1ª PARTE
Vida familiar e vida de trabalho
Hoje em dia é frequente encontrar muitos casais que sofrem uma contínua tensão ao tentar conciliar a vida profissional e a vida familiar. Não têm tempo e energia para cumprir todas as suas tarefas: a atenção dos filhos, o cuidado da casa, as exigências do trabalho profissional... Esta tensão pode afetar muito negativamente a família. Apesar dos seus esforços, os esposos geralmente se sentem derrotados pelo turbilhão imposto pela vida contemporânea. O que está acontecendo?
Apesar dos seus esforços, os esposos geralmente se sentem derrotados pelo turbilhão imposto pela vida contemporânea. O que está acontecendo?
O desafio de conciliar a vida laboral e a vida familiar parece irromper como um fenômeno novo e complexo, que muitos casais ainda não souberam resolver. Talvez, a causa decisiva tenha sido a incorporação massiva da mulher no mercado de trabalho durante os séculos XIX e XX, que mudaram uma dinâmica tranquila onde parecia imperar uma clara divisão de tarefas: o âmbito doméstico era mais próprio da mulher e o trabalho externo do homem. Detendo-nos a pensar sobre a situação em que se encontra a família na atualidade, vemos que há aspectos ambivalentes. Assim o escreve João Paulo II na exortação apostólica Familiaris Consortio:
“Por um lado, de fato, existe uma consciência mais viva da liberdade pessoal e uma maior atenção à qualidade das relações interpessoais no matrimonio, à promoção da dignidade da mulher, à procriação responsável, à educação dos filhos; há, além disso, a consciência da necessidade de que se desenvolvam relações entre as famílias por uma ajuda recíproca espiritual e material, a descoberta de novo da missão eclesial própria da família e da sua responsabilidade na construção de uma sociedade mais justa. Por outro lado, contudo, não faltam sinais de degradação preocupante de alguns valores fundamentais: uma errada concepção teórica e prática da independência dos cônjuges entre si; as graves ambiguidades acerca da relação de autoridade entre pais e filhos; as dificuldades concretas, que a família muitas vezes experimenta na transmissão dos valores; o número crescente dos divórcios; a praga do aborto; o recurso cada vez mais frequente à esterilização; a instauração de uma verdadeira e própria mentalidade contraceptiva.”[1]
Esta síntese pode nos servir para orientar cada situação da vida (pessoal, profissional, familiar, social, etc.), e dar-lhe o lugar e a relevância que lhe corresponde.
O significado do trabalho
Em primeiro lugar, devemos considerar pensar que de alguma forma o trabalho está presente em todas as esferas da nossa vida: quer seja não remunerado, profissional, doméstico ou social; o cristão sempre pode trabalhar, esforçar-se, como Jesus Cristo e o Pai: “Meu Pai trabalha sempre, e Eu também trabalho”[2].
O trabalho é um terreno conatural ao ser humano. Fomos criados para trabalhar[3]; não só para conseguir um sustento, mas para contribuir para o progresso social e para o bem de toda a humanidade. Como explica a Gaudium et Spes, Deus decide criar o homem e a mulher para governarem as coisas da terra em justiça e santidade. Essa atividade é o seu trabalho. No seu significado mais originário, o trabalho não é senão a atividade humana que interage com a criação material; de modo que, constitutivamente, fomos feitos para trabalhar: “homo, quasi adiutor est Dei”, como o ajudante de Deus, diz audazmente São Tomás de Aquino. A criação, portanto, apesar de ser perfeita, porque é obra de Deus, pode por sua vez ser aperfeiçoada pela liberdade do homem.
Por exemplo, o orgulho profissional excessivo ou rejeitar as tarefas que não tem brilho podem fazer-nos descuidar do ambiente familiar, onde encontramos a maior fonte de felicidade.
Ao mesmo tempo, sabemos que depois do pecado original a dor e o cansaço se acrescentaram ao trabalho. No entanto, mais do que o cansaço, a pior consequência do pecado é o orgulho: a deformação do trabalho que nos leva a esquecer de que somos ajudantes de Deus, a inverter os termos e querer, pelo trabalho, ser como deuses.
Somos colaboradores de Deus na família, no cuidado dos filhos, no trabalho profissional. Se nos deixamos levar pelo orgulho ou pela preguiça, não tomaremos as decisões certas para conseguir o equilíbrio adequado na nossa família. Por exemplo, o orgulho profissional excessivo ou rejeitar as tarefas que não tem brilho podem fazer-nos descuidar do ambiente familiar, onde encontramos a maior fonte de felicidade.
Unidade de vida
Em segundo lugar, as esferas profissional e doméstica não deveriam enfrentar-se, pois na realidade completam-se: o âmbito familiar se enriquece com a vida profissional e, por sua vez, a vida profissional se enche de sentido e de entusiasmo com a perspectiva familiar.
Algo que já dizia São Josemaria, respondendo a uma pergunta: “os dois trabalhos são compatíveis. Você faz com que sejam compatíveis. Hoje, na vida, quase todo mundo tem mais de um emprego. (…) E digo que tem razão, que são dois trabalhos perfeitamente compatíveis”[4].
