Trabalho e contemplação (2)

Segundo artigo sobre como aproximar-se de Deus – até chegar à "contemplação" – enquanto se trabalha ou se realiza outra atividade.

Foto: European Heimlich

E aconteceu que, indo eles de caminho, entrou Jesus numa aldeia; e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa. E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: ‘Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe que me ajude.’ Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a boa parte, que lhe não será tirada"[1].

Muitas vezes na história as figuras de Maria e Marta foram usadas para representar a vida contemplativa e a vida ativa, como dois tipos de vida, sendo o primeiro mais perfeito segundo as palavras do Senhor: Maria escolheu a melhor parte.

Em geral, estes termos se referiram à vocação religiosa, entendendo por vida contemplativa, em traços largos, a daqueles que se afastam materialmente do mundo para se dedicarem à oração e por vida ativa a daqueles que realizam tarefas como o ensino da doutrina cristã, a atenção aos doentes e a outras obras de misericórdia.

Entendendo assim estes termos, afirmou-se há séculos que é possível ser contemplativos na ação. No sentido clássico desta expressão a contemplação não é possível nas atividades profissionais, familiares e sociais, próprias da vida dos fiéis correntes, mas refere-se apenas às ações apostólicas e de misericórdia dentro do caminho da vocação religiosa.

São Josemaria ensinou a aprofundar as palavras do Senhor a Marta, fazendo ver que não há nenhuma oposição entre a contemplação e a realização, o mais perfeita possível, do trabalho profissional e dos deveres habituais de um cristão.

Já foi considerado, em um texto anterior, o que é contemplação cristã: a oração simples de tantas almas que, por muito amarem e serem dóceis ao Espírito Santo, procurando em tudo a identificação com Cristo, são levadas pelo Paráclito a penetrar nas profundezas da vida íntima de Deus, das Suas obras e dos Seus desígnios, com uma sabedoria que dilata cada vez mais o seu coração e o seu conhecimento. Uma oração em que Sobram as palavras, porque a língua não consegue expressar-se; começa a serenar-se a inteligência. Não se raciocina, fita-se! E a alma rompe outra vez a cantar com um cântico novo, porque se sente e se sabe também fitada amorosamente por Deus, em todos os momentos[2].

Convém agora determo-nos para considerar três modos em que pode ocorrer a contemplação: nos tempos dedicados exclusivamente à oração; enquanto se trabalha ou se realiza qualquer atividade que não exija toda a atenção da mente e, finalmente, através do próprio trabalho, mesmo quando exige uma concentração exclusiva. Estes três modos compõem, em conjunto, a vida contemplativa, fazendo da vida corrente um viver no Céu e na terra ao mesmo tempo, como dizia São Josemaria.

Na oração e em todas as normas de piedade

Em primeiro lugar, a contemplação deve pedir-se a Deus e procurá-la nos atos de piedade cristã que podem marcar o nosso dia, especialmente nos momentos dedicados de modo exclusivo à oração mental.

"Et in meditatione mea exardescit ignis". - E na minha meditação se ateia o fogo. - Para isso vais à oração: para tornar-te uma fogueira, lume vivo, que dê calor e luz[3].

Os tempos de oração bem feitos são a caldeira que comunica o seu calor aos diversos momentos do dia. Do recolhimento nos tempos de oração; da intimidade com o Senhor, procurada com afinco nesses momentos, às vezes por meio da meditação de algum texto que ajude a centrar a cabeça e o coração em Deus; do empenho em afastar as distrações; da humildade para começar e recomeçar, sem se apoiar nas próprias forças mas na graça de Deus; numa palavra, da fidelidade diária aos tempos de oração depende que se torne realidade, para além desses momentos, o ideal de ser contemplativos no meio do mundo.

São Josemaria ensinou-nos a procurar a contemplação nos tempos de oração mental: a contemplar a Vida do Senhor, a olhá-Lo na Eucaristia, a intimar com as Três Pessoas divinas pelo caminho da Humanidade Santíssima de Jesus Cristo, a ir a Jesus por Maria... É preciso não se conformar com repetir orações vocais na oração mental, embora talvez seja necessário repeti-las durante muito tempo, mas vendo-as como a porta que abre para a contemplação.

