Existe uma cena nos primeiros capítulos do livro dos Atos dos Apóstolos que não perdeu nem um pingo de força. Depois de serem presos, os apóstolos são libertados milagrosamente por um anjo e, em vez de fugir das autoridades, voltam para o templo para ensinar. De novo são capturados e conduzidos aos príncipes dos sacerdotes. Estes, surpresos com o que veem, perguntam: “Não vos proibimos expressamente de ensinar nesse nome?”. Os apóstolos, em vez de se intimidarem, respondem: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens.” (At 5, 28-29).
Os primeiros cristãos herdaram essa profunda convicção. O livro dos Atos dos Apóstolos recolhe inúmeros exemplos, e a história dos primeiros séculos do cristianismo é suficientemente eloquente. Com a naturalidade do autêntico, uma vez ou outra nos deparamos com a mesma necessidade: “não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos” (At 4, 20). Os que creem são capazes de enfrentar castigos, e inclusive a morte, sem perder a alegria. Há algo em seus corações que lhes faz felizes, uma plenitude e uma Vida que sequer a morte pode lhes tirar, e que não podem deixar de compartilhar. Para nós, que chegamos à Igreja muito tempo depois, surge uma pergunta clara: Tudo isso é coisa do passado? Ou deveríamos ser assim também?
A atualidade da chamada
Talvez pensemos que existe um abismo entre nós e aqueles primeiros cristãos, que eles tinham um grau de santidade que jamais poderemos alcançar, que a proximidade física com Jesus (ou pelo menos com algum dos Doze) os fez quase impecáveis e os incendiou por dentro de tal maneira que nada nem ninguém podia apagar. Na realidade, basta abrir o Evangelho para sabermos que não é bem assim.
não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos (At 4, 20)
Muitas vezes os apóstolos se apresentam como homens com misérias: assim como nós. Por outro lado não têm uma preparação intelectual especial. Jesus envia os primeiros 72 quando estavam há apenas algumas semanas com Ele… (cfr. Lc 10, 1-12). No entanto, os primeiros fiéis da Igreja têm uma coisa muito clara: que Jesus Cristo, o Senhor, morreu e ressuscitou por cada um deles, que entregou a eles o Dom do Espírito Santo e que conta com eles para que essa Salvação chegue ao mundo inteiro. Não é questão de preparação, nem de ter condições excepcionais para o apostolado; trata-se simplesmente de acolher a chamada de Cristo, de se abrir a seu Dom e de corresponder com a própria vida. Talvez por isso o Papa Francisco quis recordar, com palavras de São Paulo, que “o Senhor escolheu a cada de um de nós ‘para sermos santos e íntegros diante dele, no amor’ (Ef 1, 4)”[1].
A Igreja de todos os tempos é consciente de ter recebido uma chamada de Cristo e, com ela, uma tarefa. Mais ainda, ela mesma é essa chamada e é essa tarefa: a Igreja é “missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na «missão» do Filho e do Espírito Santo”[2]. Não é apenas um desejo bonito, ou uma empresa humana, mas “continua e explicita através da história a missão do próprio Cristo”[3]. Em outras palavras, a Igreja – e, nela, cada um dos seus fiéis – é continuação da missão de Cristo, que foi enviado à Terra para trazer e consumar o Amor de Deus por suas criaturas. E isso é possível porque o Senhor lhe enviou – e nos envia também – o Espírito Santo que é o princípio desse mesmo Amor.
Deste modo, nós também somos fruto de uma chamada, e nossa vida consiste numa tarefa no mundo e para o mundo. Nossa vida espiritual e a ideia que temos sobre o apostolado muda quando as consideramos a partir desta perspectiva. O Senhor nos procurou e nos envia ao mundo para compartilhar a Salvação que recebemos com todos. “Ide, pregai o Evangelho... Eu estarei convosco...” - Isto disse Jesus... e disse-o a ti”[4]. Disse-o a mim: a cada uma e cada um. Na presença de Deus, podemos considerar: “Sou cristão porque Deus me chamou e me enviou…”. E do fundo do coração, movidos pela força de seu Espírito, responderemos com as palavras do Salmo: “Eis que venho para cumprir a tua vontade!” (Cfr. Sl 40, 8-9).
