Ser simples: ver claro o caminho

Às vezes, temos dificuldade para enfrentar os problemas com simplicidade. Tendemos a complicar nossos pensamentos e cansar assim nossa vontade. Recordar que Deus nos olha continuamente pode ajudar-nos, assim como procurar concentrar-nos no presente.

“Procurai o suficiente, procurai o que basta! O resto é aflição, não alívio; pesa, não levanta”[1]. Como indica Santo Agostinho, a vida cristã consiste em buscar a união com Deus e desprender-se do resto. Esta viagem interior traz consigo numerosas escolhas nas quais tentamos identificar e escolher o que basta, liberando-nos do resto.

Sabemos, por experiência própria, que essa busca pode ser complexa. Há época em que a vida se converte em um labirinto: atravessamos momentos de confusão interior e caos exterior, dias em que temos a cabeça cheia e a alma vazia. Pode acontecer que, por caráter ou em períodos difíceis, tendamos a complicar as coisas, analisando mil vezes a realidade. Qualquer decisão nos paralisa e não conseguimos sintonizar com a vontade do Senhor. Desejamos então que a vida seja mais simples e nossos raciocínios mais diretos. Suspiramos pela virtude da simplicidade, capaz de iluminar a mente e tornar a alma leve.

Como discernir a vontade de Deus? Como aceitar com serenidade os acontecimentos da vida diária? Como relacionar-nos com as pessoas que nos rodeiam sem distorcer as suas intenções? Convém, em primeiro lugar, refletir sobre a origem da nossa tendência à complicação. Proporemos depois duas virtudes que podem ajudar-nos a desfazer a situação complicada da nossa alma: a humildade e o abandono.

O Criador da vida e o “criador” do medo

Assim como o artista deixa a sua marca no quadro que pinta, Deus imprimiu na criação uma característica profunda da sua essência: a unidade, que se refletia na harmonia que reinava no Paraiso. Em tudo o que foi criado por Deus, Unidade na Trindade, nada faltava e nada sobrava[2]. O mundo e o homem haviam surgido do Amor (porque só o amor é capaz de criar) e o Amor os mantinha unidos.

Diante do Senhor Criador, perante o Deus da afirmação, do sim, do “faça-se” (Gn 1, 3) surge, no entanto, a voz do tentador. Como o diabo não pode criar – não tem esse poder – ele, de alguma forma, descria: sugere ao homem uma leitura da realidade que, na verdade, não existe. Desde Adão e Eva, joga com os nossos medos para que imaginemos situações futuras para as quais estaríamos despreparados ou segundas intenções nas palavras ou ações dos outros. Transforma-nos assim, pouco a pouco, em almas inseguras, calculistas e preocupadas.

“É verdade que Deus vos proibiu comer o fruto de toda árvore do jardim”? (Gn 3, 1), pergunta o diabo. Ao fixar a atenção na árvore proibida, o homem infelizmente deixa de apreciar o resto dos dons de Deus: plantas, animais, outros seres humanos, uma vida em estado de graça... Começa a olhar o mundo com desconfiança, com olhos complicados. Satanás nos faz crer que falta algo, que Javé não é sincero, mas que há duplicidade em suas intenções. Sugerindo assim cenários possíveis em nosso coração, afastando-nos da harmonia original. “Olha – diz o sábio – o que achei foi apenas isto: Deus fez o homem simples, mas ele se complicou com muitas razões” (Qo 7,29).

Desde então temos dificuldade para procurar o bem e tomar decisões que nos levem a Deus. Sonhamos com a harmonia do nosso passado junto d’Ele e essa espécie de recordação que ficou na alma continua nos atraindo para o Senhor. A liturgia da Sexta Feira Santa expressa-o assim: “Deus onipotente e eterno, colocaste no coração dos homens uma tão profunda nostalgia de ti, que só acham a paz quando te encontram”.

A complicação, um dos efeitos dessa desunião com Deus, prepara para o pecado. Por isso, os nossos primeiros pais escondem-se de Deus, pensando no que poderia acontecer se fossem vistos nus. O diabo volta a inspirar medo de uma irrealidade, uma suposição, uma não criação, que afasta a criatura do Criador. Quando se vive com medo do futuro, o coração acaba se esgotando, e uma alma esgotada é o terreno mais fértil para a tristeza e a separação de Deus. O livro dos Provérbios diz sem rodeios: “O homem de coração falso não encontra a felicidade” (Pr 17, 20).

Humildade: ser olhados por Deus

Para nos vermos e ver o mundo com olhos simples é preciso em primeiro lugar saber-nos olhados por Deus. Esse olhar dá-nos muita segurança: percebemos que Deus nos ama e que o resto tem uma importância relativa. Sem ele, pelo contrário, sentimos a necessidade de proteger a nossa fragilidade e nos fechamos em nós mesmos ou ficamos paralisados pelo medo. Quem busca felicidade nesse olhar de amor goza da simplicidade, porque não depende das circunstâncias externas. “Somos da verdade – diz São João – e tranquilizaremos nossa consciência diante de Deus” (1 Jo 3, 19).

Simão Pedro era um homem bom, mas de coração complicado. Em seu amor pelo Senhor, misturam-se a dúvida e a decisão, a obediência e a rebeldia, a coragem e o medo... O seu momento de maior confusão aconteceu no pátio de Ananias, enquanto Jesus estava sendo interrogado durante a Paixão. Lá, a angústia do discípulo cresce em alguns momentos: quer ser fiel, mas não compreende o que está acontecendo, os fatos o superam. Gostaria de voltar àquelas caminhadas com o Mestre pelos campos da Galileia, quando sua palavra ressoava clara e os problemas eram resolvidas com um gesto do Senhor. Era fácil, naqueles dias, crer nas promessas. O futuro apresentava-se esplêndido, nítido.