Também no convívio humano, quando se encontra um amigo, é costume trocarem-se algumas frases de saudação para iniciar a conversa. Mas o convívio não se pode limitar a isso. A conversa deve continuar com palavras mais pessoais, podem mesmo deixar de ser precisas porque há uma sintonia profunda e uma grande familiaridade. Muito mais terá de ser no convívio com Deus. Começamos com orações vocais (...). Primeiro uma jaculatória, e depois outra e outra... Até que pareça insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres...:e se dá passagem à intimidade divina, num olhar para Deus sem descanso e sem cansaço[4].

Enquanto se trabalha ou se realiza outra atividade

A contemplação não se limita aos tempos dedicados à oração. Pode ocorrer ao longo do dia, no meio das ocupações habituais, enquanto se realizam as tarefas que devem ser feitas e que não requerem toda a atenção da mente, ou nos momentos de pausa de qualquer trabalho.

Podemos contemplar a Deus quando estamos andando pelas ruas, enquanto se cumprem alguns deveres familiares e sociais que são habituais na vida de qualquer pessoa, quando realizamos trabalhos que já dominamos com facilidade, ou num intervalo na execução da própria tarefa, ou, simplesmente, quando estamos em uma espera...

Do mesmo modo que nos tempos de oração, as jaculatórias podem abrir caminho à contemplação, também no meio de outras ocupações, a procura da presença de Deus desemboca na vida contemplativa, inclusive mais intensa, como o Senhor fez experimentar a São Josemaria. É incompreensível: — anota nos seus Apontamentos íntimos — sei de alguém que está frio (apesar da sua fé, que não admite limites) junto ao fogo diviníssimo do Sacrário, e depois, em plena rua, por entre o ruído dos automóveis, bondes e pessoas, lendo um jornal!, vibra com arrebatamentos de loucura de Amor de Deus[5].

Esta realidade é inteiramente um dom de Deus, mas só pode recebê-lo quem o deseja no seu coração e não o afasta com as obras. Afasta-o quem tem os sentidos dispersos, ou se deixa dominar pela curiosidade, ou se submerge em um tumulto de pensamentos e de imaginações inúteis que o distraem e dissipam. Ou seja, quem não sabe estar no que faz[6]. A vida contemplativa requer mortificação interior, negar-se a si mesmo por amor a Deus, para que Ele reine no coração e seja o centro para o qual se dirigem, em último termo, os pensamentos e os afetos da alma.

Contemplação "nas e através das" atividades correntes

Assim como nos tempos de oração não há que conformar-se em repetir jaculatórias nem ficar na leitura e meditação, mas procurar o diálogo com Deus até chegar, com a Sua graça, à contemplação, assim também no trabalho, que há-de converter-se em oração, é preciso não se contentar com oferecê-lo no princípio e dar graças no final, ou em procurar renovar esse oferecimento várias vezes, unidos ao Sacrifício do altar. Tudo isto é já muito agradável ao Senhor, mas um filho de Deus tem de ser audaz e aspirar a mais: a realizar o seu trabalho como Jesus em Nazaré, unido a Ele. Um trabalho em que graças ao amor sobrenatural com que se realiza, se contempla a Deus que é Amor[7].

Um ensinamento constante e característico de São Josemaria é que a contemplação é possível não só enquanto se realiza uma atividade,mas por meio das atividades que Ele quer que realizemos, nessas mesmas tarefas e através delas, mesmo quando se trata de trabalhos que exigem toda a concentração da mente. São Josemaria ensinava que chega o um momento em que não se é capaz de distinguir a contemplação e a ação, terminando estes conceitos por significar o mesmo na mente e na consciência.

