O trabalho, chave de questões sociais e muito mais

Por ocasião dos 130 anos da publicação da encíclica ‘Rerum Novarum’ sobre a doutrina social da Igreja, Domènec Melé (Professor Emérito do Departamento de Ética Empresarial e titular da Cátedra de Ética Empresarial do IESE), desenvolve neste artigo alguns aspectos relacionados ao trabalho.

Foto: Álvaro García Fuentes

No dia 15 de maio completaram-se 130 anos da publicação da memorável encíclica Rerum Novarum (1891), com a qual o Papa Leão XIII respondia à chamada “questão social” desencadeada pela Primeira Revolução Industrial e por uma ideologia dominante, radicalmente liberal. Leão XIII exortava a que houvesse condições de trabalho mais dignas e exigia um conjunto de direitos trabalhistas que, anos depois, seriam amplamente reconhecidos.

Esta encíclica de Leão XIII é considerada por muitos como o início da “moderna” doutrina social da Igreja (“moderna” entre aspas porque os ensinamentos sociais da Igreja remontam às origens do cristianismo[1]).

A Rerum Novarum teve amplo e longo eco e foi referência obrigatória para encíclicas sociais posteriores. Assim, Pio XI, em 1931, escreveu a encíclicaQuadragesimo anno aludindo precisamente ao 40º aniversário da Rerum Novarum e São João Paulo II a Centesimus Annus em 1991, em seu centenário. Outras encíclicas também coincidiram com aniversários da encíclica de Leão XIII. Foi assim com a Mater et magistra (1961) de São João XXIII e a Laborem exercens (1981) de São João Paulo II. Em 1941, Pio XII dedicou uma longa mensagem radiofônica – frequentes em seu pontificado – a questões sociais no 50º aniversário da Rerum Novarum.

São João Paulo II indica acertadamente que “o trabalho, como problema do homem, ocupa o centro mesmo da ‘questão social’, para a qual durante os quase cem anos transcorridos desde a publicação da mencionada Encíclica [Rerum Novarum] dirigem-se de modo especial os ensinamentos da Igreja e as múltiplas iniciativas relacionadas à sua missão apostólica” (Laborem exercens, 2). Desde então, com efeito, questões sociais no mundo surgiram e foram acolhidas com solicitude pelo Magistério da Igreja e não poucos cristãos.

O trabalho, uma questão social e pessoal

As questões sociais atuais abarcam um amplo leque de temas entre os quais problemas relacionados ao respeito à vida humana, à liberdade de escolha da educação, ao reconhecimento da família e sua função social, à emigração e ao desemprego, ao meio ambiente e à pobreza para citar só alguns. O trabalho, de um modo ou outro, aparece em muitos deles: o trabalho de profissionais da saúde, juristas e políticos para defender a vida, o modo de realizar o trabalho educativo, que é também educação para o trabalho, o trabalho no âmbito familiar e o cultivo de virtudes em família que repercutirão no trabalho, o trabalho dos emigrantes, o impacto do trabalho no meio ambiente e na pobreza e, evidentemente o desemprego, especialmente em situações de crises econômicas como a atual desencadeada pela Covid-19.

O trabalho é uma questão social, mas também pessoal, sobretudo na vida cotidiana, já que o trabalho é “uma dimensão fundamental da existência humana, da qual a vida do homem é feita cada dia” (Laborem exercens, 1). E é assim, pelo menos, se consideramos a educação como um trabalho e a atividade na aposentadoria como outro modo de trabalhar. Do trabalho e da sua importância falaram todos os papas. Inclusive o Papa Francisco que em sua última encíclicaFratelli tutti (n. 162) afirma literalmente: “o grande tema é o trabalho”. E acrescenta: “O que é verdadeiramente popular – porque promove o bem do povo – é garantir a todos a possibilidade de fazer brotar as sementes que Deus colocou em cada um, suas capacidades, sua iniciativa, suas forças”.

São João Paulo II não dedicou ao trabalho apenas a já citada encíclica Laborem exercens. Falou também do trabalho em numerosas ocasiões: em encontros com representantes do mundo do trabalho e da empresa, em homilias na festa de São José Operário, em visitas pastorais por todo o mundo, em audiências pontifícias, em visitas a fábricas e centros de trabalho e em discursos diante de organismos internacionais como a Organização Internacional do Trabalho.