No entanto, como recorda o Papa Francisco, “A família é um grande teste. Quando a organização do trabalho a mantém refém, ou até lhe impede o caminho, então estamos certos de que a sociedade humana começou a agir contra si mesma! As famílias cristãs recebem desta conjuntura um grande desafio e uma grande missão. Elas apresentam os fundamentos da criação de Deus: a identidade e o vínculo do homem e da mulher, a geração dos filhos, o trabalho que torna a terra doméstica e habitável”[5].
A coerência cristã leva a priorizar, de acordo com as circunstâncias, cada uma das tarefas que derivam da nossa condição de pais, cônjuges, amigos, companheiros, etc. Aí está a luta para manter a unidade de vida: estabelecer as prioridades; ou seja, fixar o olhar nos objetivos mais altos de amor a Deus e amor aos outros seja qual for o campo em que operamos.
Estas metas nos ajudam a colocar no seu lugar os múltiplos afazeres, que são hierarquizados de acordo com esse ideal de vida. E, ao mesmo tempo, procurar realizá-los com intensidade, aproveitando ao máximo: com os pés bem cravados na terra e a vista no céu, como gostava de repetir São Josemaria. Mais do que conciliar, no fundo, trata-se de integrar as diversas atividades de cada dia, ou, pelo menos, de tentar todos os dias.
O trabalho do lar
De modo geral, é preciso desenhar um projeto matrimonial próprio, adequado às necessidades de cada família: sem filhos, com muitos ou poucos filhos, filhos com necessidades especiais, cuidado dos avós… Se um dos cônjuges decide dedicar-se ao cuidado do lar é uma opção legítima. De fato, são muitas as mães que optam pelo cuidado exclusivo do lar. Com mentalidade profissional, elas também têm que conciliar esse trabalho com a vida familiar.
O cuidado da casa se traduz na atenção a mil detalhes da convivência diária, que realizados com amor, recobrem-se de transcendência, humana e sobrenatural. Como explica uma mãe inglesa de cinco filos: “Afinal, grande parte da vida consiste em coisas pequenas: pôr em ordem as coisas quando termino cada tarefa, por amor; oferecer o trabalho de lavar as meias que cheiram mal, pela Igreja no Cazaquistão; escutar um dos filhos quando me sinto esgotada e ansiando por cinco minutos de paz; ser atenciosa com um vendedor que telefona precisamente na hora do almoço...”[6].
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SEGUNDA PARTE
Diretrizes para o equilíbrio trabalho/família
Na primeira parte deste artigo tratou-se da unidade de vida e da desejada integração entre trabalho profissional e vida familiar. Nesta segunda parte oferecem-se algumas diretrizes para progredir no esforço de tornar esses âmbitos compatíveis. Estas regras poderiam ser resumidas em quatro: antecipar, assumir, aprender e amar.
- Adiantar
- Assumir
- Aprender
- Amar
Para chegar a tudo convém ser práticos e adiantar todas as tarefas possíveis. Com antecedência suficiente, poderemos assentar primeiro as “pedras” grandes, as importantes, para que cada tarefa tenha o seu lugar e possa caber tudo. Mas, para antecipar, devemos manter clara a ordem de prioridade das tarefas: Deus, os outros e eu, é uma forma rápida de sintetizar a ordem que deveria reger a vida do cristão.
Um modo de adiantar e ser flexível é aplicar à gestão da casa o esquema das empresas: fixar metas, estratégias, precedências, tarefas que podem ser delegadas e devem ser comunicadas com tempo.
Às vezes, isto pode supor especificar dia e hora para cada trabalho, e não deixar nada para a improvisação. Somente se tivermos um plano, será possível ser flexíveis e encaixar os imprevistos que aparecerem ao longo da jornada.
Um modo de adiantar e ser flexível é aplicar à gestão da casa o esquema das empresas: fixar metas, estratégias, precedências, tarefas que podem ser delegadas e devem ser comunicadas com tempo. Se o “negócio mais importante” é a nossa família, devemos tomar todas as medidas de acordo com uma determinada organização. Deixar tudo para a improvisação não garante a paz nem a ordem necessárias para a convivência.
O que vale, custa, diz o provérbio. O melhor é assumir quanto antes a grande energia física e mental que isto implica. “O desafio do equilíbrio está em saber viver o nosso projeto familiar com coerência, reconhecendo que, pelo grande fato de ser um casal, assumimos uma série de obrigações que devemos nos esforçar para viver, evitando as falsas desculpas que impedem ou dificultam o cumprimento destas obrigações e vivendo com realismo cada uma das situações que aparecem na vida”[7].
Em alguma etapa da vida pode ser preciso desempenhar muito trabalho, fora e dentro de casa, e isso exige uma grande dose de realismo e generosidade; e também desprendimento da tendência ao perfeccionismo e das manias pessoais.