O Evangelho conta que, em dado momento da noite, os seus olhares se cruzaram: “Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro se lembrou da palavra do Senhor: ‘Hoje, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes’. Saiu dali e chorou amargamente” (Lc 22, 61). O olhar de Jesus desfaz a confusão de Pedro. Ao ser olhado, consegue finalmente ver-se a si mesmo com os olhos de Deus. “Olha-me – pedia a Deus o futuro Bento XVI – como olhaste a Pedro depois de ter-te negado. Faz com que teu olhar penetre a minha alma e indique a direção de minha vida”[3].

Ver claramente nossa própria realidade – ver-nos como somos – pode fazer-nos chorar amargamente, é, porém, o único modo de pisar chão firme e abandonar a ânsia que produz em nós a pretensão de ser alguém diferente. Temos que ver-nos com os olhos de Deus e ser capazes de dizer: pois sou como sou; e mesmo assim, Deus me quis para algo.

“Conhecê-Lo e conhecer-te”[4]: estas são as razões que São Josemaria propunha para fazer a oração. Nesses momentos, o novelo dos nossos pensamentos pode desfazer-se com a graça de Deus, para obter uma visão serena dos problemas e de nós mesmos. Ajudar-nos-ão ainda as orientações recebidas na direção espiritual ou nos meios de formação. Confiar em alguém que nos conhece bem pode servir-nos para simplificar a realidade e tirar a importância dessa voz interior que se empenha em revolver nossos pensamentos. De fato, São Josemaria indicava que o objetivo da formação cristã que o Opus Dei oferece é a simplicidade. Por isso, às vezes, um primeiro passo para crescer nessa virtude será simplesmente aceitar um conselho e pô-lo em prática sem distorcê-lo.

Abandono: ‘agora’ é o tempo do amor

A dificuldade para abandonar-se em Deus pode ter muitas causas: complexos de inferioridade, autoestima mal administrada, ambiente de desconfiança, caracteres rígidos, dificuldade para conviver com os próprios erros, etc. O ritmo de trabalho atual, por outro lado, tende a complicar a vida e, às vezes, o caráter: por poder fazer mais coisas cada dia, aumentam as decisões que temos que tomar; nem sempre vemos as prioridades nitidamente; a competitividade social nos pressiona e produz ambições que acabam pesando na alma... desejaríamos viver uma vida simples, mas a realidade é excessivamente complicada para permiti-lo.

Diante deste panorama São Josemaria convida a ocupar-se do presente que é o kairós da nossa santidade. Afinal, só o agora é o tempo no qual podemos receber a Graça de Deus: “Porta-te bem ‘agora’, sem te lembrares do ‘ontem’, que já passou, e sem te preocupares com o ‘amanhã’, que não sabes se chegará para ti”[5]. O passado e o futuro podem, com efeito, acabar se convertendo em pesos que nos impedem de discernir claramente a vontade do Senhor. Concentrar-nos em uma tarefa – sem avaliar o que pensarão os outros ou que efeitos terá em nossa vida – ajuda-nos a dirigir a nossa vontade e aproveitar melhor os nossos talentos. É necessário, sem dúvida, ponderar os acontecimentos vividos e planejar o futuro, mas será melhor, às vezes, concentrar-se no aqui e agora, lembrando que só podemos dar o amor e recebê-lo neste instante.

“Por que estais perturbados, e por que estas dúvidas nos vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo” (Lc 24, 38). O Senhor ressuscitado percebe a agitação dos apóstolos ao vê-lo pela primeira vez com seu corpo glorioso. Os acontecimentos vividos nos últimos dias colidem com o que estão vendo, já que o escândalo da Paixão ainda pesava muito em seus corações. Compreendem, além disso que, se é mesmo Jesus, abre-se diante deles um futuro inimaginável… São tantas as emoções que o Senhor tem que fazê-los voltar ao presente com uma pergunta amistosa: “tendes aqui alguma coisa para comer? ”.

Jesus acaba com a confusão dos apóstolos recriando uma cena tantas vezes vivida, quando se sentavam juntos para comer. Assim também, empenhar-nos em servir os outros em coisas concretas e em realizar com esmero as ocupações da vida diária, abandonando em Deus os problemas que escapam do nosso controle, será o modo habitual de evitar de meter-nos na confusão e incorporar a simplicidade ao nosso caráter.

Ao ler os Evangelhos, podemos experimentar certa inveja diante da fé dos simples: o povo que, talvez sem muito conhecimento da Lei de Deus, aceitou de bom grado a mensagem de Jesus. Essa aceitação, sem nenhum “porém”, da Palavra do Senhor pode contrastar com a nossa dificuldade para confiar n’Ele. Talvez por isso a nossa pode ser, por contraste, a fé dos complicados.

Mesmo assim, Deus continua chamando constantemente para que recuperemos n’Ele essa harmonia perdida. Precisamos ver claramente o caminho de volta para casa, para o Paraíso. Crescendo em simplicidade, conseguiremos contemplar a realidade com os olhos de Deus, elevando-nos acima dos problemas com a leveza que dá o amor.


[1] Santo Agostinho, Sermão 85, 6.

[2] Gn, 2, 1.

[3] Card. Joseph Ratzinger, Via Sacra 2005, 1ª estação.

[4] São Josemaria, Caminho, 91.

[5] São Josemaria, Caminho, 253.

Juan Narbona