Tive recentemente ocasião de estudar e sistematizar os ensinamentos de São João Paulo II – a quem muitos chamamos “magno” – analisando cerca de uma centena de documentos seus sobre o trabalho[2], um valioso legado no qual vale a pena aprofundar. Este Papa é, sem dúvida, o Romano Pontífice que mais extensamente e com mais profundidade falou do trabalho. Unia-se, à sua formação filosófica e teológica, sua experiência de trabalhador manual durante vários anos em sua juventude, seu trabalho de professor universitário e este outro trabalho –- intensíssimo – de Pastor, com jornadas extenuantes enquanto pôde, e durante as quais não escamoteou tempo dedicado ao trato com Deus na oração e na eucaristia.

Os ensinamentos de São João Paulo II sobre o trabalho partem de uma sólida fundamentação antropológica e ética, construída a partir da fé e da filosofia para abordar depois questões ético-sociais primordiais relacionadas ao trabalho. Tudo isso sem esquecer a espiritualidade cristã do trabalho, a que se referiu com certa frequência. Ele o faz em desenvolvimento orgânico da ação e ensinamentos sociais da Igreja, indagando nas Sagradas Escrituras e na tradição cristã, mas trazendo sempre a fina análise filosófica do personalismo realista, que cultivou em seu itinerário espiritual. Pode ser ilustrativo apresentar a seguir uma reduzida síntese da investigação sobre os ensinamentos deste Papa[3].

O trabalho como vocação do homem

São João Paulo II vê no Evangelho do trabalho – incluído o livro do Gênesis, “primeiro Evangelho do trabalho” – a fonte primordial de seus ensinamentos. Nos dois relatos da Criação, que os dois primeiros capítulos doGênesis transmitem, o trabalho aparece como vocação do homem. No primeiro o trabalho está implícito na benção de Deus ao homem dando-lhe domínio sobre a terra (cfr. Gên 1, 26, 28) – um domínio responsável como administrador da criação material – e no segundo colocando o homem no jardim do Éden para que o cultive e cuide dele (cfr. Gên 2, 15). O Evangelho do trabalho é, sobretudo, Jesus Cristo, que trabalhou com suas próprias mãos. Pela Encarnação, Deus se uniu a todas as realidades humanas, incluindo o trabalho e nos redimiu também trabalhando. É verdade que o trabalho traz consigo também diversas formas de penalidade, mas isto não anula a original vocação do homem ao trabalho.

O homem deve tomar consciência de que a terra é dom de Deus. Isto exige gratidão e responsabilidade para fazer frutificar a terra com vistas ao bem comum, sem perder de vista que a terra deve ser um legado para futuras gerações. Esta última ideia requer trabalhar com responsabilidade ecológica. O que hoje chamamos sustentabilidade.

A perspectiva filosófica leva a considerar o trabalho como atividade intencional, especificamente humana, que procede da pessoa e no qual a pessoa intervém como um todo. A precedência da pessoa confere dignidade ao trabalho, independentemente do trabalho realizado. Daí que o trabalho não deva nunca ser tratado como mera mercadoria ou como uma anônima força de produção. A pessoa, como um todo, é justamente o sujeito e a causa eficiente do trabalho, sejam quais forem os meios tecnológicos utilizados. A técnica é sempre instrumental com relação ao trabalho: é fruto do trabalho para servir o trabalho. O Papa João Paulo II deduz daí a prioridade do trabalho sobre o capital, entendido como o conjunto dos instrumentos de produção e a preeminência do trabalho em sentido subjetivo (a pessoa do trabalhador) sobre o trabalho em sentido objetivo (tecnologia e produção).

São João Paulo II sublinha que o trabalho é um bem do homem, que se fundamenta sobre a força moral do amor; é, pois, um meio de realização ou desenvolvimento pessoal e um modo de contribuir para o bem comum. Com relação a isso, ele destaca a relevância da virtude da laboriosidade que, como todas as virtudes, tornam bons aqueles que a adquirem. Refere-se igualmente à alienação pelo trabalho – da qual tanto falou Marx – que não vem pelo lado do produto, mas da pessoa. Há alienação quando o sujeito não melhora como pessoa através do trabalho e não pelo fato de trabalhar como assalariado. Com a ajuda da graça de Deus, a pessoa não só se realiza em sentido humano mas também se santifica através do trabalho.