A experiência de um mandato imperativo
Durante os anos 50, quando viajava pela Europa para visitar os primeiros fiéis do Opus Dei que foram para diferentes países começar o labor apostólico da Obra, são Josemaria “dirigia com frequência a oração da tarde dos que o acompanhavam, fazendo-os considerar o texto evangélico em que o Senhor diz aos apóstolos: Eu vos escolhi para que vades… ut eatis”[5]. Era como um refrão. Tentava fazer com que as palavras de Jesus ressoassem nos corações das pessoas que estavam perto dele. Assim procurava que se reafirmassem na verdade que dava sentido à sua vida e que mantivessem vivo o sentido de missão, motor de toda sua existência. “Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos escolhi e vos designei, para dardes fruto e para que o vosso fruto permaneça.”(Jo 15, 16).
a chamada do Senhor continua ressoando através dos séculos, no coração de cada pessoa que crê
Já lemos – e escutamos – muitas histórias das primeiras pessoas que seguiram o Senhor no Opus Dei: o primeiro círculo, no asilo dePorta Coeli; a primeira Residência, na Rua Ferraz; a intensa vida de família que são Josemaria procurou cultivar durante os anos dramáticos da Guerra Civil; a primeira expansão pela Espanha; a chegada a Roma; a rápida expansão por todo o mundo… aqueles jovens – e alguns não tão jovens – seguiam o Fundador conscientes de estar seguindo uma autêntica chamada de Deus. Por meio da Obra, haviam encontrado e descoberto um tesouro pelo qual valia a pena dar a toda a vida: o Amor de Cristo, a missão de levar esse Amor ao mundo inteiro, de aproximar muitas pessoas do seu calor, de acender os corações com esse fogo divino. Não precisavam que ninguém ficasse lembrando esse fato: era urgente estender o incêndio. E isso é muito compreensível: “O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão”[6].
Alguns eram jovens e entusiastas, outros, talvez mais frios e racionais; mas todos estavam convencidos de que, por trás daquele jovem sacerdote e da obra que tinha nas mãos, havia um querer explícito de Deus. Por isso foram capazes de aceitar o convite do Senhor, deixar tudo e segui-lo. Tinham experimentado aquilo que são Josemaria lhes dizia: “não esqueçam, meus filhos, que não somos almas que se unem a outras almas para fazer uma coisa boa. Isso já é muito… mas é pouco. Somos apóstolos que cumprimos um mandato imperativo de Cristo”[7]. E, como seguiam Jesus com plena liberdade, aquele mandato não era um peso. Pelo contrário. É o que o Fundador também repetia: “essa convicção sobrenatural da divindade da empresa os dará um entusiasmo e amor tão intenso pela Obra, que vocês se sentirão felicíssimos sacrificando-se para que ela se realize”[8]. Não precisavam que ninguém explicasse o sentido dessas palavras: simplesmente o viviam.
Não fazemos apostolado, somos apóstolos!
Contemplar as histórias dos começos não nos deixa indiferentes. Já se passaram muitos séculos desde a pregação apostólica. Ainda não passaram cem anos desde a fundação da Obra. Toda a história da Igreja nos permite compreender que a chamada do Senhor continua ressoando através dos séculos, no coração de cada pessoa que crê – no nosso. O Amor se fez presente em nossa vida, fomos alcançados por Cristo (Cfr. Fl 3,12): agora cabe a cada uma e a cada um abraçar esse Amor e deixar que nossas vidas sejam transformadas por Ele. Uma coisa está unida à outra. Quanto mais centrada em Cristo está a nossa vida, mais “o sentido de missão da nossa vocação se fortalece, com uma entrega plena e alegre”[9].
Os primeiros e as primeiras na Obra, como aqueles primeiros cristãos, encontraram Jesus Cristo, abraçaram seu Amor e a missão que lhes propunha com todas as forças, e viram como sua vida se transformava de um modo maravilhoso. Neles se cumpriu o mesmo que o Padre quis nos recordar um pouco depois de ter sido eleito: “Somos livres para amar um Deus que chama, um Deus que é amor e que põe em nós o amor para amá-Lo e amar aos outros. Esta caridade nos dá plena consciência da nossa missão, que ‘não é um apostolado exercido de modo esporádico ou eventual, mas de modo habitual e por vocação, tomando-o como o ideal de toda a vida’”[10].
