israel[3], que todo israelita aprendia desde pequeno: «Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento»[4] e acrescentou com o livro do Levítico: «e a teu próximo como a ti mesmo»[5].
Nessas duas fórmulas estão sintetizadas toda a lei e os profetas[6], de modo que o Senhor diz: «Respondeste bem. Faz isto e viverás»[7]. O doutor não esperava que sua pergunta se solucionasse com essa simplicidade desconcertante. «Querendo justificar-se»[8] insiste com uma nova questão: «E quem é o meu próximo?»[9]. Jesus não se rende, pois quer ganhar a confiança de seu interlocutor. Fala-lhe então ao coração e, com ele, a todos os homens e mulheres de todos os tempos, com sua linguagem, ao mesmo tempo simples e solene: é a parábola do bom samaritano.
“Fazer-se próximo”
No pobre homem assaltado no caminho de Jerusalém a Jericó, os Padres da Igreja viam Adão, e com ele – porque seu nome significa precisamente “homem” – viam a humanidade maltratada pelo seu próprio pecado, pelo nosso próprio pecado.
No pobre homem assaltado no caminho de Jerusalém a Jericó, os Padres da Igreja viam Adão, e com ele – porque seu nome significa precisamente “homem” – viam a humanidade maltratada pelo seu próprio pecado, pelo nosso próprio pecado. No bom samaritano reconheciam Jesus, que vem com paciência para nos curar, depois de que aqueles que não eram capazes de trazer a salvação ao mundo passassem longe. Ele, por outro lado, pode e quer. Uma antiga e venerável homilia imagina assim o encontro de Cristo com Adão – que é também o encontro com cada um de nós – ao descer para os infernos: «Eu sou o teu Deus, quem por tua causa fiz-me teu filho; por causa de ti, e por causa daqueles que nasceriam de ti, a todos aqueles que eram escravos, digo-o eu: “Saí”, e aos que se encontram nas trevas: “Iluminai-vos”, e aos que dormem: “Levantai-vos!”»[10].
Com Jesus, os cristãos, seus ungidos, são chamados a levar a sua salvação – a serem bons samaritanos. Como seu Senhor, também eles devem curar as feridas dos homens e derramar azeite e vinho sobre elas[11]: devem ser bons estalajadeiros até a volta do Samaritano. «Essa pousada, se notáreis bem, é a Igreja. Agora é pousada porque nossa vida é um estar de passagem. Será casa que nunca abandonaremos quando tenhamos chegado curados ao reino dos céus. Enquanto isso, aceitamos com gosto o tratamento na pousada»[12]. Este é o horizonte que o Senhor quer abrir ao doutor da lei, e com ele, a todos os cristãos, e a todos os seres humanos. Não o repreende por sua estreiteza: faz-lhe pensar primeiro, e depois, sonhar: «Vai e faz tu o mesmo»[13]. Como acontece com frequência nos Evangelhos, é bom não passar muito depressa por cima da concisão do relato. A resposta à pergunta de Jesus: - «quem foi seu próximo?» – é certamente óbvia: «Aquele que usou de misericórdia para com ele.»[14]. O que não é evidente, porém, é por que o Senhor faz essa pergunta que vira do avesso a colocação do doutor da lei: «Jesus inverte a perspectiva: não se trata de reconhecer o outro como meu semelhante, mas de ser capaz de fazer-me semelhante ao outro»[15]. Diante de uma atitude estreita, que delimita o campo de ação para fazer o bem – considerando, por exemplo, se os outros pertencem ao meu grupo, se depois me devolverão o favor –, o Senhor responde convidando a levantar a vista, a ser ele mesmo próximo.
A palavra próximo converte-se assim, da qualificação de um tipo de pessoas que mereceriam minha atenção, a uma qualidade do coração. É a pedagogia de Deus, que dá uma virada à pergunta “a quem fazer o bem” e a transfigura: o que era matéria de discussão e casuística nas escolas rabínicas – onde estava o limite? Até onde tenho que compadecer-me dos outros? – converte-se em um desafio audaz. O cristão, dizia São João Paulo II, «não se pergunta a quem deve amar, porque perguntar-se “quem é meu próximo?” já implica colocar limites e condições (...). A pergunta legítima não é “quem é meu próximo?”, mas sim “de quem devo fazer-me próximo?”. E a resposta é: qualquer um que sofre necessidade, ainda que me seja um desconhecido, converte-se para mim em próximo, ao que eu devo ajudar”[16]. É a proximidade[17], neologismo do Papa Francisco que nos lembra nossa vocação de ser próximos do nosso próximo, a ser «ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença»[18].
