Que todos sejam um

Raquel tem um grupo de WhatsApp que se chama “Que Todos Sejam Um”. Para ser incluído, a única condição é que você esteja disposto a ajudar moradores de rua a saírem dessa situação e ainda iniciarem um tratamento, no caso de serem também dependentes químicos

Tudo começou num dia em que ela e seu namorado estavam conversando sobre a realidade social de seus bairros, no Rio de Janeiro. Eles moram longe um do outro, mas vivenciam o mesmo fenômeno quando voltam para casa depois do trabalho ou da faculdade: passam no meio de muitas pessoas que não têm onde morar e fazem da rua seu lar.

Raquel Nery é fotógrafa e estuda “conservação e restauração de bens móveis” e Marcelo Mamede está terminando a faculdade de psicologia. Dois jovens que se sensibilizaram com o cenário social à sua volta, ao invés de desviar o olhar e, quem sabe, o caminho, deixando os mais necessitados largados à sorte da “periferia”.

A Praça Saens Peña é um desses lugares onde muitos moradores de rua optam por passar a noite e, como se localiza no bairro de Raquel, atrai a sua atenção há muito tempo: “o que eu posso fazer por essas pessoas? Como ajudá-las a sair daqui?”.

E esse foi o tema da conversa entre ela e Marcelo, que deu início a esse grupo de amigos que já tirou mais de 10 pessoas dessa situação e pretende tirar muitas mais.

Tudo começou num dia em que Raquel e seu namorado estavam conversando sobre a quantidade de moradores de rua que encontram na cidade.

Voltando àquela tarde de 2016, quando pensavam numa maneira concreta de estender a mão para aquelas pessoas, fizeram um café e foram até a padaria mais próxima comprar pão. Não para alentar a conversa, e sim para tomar uma atitude! Saíram pelas ruas, sem nenhuma rota programada, a não ser as pessoas que estivessem com fome: elas seriam sempre o próximo destino. Sem pressa. O objetivo não era apenas alimentá-las, era também dar atenção, conversar e refletir com elas sobre a situação em que estavam.

O objetivo não é apenas oferecer um alimento aos moradores de rua, mas também dar atenção, conversar e refletir com elas sobre a situação em que estão.

Foi como a realização de um sonho! E depois daquele dia, os dois repetiram o programa mais algumas vezes também espontaneamente… Mas aquilo não bastava. Raquel sempre levava, além do alimento, uma inquietação interior: “será que é só isso mesmo que eu posso fazer por eles?”

Nesse meio tempo, uma amiga de Raquel lhe apresentou o Itaporã, um centro do Opus Dei, onde começou a frequentar os meios de formação. Assim ela foi compreendendo que precisava cuidar de sua vida espiritual para ter conversas mais profundas com os moradores de rua e ajudá-los a encontrar o sentido da vida... Depois de algum tempo, levou também uma integrante do grupo para conhecer o Itaporã e as duas nunca mais deixaram de ir. Até mudaram o dia de sair às ruas, porque coincidia com o dia da meditação.

O passo seguinte também não foi planejado: conversando com uma amiga, ela contou sobre essas saídas solidárias e despertou o interesse na colega, que pediu para ir junto na próxima vez… Como não havia um cronograma definido, a solução foi ficar com seu contato e avisá-la quando chegasse o momento: assim nasceu o grupo do WhatsApp, que vai aumentando conforme os amigos de Raquel e de Marcelo vão se interessando pelo voluntariado.

Mas ainda faltava dar respostas à intuição de que algo mais poderia ser feito por aquelas pessoas. A solução veio enquanto o grupo estava em ação, conversando com um rapaz que tinha acabado de cumprir sua pena na prisão: 12 anos por matar milicianos, vingando-se pela perda de toda a sua família para a milícia. Era ex-presidiário há duas semanas e estava na rua porque roubaram seus documentos e tudo o que ele tinha assim que foi liberado. Não sofria nenhum tipo de dependência, mas precisava de um lugar para morar.

Nada é obstáculo na hora de ajudar a pessoas com vícios ou outras dificuldades.

O abrigo que Raquel conhecia só aceitava moradores de rua que passavam por uma triagem num dia determinado da semana e, geralmente, eram escolhidos os dependentes químicos, para fazer um tratamento. Então essa não seria a saída, pelo menos não para aquele rapaz. Mas um dos responsáveis por esse abrigo facilitou o contato do fundador de uma fraternidade chamada “Irmão dos Pobres”, que abriu as portas para o ex-presidiário e para todos os outros que Raquel levou depois. A maioria das pessoas que ela leva tem problemas com drogas ou bebidas e lá recebem um tratamento para lidar com o vício, por isso, uma hora e meia dentro do carro não é obstáculo.

Aliás, nada é obstáculo! Raquel já passou por algumas aventuras, como “driblar” um companheiro de uma jovem que pediu ajuda e sair correndo com ela, colocar dentro do carro e partir “voando” para a fraternidade, escapando das mãos do homem que tentou impedi-las.

Infelizmente, alguns não conseguem levar o tratamento adiante e voltam para as ruas, mas indicam o local entre eles, quando ficam sabendo de alguém que quer tentar mudar de vida.

Hoje Raquel e seu grupo são conhecidos na Praça Saens Peña e estão sempre ajudando de maneira concreta a população de rua que mora ali. E, apesar de não ter se inspirado no papa Francisco para começar, é ele quem motiva o grupo a perseverar. Em palavras dela, “o exemplo que ele nos dá de ir ao encontro dos mais pobres, dos mais necessitados, nos dá a certeza de que estamos no caminho certo, em unidade com ele, com toda a Igreja e com o próprio Cristo, com o chamado que Jesus tem para nós”.