Somos livres para amar um Deus que chama, um Deus que é amor e que põe em nós o amor para amá-Lo
A missão apostólica, que preenche toda a vida, não é um encargo que alguém nos impõe, nem uma carga que se soma às nossas obrigações cotidianas; é a expressão mais exata da nossa própria identidade, que a chamada nos fez descobrir: “não fazemos apostolado, somos apóstolos!”[11]. Ao mesmo tempo, ao viver essa missão a nossa identidade de apóstolos se reforça. Nesse sentido, a vida de São Paulo é sempre uma fonte de inspiração. Quando lemos as histórias das suas viagens, chama a atenção a quantidade de vezes que sua missão não atinge o resultado esperado. Na primeira viagem, por exemplo, é rejeitado pelos judeus na Antioquia da Pisídia e mais tarde é expulso da cidade; tem que fugir de Iconio, ameaçado de morte; é lapidado em uma cidade de Licaonia… (cfr. At 13-14).
Mas mesmo assim, o “apóstolo das gentes” não perde de vista a chamada que Jesus lhe fez a caminho de Damasco, e depois concretizou quando chegou nessa cidade. Por isso, não se cansa de repetir: “O amor de Cristo nos impele!” Inclusive quando escreve para uma comunidade que ainda não o conhece não tem medo de se apresentar como “Paulo, servo do Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus”(Rm 1,1). Esse é ele: apóstolo por vocação, chamado para ser apóstolo, e logo depois se dirige àqueles fieis como “chamados a pertencer a Jesus Cristo (…), amados de Deus e santos por vocação”(Rm 1, 6-7). Paulo sabe que é chamado por Deus, mas tem consciência de que na realidade todos os fiéis também o somos[12]. Seu sentido de missão o leva a viver uma fraternidade que ultrapassa os laços terrenos. Analogamente à pergunta “quem sou eu?”, poderíamos responder: “sou alguém amado por Deus, salvo por Jesus Cristo, escolhido para ser apóstolo, chamado a levar o Amor que recebi a muitas pessoas. Por isso o apostolado não é um encargo para mim… e sim uma necessidade”. Depois de ter encontrado Jesus Cristo, sabemos que somos sal e luz, e por isso não podemos deixar de dar sabor, de iluminar, onde quer que estejamos. Esta é uma daquelas descobertas que revoluciona a vida espiritual, e que ninguém pode fazer por mim.
Com a força do Espírito Santo
Quando descobrimos o Senhor na nossa vida, quando nos sabemos amados, chamados, escolhidos, e decidimos segui-lo, “é como se acendesse uma luz dentro de nós, é um impulso misterioso, que empurra o homem a dedicar suas energias mais nobres a uma atividade que, com a prática, chega a ganhar corpo de ofício”[13].
A missão apostólica é, em primeiro lugar, “como se acendesse uma luz dentro de nós”. A escuridão própria da existência, que consiste em não saber com certeza o sentido da nossa vida, desvanece. O convite que Jesus nos faz nos permite compreender nosso passado e, ao mesmo tempo, oferece-nos uma rota clara para o futuro. O próprio Jesus viveu assim sua vida na Terra. Quando uma multidão de pessoas pede que Ele fique em um lugar, Ele sabe que deve continuar sua viagem: “Eu devo anunciar a Boa Nova do Reino de Deus também a outras cidades, pois é para isso que fui enviado” (Lc 4, 43). Inclusive ao encarar sua Paixão permanece sereno e confiante, e diante do juiz romano não duvida: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade.”(Jo 18, 37).
Viver com sentido de missão é sabermo-nos em todos os momentos enviados pelo Senhor para levar seu Amor àqueles que estão à nossa volta: fomos criados para isso. É também em cada momento decidir o que fazer, em função dessa missão que dá conteúdo e finalidade à nossa passagem pela Terra. Podem existir dificuldades, obstáculos, contradições; haverá momentos de escuridão; mas a estrela que indica o norte continua brilhando sempre no firmamento. Minha vida tem um porquê, existe uma luz que me orienta.
Essa luz da missão ao mesmo tempo é impulso. Mas não como uma força humana. Logicamente haverá momentos de entusiasmo sensível em nossa vida, nos quais sentiremos o desejo ardente de espalhar o fogo de Cristo às pessoas ao nosso redor. Porém, qualquer pessoa que já esteja seguindo o Senhor há algum tempo pôde comprovar que o impulso humano vai e vem. Isso não tem nada de mau: é humano, e os santos são os primeiros que passaram por isso, como nos recorda, sem precisar ir muito longe, a vida do Bem-Aventurado Álvaro del Portillo. Como se sabe, um pouco depois de pedir a Admissão na Obra teve que escrever ao Fundador para reconhecer que seu entusiasmo havia passado[14].