O caminho até a plenitude da Lei
Com Jesus, os cristãos, seus ungidos, são chamados a levar a sua salvação – a serem bons samaritanos. Como seu Senhor, também eles devem curar as feridas dos homens e derramar azeite e vinho.
Poderíamos dizer que este diálogo com o doutor da lei resume o caminho que vai desde os ensinamentos morais do Antigo Testamento até a plenitude da vida moral em Cristo. E que, como nos lembra São Paulo, a lei do povo escolhido é boa e santa[19], mas não definitiva. Ordenava-se, principalmente, a preparar os corações para a chegada de Jesus. A pergunta do fariseu – «qual é o principal mandamento da Lei?»[20] – parece refletir certa angústia diante dos inúmeros preceitos que, com uma visão legalista, foram se introduzindo na vida religiosa israelita. Em outro momento, Jesus Cristo se queixa dos doutores da lei «que carregais os homens com pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os fardos»[21].
E mais ainda: em algumas ocasiões, as tradições humanas terminaram por tornar-se uma desculpa para não se sujeitar a um mandato divino, assim, Jesus denuncia a atitude de quem se escudava com as ofertas do Templo para não ajudar a seus pais[22].
Por isso, Jesus Cristo aponta para o fundamental: o Amor a Deus e ao próximo. Deste modo, se cumpre o que Ele diz de si mesmo: que não veio «abolir a lei ou os profetas (...), mas sim para levá-los à perfeição»[23].
A Aliança que Deus celebrou com seu povo incluía umas prescrições que não tinham o sentido original de impor-lhes cargas, mas sim, muito ao contrário, o de levar-lhes por caminhos de liberdade: «Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal. Mando-te hoje que ames o Senhor (...) para que vivas e te multipliques, e que o Senhor, teu Deus, te abençoe na terra em que vais entrar para possuí-la»[24].
A terra prometida aos hebreus simboliza um lugar os homens e as mulheres de todos os tempos podem entrar, se vivem os mandamentos de Deus em seu autêntico sentido. É uma porta para chegar à comunhão com Deus, porque, fora dela, qualquer outra terra parece inóspita: «O que é preciso para conseguir a felicidade não é uma vida cômoda, mas um coração enamorado»[25].
Se, por um lado, os preceitos rituais e legais do povo de Israel terminaram com a vinda de Jesus Cristo, por outro, os Dez Mandamentos, conhecidos também como o Decálogo, são perenes: recolhem os princípios fundamentais para poder amar a Deus – colocando-o por cima de tudo, respeitando seu santo nome, dedicando-lhe os dias de festa, como os cristãos fazemos no domingo – e aos outros – alimentando o carinho e reverência aos pais, protegendo a vida, a pureza de coração, etc. Quantas gerações de israelitas meditaram a verdade e a solicitude do Pai que estão nessas dez palavras! «Minha herança eterna são as vossas prescrições, porque fazem a alegria de meu coração»[26], uma amostra da misericórdia divina, que não quer que nos extraviemos, que deseja que tenhamos uma vida plena. O mundo pode se rebelar às vezes contra os Mandamentos, como se fossem imposições ultrapassadas, próprias de um estágio infantil da humanidade. Mas não faltam exemplos de como as sociedades e as pessoas se desmoronam quando creem que podem ignorá-los. As dez palavras do Senhor são as constantes do universo interior do ser humano. Se são alteradas, seu coração se desfigura.
Para que sejais filhos do vosso Pai
O Decálogo se engloba na nova lei que Jesus Cristo instaurou ao salvar-nos dando sua vida na Cruz. Essa nova lei é a graça do Espírito Santo concedida mediante a fé em Cristo[27]. Agora, portanto, não temos somente um horizonte moral a que aspirar: trata-se de viver em Jesus, de parecer-nos cada vez mais com Ele, deixando que o Espírito Santo nos transforme, para cumprir assim seus mandamentos.
Como ser mais parecidos com Jesus Cristo? Onde podemos ver seu modo de ser? O Catecismo diz que «As bem-aventuranças desenham o rosto de Jesus Cristo e descrevem sua caridade»[28]. Nesses ensinamentos recolhidos pelos evangelhos, vemos o retrato de Nosso Senhor, seu rosto que revela o amor compassivo do Pai a todos os homens. Elas recolhem as promessas feitas ao Povo Eleito, mas as aperfeiçoam ordenando-as não somente à posse da terra, mas ao Reino dos Céus[29].
