Santificar o descanso

“O homem tem que imitar a Deus tanto trabalhando quanto descansando, pois Deus mesmo quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma de trabalho e de descanso” (São João Paulo II).

Terminou Deus no dia sétimo a obra que havia feito, e descansou no dia sétimo de toda a obra que havia feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou porque nesse dia descansou Deus de toda a obra que havia realizado na criação (Gen 2, 1-3).

Essas palavras do Gênesis se encontram resumidas numa frase do livro do Êxodo: Em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo quanto contém, e no sétimo descansou (Ex 20, 11). A doutrina da Igreja aplicou esses textos ao dever de descansar: “O homem tem que imitar a Deus tanto trabalhando quanto descansando, pois Deus mesmo quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma de trabalho e de descanso”[1].

Corresponde à pessoa humana prolongar a obra criadora mediante seu trabalho[2], mas sem esquecer o descanso. O sétimo dia, que Deus santifica, tem um profundo significado: por um lado, é um tempo apropriado para reconhecer a Deus como autor e Senhor de todo o criado; por outro, é uma antecipação do descanso e da alegria definitivos na ressurreição, e uma necessidade para poder continuar a trabalhar.

A mensagem de São Josemaria valoriza muito o trabalho, mas com um limite. Não o glorifica como se fosse o fim último, nem apresenta o sucesso profissional como um ídolo ao qual o homem deve sacrificar a vida. O descanso não é opcional, é um dever da lei moral natural e um preceito da Igreja, estabelecido como parte constitutiva da santificação das festas[3].

Uma vida submersa unicamente nas fadigas do trabalho, como se tudo dependesse disso, “correria o risco de esquecer que Deus é Criador, do qual tudo depende”[4]. O cristão tem de fazer tudo para a glória de Deus[5], e nesse “tudo” está incluído o descanso, que é parte do caminho de santificação. “Tudo é meio de santidade: o trabalho e o descanso (...): em tudo devemos amar e cumprir a Vontade de Deus”[6].

Harmonizar o trabalho e o descanso

Deus é um Pai que conhece perfeitamente os seus filhos. Ao mesmo tempo em que nos convida a colaborar com Ele no aperfeiçoamento da criação mediante o trabalho, manda-nos descansar para reconhecermos que o trabalho não é um fim último da nossa vida e para não esquecermos os nossos limites, nem a condição frágil e quebradiça da nossa natureza. A chamada divina ao trabalho inclui o dever de interrompê-lo, a obrigação do descanso. “De fato, a alternância de trabalho e descanso, inscrita na natureza humana, foi querida pelo próprio Deus”[7].

Superestimar as próprias forças poderia dar lugar a danos à saúde física e psíquica, que Deus não quer e que seriam obstáculo para o serviço aos outros. São João Paulo II escreve: “o repouso é coisa ‘sagrada’, constituindo a condição necessária para o homem se subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e retomar consciência de que tudo é obra de Deus”[8].

Certamente há momentos nos quais o Senhor pode pedir esforços que acarretem um maior desgaste, mas essas situações têm de ser moderadas na direção espiritual, porque somente então teremos a garantia de que é Deus quem o pede e que não nos enganamos com motivos humanos pouco claros.

“Parece-me, por isso, oportuno lembrar-vos da conveniência do descanso. Se a doença bater à porta, recebê-la-emos com alegria, como vinda das mãos de Deus, mas não a devemos provocar com a nossa imprudência: somos homens, e temos necessidade de repor as forças do nosso corpo”.

São Josemaria incentivava a trabalhar com intensidade, combatendo a preguiça e a desordem, mas acrescentava: “Como é que trabalhará o burro se não lhe dão de comer nem dispõe de algum tempo para restaurar as forças...?”[9] “Parece-me, por isso, oportuno lembrar-vos da conveniência do descanso. Se a doença bater à porta, recebê-la-emos com alegria, como vinda das mãos de Deus, mas não a devemos provocar com a nossa imprudência: somos homens, e temos necessidade de repor as forças do nosso corpo”[10].

A vida de Dom Álvaro del Portillo é um exemplo grandioso de disponibilidade para trabalhar com espírito de sacrifício heroico e, ao mesmo tempo, de docilidade para descansar o necessário.