Em tudo isso, é bom não perder de vista que a autêntica força, o dinamismo que nos leva a sair de nós mesmos para servir os outros “não é uma estratégia, mas a própria força do Espírito Santo, Caridade incriada”[15]. Efetivamente, “nenhuma motivação será suficiente se nos corações não arde o fogo do Espírito”, e precisamente por isso, “para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos invocá-Lo constantemente”[16]. Os fiéis do Opus Dei o invocamos diariamente na Missa, em algumas orações vocais, como o terço ou as Preces da Obra. Em alguns momentos pode nos ajudar recorrer a algumas orações dirigidas especialmente a Ele, como a Sequência do Pentecostes, o Hino Veni Creator Spiritus, ou outras tantas orações que foram sendo dedicadas a Ele ao longo dos séculos. Em todas elas pedimos a Ele que venha, que nos transforme, que nos encha do Amor e força que moveram Cristo. Pediremos então: “Espírito de amor, criador e santificador das almas, cuja primeira obra é transformar-nos à semelhança de Jesus, ajudai-me a conformar-me com Jesus, a pensar como Jesus, a falar como Jesus, a amar como Jesus, a sofrer como Jesus, a agir em todos os momentos como Jesus”[17].
Assim, o impulso transformador do Espírito Santo nos dará um coração ardente como o de Jesus Cristo, e a missão apostólica se converterá no sangue que moverá nosso coração. Pouco a pouco, adquirirá forma para nós em “uma atividade que, com a prática, chega a ganhar corpo de ofício”[18]. Se nos deixarmos levar pelo Amor de Deus, se permanecermos atentos às suas inspirações e dermos importância aos pequenos gestos que Ele nos indica, o apostolado se converte no ofício que constitui nossa própria identidade. Não vai ser preciso que nos proponhamos, e também não será necessário estar em um lugar ou um contexto determinado para atuar como apóstolos. Assim como quem é médico (e não só atua como médico), não deixa de sê-lo em nenhum lugar ou circunstancia (num ônibus onde alguém passa mal, durante as férias, no meio da semana e no fim de semana, etc.), nós somos apóstolos em todos os lugares e circunstâncias. No fundo, trata-se de algo tão simples como ser o que já somos: “todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8, 14). O mais importante é permanecermos abertos à ação do Paráclito, atentos para “reconhecer como podemos cumprir melhor a missão que nos foi confiada no Batismo”[19] e que constitui a realização da nossa própria vida.
Lucas Buch
[1] Papa Francisco, Ex. Ap. Gaudete et Exultate, 19-III-2018, n. 2.
[2] Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes, 7-XII-1965, n. 2.
[3] Ibid, n. 5
[4] São Josemaria, Caminho, n. 904.
[5] A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. 3, Quadrante, São Paulo 2004, pg 110.
[6] Papa Francisco, Ex. Ap. Evangelii Gaudium, 24-XI-2013, n. 9.
[7] São Josemaria, Instrucción 19-III-1934, n. 27.
[8] Ibid. n. 49
[9] F. Ocáriz, Carta Pastoral, 14-II-2017, n. 8.
[10] Ibid., n. 9
[11] Íd.
[12] O termo Igreja deriva daí, ekklesia, que literalmente significa “os convocados”, ou seja, “todos nós, que somos batizados e cremos em Deus, somos convocados pelo Senhor”, Youcat, n. 121.
[13] São Josemaria, Carta 9-I-1932, n. 9.
[14] Cfr. São Josemaria, Caminho. Edição crítico-histórica, comentário ao n. 994.
[15] F. Ocáriz, Carta Pastoral, 14-II-2017, n. 9.
[16] Papa Francisco, Ex. Ap. Evangelii. Gaudium 24-XI-2013, nn. 261 e 280, respectivamente. Neste mesmo documento, sugere-nos: “Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma” (Ibid., N. 259).
[17] A. Riaud, A ação do Espírito Santo na alma, Quadrante, São Paulo 1998, pg 39.
[18] São Josemaria, Carta 9-I-1932, n. 9.
[19] Papa Francisco, Ex. Ap. Gaudete et Exultate, 19-III-2018, n. 174.