Neste sentido, é esclarecedora uma explicação de São Tomás: “quando de duas coisas uma é a razão da outra, a ocupação da alma em uma não impede nem diminui a ocupação na outra... E como Deus é apreendido pelos santos como a razão de tudo quanto fazem ou conhecem, a sua ocupação em perceber as coisas sensíveis, ou em contemplar ou fazer qualquer outra coisa, em nada as impede a divina contemplação, nem vice-versa[8]. Daí que, se se quer procurar o dom da contemplação, o cristão deve pôr o Senhor como fim de todos os seus trabalhos, realizando-os non quasi hominibus placentes, sed Deo qui probat corda nostra; ; não como para agradar aos homens, mas a Deus, que prova os nossos corações[9].

Dado que a contemplação é como uma antecipação da visão beatífica, fim último da nossa vida, é preciso que qualquer atividade que Deus queira que realizemos — como o trabalho e as tarefas familiares e sociais, que são Vontade Sua para cada um — possa ser via para a vida contemplativa. Em outros termos, da mesma maneira que qualquer dessas atividades pode ser realizadas por amor a Deus e com amor a Deus, também se podem converter em meio de contemplação, que não é outra coisa senão um modo especialmente familiar de O conhecer e amar.

Podemos contemplar a Deus nas atividades que realizamos por Seu amor, porque esse amor é participação do Amor infinito que é o Espírito Santo, que perscruta as profundezas de Deus[10]. Aquele que trabalha por amor a Deus pode perceber — sem pensar n em outra coisa, sem se distrair — de que O ama quando trabalha, com o amor que infunde o Paráclito nos corações dos filhos de Deus em Cristo[11]. Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio trabalho, do nosso esforço.[12].

Também podemos contemplar a Deus através do trabalho, porque se é feito com amor será um trabalho realizado com a maior perfeição de que sejamos capazes nessas circunstâncias, uma tarefa que reflita as perfeições divinas, um trabalho como o de Cristo. Não necessariamente porque tenha saído bem aos olhos dos homens, mas porque está bem feito aos olhos de Deus. Pode acontecer que o trabalho tenha saído mal ou que humanamente tenha sido um fracasso e que, no entanto, tenha sido bem feito diante de Deus, com retidão de intenção, com espírito de serviço, com a prática das virtudes; em uma palavra, com perfeição humana e cristã. Um trabalho assim é meio de contemplação; assim se compreende que a contemplação é possível através de trabalhos que exigem aplicar todas as energias da mente, como são – por exemplo – o estudo ou a docência.

O cristão que trabalha ou cumpre os seus deveres por amor a Deus, trabalha em união vital com Cristo. As suas obras convertem-se então em obras de Deus, em operatio Dei e, por isso mesmo, são meio de contemplação. Mas não basta estar na graça de Deus e que as obras sejam moralmente boas. Têm de estar informadas por uma caridade heroica e realizadas com virtudes heroicas e com esse modo divino de agir que conferem os Dons do Espírito Santo àquele que é dócil à Sua ação.

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A contemplação na vida corrente faz pré-saborear a união definitiva com Deus no Céu. Ao mesmo tempo que leva a agir cada vez com mais amor, inflama o desejo de O ver já não por meio das atividades que realizamos, mas cara a cara.Vivemos então como cativos, como prisioneiros. Enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro dos nossos erros e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício, a alma anseia por escapar-se. Vamos rumo a Deus, como o ferro atraído pela força do ímã. Começamos a amar Jesus de forma mais eficaz, com um doce sobressalto. (...) Um novo modo de andar na terra, um modo divino, sobrenatural, maravilhoso. Recordando tantos escritores castelhanos quinhentistas, talvez nos agrade saborear isto por nossa conta: Vivo porque não vivo; é Cristo que vive em mim! (cfr. Gal 2, 20)[13].

F.J. López Díaz


[1] Lc 10, 38-42.

[2] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 307.

[3] São Josemaria, Caminho, n. 92.

[4] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 296.

[5] São Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 673 (de 26-III-1932). Citado em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. I, Quadrante, São Paulo 2004, p. 384.

[6] Cfr. São Josemaria, Caminho, n. 815.

[7] Cfr. 1 Jo 4, 8.

[8] S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae., Suppl., q. 82, a. 3 ad 4.

[9] 1 Ts 2, 4.

[10] Cfr. 1 Cor 2, 10.

[11] Cfr. Rm 5, 5.

[12] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 48.

[13] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 297.