No evangelho de Mateus, as primeiras quatro bem-aventuranças se referem a uma atitude ou forma de ser que tem seu centro nas palavras de Jesus[30]: «Bem-aventurados os pobres de espírito», «os que choram», «os mansos», «os que têm fome e sede de justiça». Convidam a confiar totalmente em Deus e não nos nossos recursos humanos, a enfrentar com sentido cristão os sofrimentos, a ser pacientes dia a dia. A estas bem-aventuranças se acrescentam outras que põem o acento na ação: «Bem-aventurados os misericordiosos», «os limpos de coração», «os pacíficos», e outras mais que nos advertem que, para seguir Jesus, temos que sofrer algumas contradições [31], sempre com alegria, pois «a felicidade do Céu é para os que sabem ser felizes na terra»[32].
As bem-aventuranças certamente manifestam a misericórdia de Deus, que se empenha em dar um júbilo sem limites àqueles que O seguem: «Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.»[33] Elas não são, no entanto, uma coleção de aforismos para imaginar um utópico mundo melhor que alguém se ocupará de fazer possível, ou para consolar-se falsamente diante das dificuldades do momento. Por isso, as bem-aventuranças são também chamadas exigentes de Deus ao coração de cada ser humano. Elas nos empurram a comprometer-se a trabalhar pelo bem e a justiça já nesta terra.
Considerar com frequência as bem-aventuranças, talvez na oração pessoal, ajuda a saber como aplicá-las na vida diária. Por exemplo, a mansidão se concretiza tantas vezes no «sorriso amável para quem te incomoda, aquele silêncio ante a acusação injusta, a tua conversa afável com os maçantes e os inoportunos, o não dar importância cada dia a um pormenor ou outro, aborrecido e impertinente, das pessoas que convivem contigo...»[34].
Ao mesmo tempo, quem procura viver segundo o espírito das bem-aventuranças, vai incorporando à sua personalidade umas atitudes e modos de julgar as coisas que lhe dão maior facilidade para cumprir os mandamentos. A limpeza de coração lhe permite ver a imagem de Deus em cada pessoa, considerando-a como alguém digna de respeito e não como objeto para satisfazer uns desejos retorcidos. Ser pacíficos leva-nos a viver como filhos de Deus e a reconhecer os outros como seus filhos, seguindo esse «caminho mais excelente»[35] da caridade, que «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta»[36], transformando os agravos em uma ocasião de amar e rezar por aqueles que prejudicam[37]. Em resumo, ser pacíficos nos leva a modelar o nosso coração segundo os contornos que traçam as bem-aventuranças, torna realidade o ideal que Jesus Cristo nos propõe de ser misericordiosos como o «Pai celestial é misericordioso»[38]. Transformamo-nos em portadores do amor de Deus, aprendemos a ver nos outros esse próximo que necessita nossa ajuda. Somos, em Cristo, esse bom samaritano que sabe se conduzir pela misericórdia, para cumprir em plenitude a lei da caridade. Então, nosso coração se expande, como aconteceu com o coração de Nossa Senhora.
Carlos Ayxelá – Rodolfo Valdés
[1] Cfr. Lc 10, 25.
[2] Lc 10, 26.
[3] O Shema‘ Israel é o nome que os israelitas usam para se referir ao texto bíblico do livro do Deuteronômio, que recitam diariamente nas suas orações: “Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,4-5).
[4] Deut 6,5
[5] Lev 19,18
[6] Mt 22, 40
[7] Lc 10, 28
[8] Lc 10, 29
[9] Lc 10, 29
[10] Homilia sobre o grande e santo Sábado (PG 43, 462).
[11] Lc 10, 34.
[12] Santo Agostinho, Sermão 131, 6
[13] Lc 10,37
[14] Lc 10, 37
[15] Francisco, Mensagem, 24-I-2014.
[16] São João Paulo II, Discurso, 2-II-1999.
[17] Francisco, Ex.Ap. Evangelii Gaudium (24-XI-2013), nº 169.
[18] Francisco, Mensagem, 4-X-2014.
[19] Cfr. Rom 7, 12.
[20] Mt 22,36
[21] Lc 11,46
[22] Mt 15, 3-6
[23] Mt 5, 17
[24] Deut 30, 15-18
[25] São Josemaria, Sulco, nº 795
[26] Salmo 119 (118), 111.
[27] Cfr. São Tomás de Aquino, Summa Theologica I-II, q. 106, a.1, c. e ad 2, cit. Em São João Paulo II, Enc. Veritatis Splendor, 6-VIII-1993, nº 24.
[28] Catecismo da Igreja Católica, nº 1717.
[29] Idem, nº 1718.
[30] Cfr. Mt 5,3-12.
[31] Cfr. Mt 5, 10-12
[32] São Josemaria, Forja, nº 1005.
[33] Mt 5,12.
[34] São Josemaria, Caminho nº 173.
[35] 1 Cor 12,31.
[36] 1 Cor 13, 7.
[37] Cfr Mt 5, 44-45.
[38] Lc 6, 36.