O descanso não consiste no simples ócio, no sentido de “moleza”. Não deve ser entendido negativamente, mas sim como uma atitude positiva. “O descanso não é não fazer nada: é distrairmo-nos em atividades que exigem menos esforço”[11]. O descanso de Deus ao concluir a criação não é inatividade. Lê-se na Sagrada Escritura, no contexto da obra criadora, que Deus brinca com o orbe da terra e que suas delícias são estar com os filhos dos homens (Prov. 8, 31). Também o descanso do homem é uma atividade recreativa, e não a simples abs­tenção do trabalho.

A razão de ser do descanso é o trabalho, e não o contrário. Descansa-se para trabalhar, não se trabalha para descansar ou para obter meios econômicos que permitam entregar-se ao ócio. Concluída a criação, Deus descansou da sua obra, mas também seguiu agindo: “Opera com a força criadora, sustentando na existência o mundo que chamou do nada ao ser, e opera com a força salvífica nos corações dos homens (cf. Heb 4, 1; 9-16), os quais destinou desde o princípio ao descanso em união consigo mesmo, na casa do Pai” (cf. Jo 14, 2)[12].

“Sempre entendi o descanso como um afastar-se do acontecer diário, nunca como dias de ócio. Descanso significa represar: acumular forças, ideais, planos... ”.

“Sempre entendi o descanso como um afastar-se do acontecer diário, nunca como dias de ócio. Descanso significa represar: acumular forças, ideais, planos... Em poucas palavras: mudar de ocupação, para voltar depois – com novos brios – às tarefas habituais”[13].

São Josemaria considera a distração e o descanso “tão necessários quanto o trabalho na vida de cada um”[14].

Matéria de santificação

O descanso é positivamente matéria de santificação. Não é só uma exigência da santificação das festas, um deixar de trabalhar que permite dedicar tempo ao culto divino, mas também uma atividade que há de ser san­tificada. Assim como o cristão tem de “trabalhar em Cristo” – viver a vida de Cristo no trabalho –, igualmente deve “descansar em Cristo”. Esta expressão pode se referir ao repouso eterno, mas também se aplica ao descanso nessa terra. “Descansar em Cristo” significa, de um lado, abandonar nele todas as preocupações (cf. Mt 11, 28-30), o que é possível a todo o momento, inclusive no meio do trabalho. Por outro lado, pode se referir ao tempo dedicado especificamente ao descanso, e então “descansar em Cristo” significa buscar nesses momentos a união com Ele, a que o Senhor nos convida quando diz aos Apóstolos: Vinde à parte, para algum lugar deserto, e descansai um pouco (Mc 6, 31)[15]. Jesus queria que os seus amigos descansassem com Ele, e “não recusava o descanso que lhe ofereciam as suas amizades”[16]. A união com Cristo não deve conhecer pausas: o descanso não é um parêntese no trato com Ele.

Em ambientes onde existe uma competitividade exagerada que tende a absorver quase todo o tempo disponível, é especialmente importante não perder a visão cristã do descanso. De maneira particular: “O descanso dominical e festivo adquire uma dimensão ‘profética’, defendendo não só o primado absoluto de Deus, mas também o primado e a dignidade da pessoa sobre as exigências da vida social e econômica, e antecipando de certo modo os ‘novos céus’ e a ‘nova terra’, onde a libertação da escravidão das necessidades será definitiva e total. Em resumo, o dia do Senhor, na sua forma mais autêntica, torna-se também o dia do homem[17].

Descansar como filhos de Deus

Com a plenitude da Revelação, em Cristo, alcançamos uma compreensão mais plena do trabalho e do descanso, inseridos na dimensão salvadora: o descanso, como antecipação da Ressurreição, ilumina a fadiga do trabalho como união à Cruz de Cristo.

Assim como, em Cristo, Cruz e Ressurreição formam uma unidade inseparável, ainda que sejam dois acontecimentos históricos sucessivos, analogamente, o trabalho e o descanso devem estar integrados em unidade vital. Por isso, além da sucessão temporal da troca de ocupação que supõe o descanso à parte do trabalho, trabalha-se e se descansa no Senhor: trabalha-se e se descansa como filhos de Deus.

