Um amor que dilata o coração

Último artigo da série “Como as mãos de Deus”, com textos da pregação de São Josemaria sobre a família.

"Como as mãos de Deus", textos referentes a pregação de São Josemaria sobre a família.

Tradução de textos da pregação de São Josemaria sobre a família publicados no livro “Como las manos de Dios” de Antonio Vázquez (Ed. Palabra).


O amor no casamento cristão não é um amor qualquer, porque é atravessado pelo amor de Deus que lhe confere uma nova dimensão.

O Catecismo da Igreja Católica insiste nesta ideia: “Esta graça própria do sacramento do Matrimônio se destina a aperfeiçoar o amor dos cônjuges” (nº 1641). Mais adiante acrescenta “...e amar-se com um amor sobrenatural, delicado e fecundo” (1642). Em seguida, detalha o alcance dessa união: “O amor conjugal comporta uma totalidade na qual entram todos os componentes da pessoa – apelo do corpo e do instinto, força do sentimento e da afetividade, aspiração do espírito e da vontade; O amor conjugal dirige-se a uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, não conduz senão a um só coração e a uma só alma”. Mais uma vez, o plano de Deus oferece um panorama com tal substância que excede infinitamente nossos pequenos sonhos e une fortemente todos os aspectos da pessoa em uma unidade que antes considerávamos essencial para a felicidade. A graça divina quer permear todo o homem: sua inteligência, sua vontade, seus afetos, seu corpo e sua alma. É a pessoa, toda ela, em sua complexidade sem limites, que se compromete no vínculo amoroso.

São Josemaria soube amar com todo o seu coração e com todos os movimentos da alma. Tão forte era aquela nobre paixão, que às vezes o impedia de dormir. Deus dilatou a sua alma para que nela coubessem os seus filhos e filhas, a Igreja e toda a Humanidade. Contaremos uma história entre mil. Certa manhã, encontrou-se, em um corredor, com um de seus filhos, um médico, que perguntou se tinha dormido bem na noite anterior. A resposta transformou-se em amável confidência. Olha, como amo vocês tanto, tanto, tanto! Sempre tenho algum filho meu em quem pensar. Eu amo com coração de pai, de mãe... e de avó! Às vezes, armo por dentro uma confusão entre o que deve exigir um pai, o que tem de compreender uma mãe e o que pode consentir uma avó... Pensei nisso na minha oração. E vi que os pais são para os filhos, e não os filhos para os pais. É o que tantas vezes digo aos outros e que devo ser o primeiro a praticar... Se, como o profeta Ezequiel, tivesse que pedir ao Senhor que mudasse o meu coração, não lhe pediria que me trocasse o coração de pedra por um de carne. Quando muito, pediria o contrário: que, ao invés deste coração de carne, me desse um de pedra... E então, meu filho, então dormiria a sono solto todas as noites! Este amor tão grande: é divino ou é humano? Podemos agora reclamar de noites mal dormidas por nossos filhos, sejam eles pequenos ou mais velhos?

Longe de qualquer espiritualismo, homem e mulher devem estar convencidos, mais uma vez, de que amor humano, o amor aqui em baixo na terra, quando é verdadeiro, ajuda-nos a saborear o amor divino. Estas palavras de São Josemaria devem ser lidas no contexto de uma homilia dedicada ao Coração de Jesus. Acima colocou o antecedente. Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. São Josemaria repete uma ideia insistente em sua pregação. Não tenho um coração para amar a Deus e outro para amar as pessoas da terra. Quem não é capaz de entregar-se pelo marido/esposa com atos compostos de amor e ternura humana, pode correr o risco de entender o amor de Deus como algo rígido, sem vida, “como uma boneca de pano” ou com “a rigidez do papelão”. É muito expressivo como o Fundador do Opus Dei utiliza, ao se referir ao amor divino, termos usados ​​no amor humano: “embriaga”, “apaixonado”, “loucura”, “insensatez”, “cortejar”, “assaltar”. Não pega emprestado essas palavras, ele as faz suas para nos mostrar que nessa intimidade afetiva da pessoa – que chamamos de coração – deve haver uma unidade, que o amor expande a limites insuspeitados.