O trabalho é, ao mesmo tempo, um dever e um direito. O emprego é uma forma de trabalho desejável que ao mesmo tempo que contribui para o desenvolvimento pessoal, permite obter meios de subsistência, fazer render os próprios talentos numa atividade produtiva e contribuir para a utilidade social. Daí o drama do desemprego em que há grupos especialmente vulneráveis. Os subsídios de desemprego constituem uma solução muito parcial e é grande a responsabilidade social no emprego por parte de empreendedores e do “empresário indireto” (o Estado e entes supranacionais).

Trabalho e espiritualidade cristã

O trabalho está estritamente relacionado com a família, outro tema central dos ensinamentos de São João Paulo II. O trabalho é sustento econômico da família e deve servir para unir – nunca para corroer – a família. Donde a importância de harmonizar trabalho e família. O lar requer trabalho que tem valor para a educação dos filhos. São João Paulo II defende a igualdade de direitos entre homem e mulher com relação ao trabalho e, ao mesmo tempo, louva e pede reconhecimento social para o trabalho no lar e a consideração da maternidade como trabalho profissional.

O trabalho no âmbito profissional e empresarial é amplamente considerado. São João Paulo II aponta alguns direitos chave dos trabalhadores na empresa e a necessidade de organizar o trabalho com participação e significado, de modo que todos possam considerar que trabalham como “em algo próprio”. Sublinha também a importância da livre iniciativa e do trabalho dos empreendedores e o valor do trabalho para construir uma comunidade de trabalho.

No âmbito sócio-político, o trabalho deve ser especialmente considerado. Um aspecto é proporcionar uma adequada formação profissional, atendendo também às novas tecnologias e exigências de produção. O Estado tem seu papel regulador - respeitando o princípio de subsidiariedade - e os organismos internacionais têm também seu papel num mundo cada vez mais globalizado. Os sindicatos não devem lutar contra ninguém, e sim a favor da justiça social.

Por último, mas não menos importante, bem ao contrário, a importância de que o trabalho se abra à espiritualidade cristã que proporciona um horizonte transcendente ao trabalho, inclusive àquelas tarefas que possam parecer mais comuns ou rotineiras. Com a fé, o trabalho se enquadra na obra da Criação. A imagem de Deus no homem manifesta-se no trabalho; com o trabalho o homem responde a uma chamada de Deus e participa na criação humanizando os produtos naturais com seu gênio e laboriosidade.

O trabalho é iluminado pelo mistério de Cristo. A Encarnação do Verbo dá um novo sentido ao trabalho e apresenta Cristo como modelo a imitar, também por seu trabalho. Destaca também uma ordem justa: Jesus aprecia o trabalho, mas previne Marta de que este não deve opor-se à escuta da Palavra de Deus. O trabalho é igualmente iluminado pela Redenção e, concretamente, pela Cruz e a Ressurreição. A Cruz dá sentido às dificuldades do trabalho e a Ressurreição coloca o trabalho na perspectiva da Recapitulação universal e da participação da realeza de Cristo pelo trabalho.

O trabalho é espiritualmente alimentado pela oração, a Eucaristia e a graça do Espírito Santo. O Espírito, dador de vida, santifica quem trabalha; infunde o amor de Deus e dá força interior para o serviço, a solidariedade e o apostolado.

Podemos concluir afirmando que o trabalho é, com efeito, chave primordial das questões sociais e muito mais, já que é uma dimensão existencial fundamental na vida humana. Os ensinamentos de São João Paulo II abrem perspectivas insuspeitadas para quem possa ter uma visão do trabalho centrada no seu valor econômico ou como meio para satisfazer limitadas motivações de autoafirmação pessoal. Nestes ensinamentos há muitos pontos de encontro com a pregação de São Josemaria, que também acentuou muitos aspectos do valor humano e cristão do trabalho, com particular ênfase na santificação do trabalho[4].

Domènec Melé

Autor de Valor humano y cristiano del trabajo. Enseñanzas de S. Juan Pablo II.


[1] Charles, R. 1998. Christian Social Witness and Teaching: The Catholic Tradition from Genesis to ‘Centesiums annus’. 2 vol. Herefordshire, UK: Gracewind.

[2] Melé, D. 2020. Valor humano e cristão do trabalho. Ensinamentos de São João Paulo II. Com Prólogo de J. L. Illanes. Pamplona: Eunsa.

[3] Seguimos esquematicamente a obra Valor humano e cristão do trabalho, cit.

[4] J.L.Llanes, “Santificación del trabajo” em Diccionario de San Josemaría, Ed. Monte Carmela – Instituto Histórico San Josemaría Escrivá de Balaguer, 3ª ed. Burgos, 2015, pp. 1202-1210.