Não estamos sós nem somos os únicos que tentamos harmonizar o trabalho e a família. Existem várias maneiras de lidar com uma vida que deve atender a múltiplas frentes. Por exemplo, pode-se aprender muito participando de alguns cursos de orientação familiar, ou dos testemunhos de outros pais cristãos que lutam por viver desta forma, integrando os âmbitos profissional e familiar[8].
Concretamente, manter o equilíbrio adequado entre trabalho e a família supõe geralmente dirigir bem nosso recurso mais escasso: o tempo. Há vários truques e conselhos para maximizar nosso tempo:
- “Faz o que deves e está no que fazes” dizia São Josemaria[9]. Deste modo, evitaremos perder o tempo para concentrar-nos de novo em cada coisa, procurando terminá-la no tempo previsto. Podemos também oferecer a Deus e evitar a dispersão de estar em vários assuntos ao mesmo tempo.
- Fixar um tempo para o trabalho profissional. É imprescindível pôr um limite semanal às horas que serão dedicadas ao trabalho fora de casa. O tempo para estar com os filhos e o cônjuge deve ser considerado sagrado.
- Evitar atividades inúteis, como programas de televisão que não ensinam nada, conversas inúteis ou daninhas, etc., que são verdadeiros ladrões do tempo. Como explica Nuria Chinchilla, às vezes jogamos a culpa do nosso estresse nos outros, às circunstâncias, quando muitas vezes perdemos tempo em atividades sem importância: “e se olharmos primeiro para nós mesmos? Porque esta é a única realidade que podemos mudar. Com certeza, nos encontraremos falta de organização pessoal, confusão de prioridades, pouca delegação para os colaboradores, excesso de otimismo ao avaliar as próprias habilidades e potencial de trabalho, pretensão de abarcar um campo de atividades amplo demais, pouca pontualidade e controle de horário, adiamento ou precipitação nas decisões importantes...”[10].
Podemos pensar em atividades que nos permitam estar juntos, que enriqueçam e que reforcem os vínculos familiares.
- Tempo de qualidade. Uma vida familiar saudável requer tanto quantidade de tempo como qualidade no tempo, para poder desenvolver as funções derivadas de nossos papéis de pais e esposos. Um modo de aproveita-lo é reservar os fins de semana e as férias: um tempo de “disponibilidade completa”, para cuidar especialmente do nosso casamento e dos nossos filhos, progredindo assim no desejado equilíbrio. Podemos pensar em atividades que nos permitam estar juntos, que enriqueçam e que reforcem os vínculos familiares. Se não priorizarmos esse tempo com nosso cônjuge e nossos filos, se organizamos umas férias muito emocionantes, mas que não permitem estarmos juntos com tranquilidade, não teremos progredido no projeto comum que é o casamento e a família.
- Fixar tempos de reflexão. Quanto mais abundantes são as diversas tarefas que temos de realizar, mais necessário se torna fazer “pausas” durante o dia, para pensar como organizá-las melhor. Para um cristão esses tempos de reflexão são tempos de oração. Deus nos acompanha sempre e podemos pedir-lhe ajuda nesses momentos de grande atividade.
Em última análise, é o amor de Deus que dá unidade, põe ordem no coração, ensina quais são as prioridades. “Entre essas prioridades está saber colocar sempre o bem das pessoas acima de outros interesses, trabalhando para servir, como manifestação da caridade; e viver a caridade de maneira ordenada, começando por aqueles que Deus colocou mais diretamente a nosso cuidado”[11].
O amor aos outros nos faz focar bem a nossa vida e percebermos como a nossa situação é positiva: se temos que conciliar um trabalho exigente com uma família é porque temos muita sorte. Não somos vítimas, mas beneficiários de grandes dons.
Rosalía Baena
[1] João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio, n. 6
[2] Jo 5,17
[3] Cf. Gn 2,15 (Vulgata)
[4] São Josemaria, anotações de um encontro familiar, Santiago de Chile 7/07/1974
[5] Papa Francisco, audiência geral, 19/08/2015
[6] Testemunho de Testemunho de Virginia McGough, cfr.: https://opusdei.org/pt-br/article/cuidar-da-minha-familia-e-um-verdadeiro-trabalho-profissional/
[7] Cfr. “Familia y trabajo” (Nota Técnica. Curso Amor Matrimonial II)
[8] Cf., por exemplo: https://opusdei.org/pt-br/article/familia-trabalho-e-bom-humor/, https://opusdei.org/pt-br/article/escolher-o-conjuge-adequado-com-que-compartilhar-grandes-desafios/, https://opusdei.org/pt-br/article/cuidar-da-minha-familia-e-um-verdadeiro-trabalho-profissional/, https://opusdei.org/pt-br/article/entre-o-trabalho-e-a-familia/.
[9] Caminho, n. 815
[10] A ambição feminina : como conciliar trabalho e família / Nuria Chinchilla, Consuelo León
[11] Cf. J. López Díaz y C. Ruiz, “Trabalho e Família”, em https://opusdei.org/pt-br/article/trabalho-e-fam...