“Tenham coração, tenham coração!...” São Josemaria Escrivá referiu-se muitas vezes à necessidade de ter coração, às vezes com palavras duras. É uma pena não ter coração. São uns infelizes os que não aprenderam nunca a amar com ternura. Não é um sentimentalismo superficial, sem profundidade interior, ou o resultado de uma espiritualidade epidérmica. É que no carinho humano e divino, quando o amor transforma o ser humano, surge um novo modo de agir na terra, no qual a rigidez do dever abre caminho, pouco a pouco, para a satisfação de amar e sentir-se amado. A superfície do coração dilata suas fibras para descobrir novos horizontes.

A história está recolhida numa das biografias do Fundador do Opus Dei. “Falando, um dia de fevereiro de 1960, com um grupo dos seus filhos, filósofos e teólogos, sobre vantagem da liberdade em relação ao conhecimento, surpreendeu-os com esta reflexão: O coração sempre vai mais longe que a inteligência. A inteligência vai atrás. Algum dos filósofos dirá: e esse nihil volitum nisi praecognitum, ‘nada se quer, se antes não se conhece?’ Mesmo assim! E se não, expliquem isso do ‘amor à primeira vista’, se há apenas um conhecimento superficial?

Tenho para mim que é muito possível que, ao fazer essa afirmação, ele tivesse na cabeça as múltiplas “flechadas” que estão recolhidas nas Sagradas Escrituras, e aquelas que ele mesmo recebeu em sua “loucura” por Jesus Cristo.

Ter coração é sentir que o pulso se acelera ao chegar em casa, onde estão o marido ou a esposa e os filhos. Ter coração é se reconciliar com o outro com um enorme abraço após uma “briga histórica”. Ter coração é cobrir de beijos o rosto desvanecido da esposa idosa que está morrendo. Ter coração é esperar o filho que chega tarde da noite, sem reclamar, mesmo que no dia seguinte tenha que conversar com ele sobre a desordem que isso significou.

A grandeza de coração não está ligada a certos temperamentos ou a épocas da vida – como a juventude – que são especialmente propensos. Com a técnica dos grandes atletas, o coração se dilata ao exercitá-lo: estando alerta para descobrir mil ocasiões da vida cotidiana. O esforço pode ser duro, como no estádio, mas há uma compensação adicional de felicidade ao nos entregarmos.

Existem duas manifestações concretas de grandeza de coração, uma delas é que nos torna menos “implicantes”, com todo o desconforto que essa suscetibilidade acarreta. São Josemaria diz assim: Se tivesses um coração grande e um pouco mais de sinceridade não te deterias a mortificar, nem te sentirias mortificado... por minúcias. A outra é a gratidão: um coração magnânimo agradece e cada manifestação de gratidão é um bálsamo que suaviza a convivência. É preciso aprender a apreciar um olhar de compreensão e afeto, o silêncio diante de uma acusação precipitada ou a disponibilidade para satisfazer um capricho.

Coração grande para alcançar os membros mais próximos e mais distantes com igual vitalidade, para que o pulso alimente fortemente essas mãos que Deus precisa para fazer-se presente na terra. Porque um dos privilégios de um cristão é poder dar mais do que tem: o amor de Deus.

É necessário dedicar tempo para desvendar, na presença de Deus, essa centelha de amor divino que é o amor humano: olhar para ele em seus múltiplos aspectos, concluir em propósitos concretos. É uma tarefa que não se esgota ao longo dos anos, mas se torna mais urgente: cada dia se deseja mais. A pressão ambiental é tão forte que, ou sobrenaturalizamos nossos amores ou eles se despedaçam em nossas mãos. Temos a segurança de saber o caminho. Ainda falta percorrê-lo para iluminar muitos caminhos que ainda estão escuros porque ninguém lhes deu o testemunho vivo da luz. É o segredo de um cristianismo verdadeiramente vital, sem motivos para temer o futuro porque volta continuamente às fontes e aí se regenera (João Paulo II, Novo Millennio Ineunte, n. 32). 


Textos da série "Como as mãos de Deus" publicado anteriormente.