Essa nova perspectiva introduz o descanso no próprio trabalho, realizando-o como uma tarefa filial, sem tirar o que tem de esforço e fadiga. O que fica excluído é outro gênero de cansaço bem distinto, que procede de buscar no trabalho principalmente a afirmação pessoal e de trabalhar somente por motivos humanos. Esse cansaço Deus não quer: Inútil levantar-vos antes da aurora, e atrasar até alta noite vosso descanso, para comer o pão de um duro trabalho (Sal 126, 2).

“Descansai, filhos, na filiação divina. Deus é um Pai, cheio de ternura, de infinito amor”.

“Descansai, filhos, na filiação divina. Deus é um Pai, cheio de ternura, de infinito amor. Chamai-O Pai muitas vezes, e dizei-lhe – a sós – que O amais, que O amais muitíssimo: que sentis o orgulho e a força de ser filhos seus”[18].

Nós, filhos de Deus, achamos descanso no abandono filial de quem sabe que, por trás das dificuldades e preocupações próprias da nossa condição terrena, há um Pai eterno e onipotente, que nos ama e nos sustém.

Saber-se filhos de Deus – outros Cristos, o próprio Cristo – conduz a um trabalho mais sacrificado e abnegado, em que se abraça a Cruz de cada dia com o amor do Espírito Santo, para cumprir a Vontade de Deus sem desfalecer. O sentido da filiação divina nos move a trabalhar sem descanso, porque o cansaço do trabalho passa a ser redentor. Então, vale a pena empenhar-nos com todas as energias na tarefa, já que não obtemos apenas frutos materiais, mas também levamos o mundo a Cristo.

No episódio da Transfiguração se narra que seis dias depois de anunciar sua Paixão e morte, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e conduziu-os à parte a uma alta montanha. Lá se transfigurou na presença deles (Mt 17, 1-4). São Tomás, comentando essa passagem, relaciona os seis dias depois, pelos quais o Senhor decidiu para manifestar a seus discípulos uma antecipação da Ressurreição gloriosa, com o dia sétimo em que Deus descansou da obra criadora[19]. Os três discípulos, admirados da glória do Senhor, expressam a alegria de contemplá-lO e o desejo de prolongar essa antecipação do Céu: Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas. Mas esse momento não devia se perpetuar ainda. O gozo do Tabor haveria de lhes dar, no entanto, esperança para continuar o caminho que, passando pela Cruz, conduz à Ressurreição.

Santificar o descanso, e especialmente o descanso dominical – paradigma do descanso cristão que celebra a Ressurreição do Senhor –, ajuda a descobrir o sentido de eternidade e contribui para renovar a esperança: “O domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo atual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho”[20].

Santificar as diversões no lar e fora do lar

Os primeiros cristãos viviam a sua fé num ambiente hedonista e pagão. Desde o princípio, deram-se conta de que o seguimento de Cristo não era compatível com formas de descanso e de diversão que desumanizam ou degeneram. Em uma homilia, Santo Agostinho se referia com palavras enérgicas à assistência a espetáculos deste tipo: “Nega-te a ir, reprimindo em teu coração a concupiscência temporal, e mantém-te em uma atitude forte e perseverante”[21].

É preciso discernir, “entre os meios da cultura humana e as diversões que a sociedade proporciona, aqueles que estão mais de acordo com uma vida segundo os preceitos do Evangelho”[22].

É necessário aprender a descansar em família, superando a comodidade e a tendência a pensar somente em si mesmo.

Com valentia e verdadeira preocupação pelo bem dos outros, devemos esforçar-nos para selecionar diversões dignas, que correspondam ao sentido cristão do repouso. Antes de tudo no próprio lar: é necessário aprender a descansar em família, superando a comodidade e a tendência a pensar somente em si mesmo, e ocupar-se ativamente do descanso dos outros. Não é pouca a atenção necessária para escolher os programas de televisão mais convenientes e vê-los junto aos filhos pequenos. Também é preciso evitar a solução fácil de deixar os filhos um pouco mais velhos sozinhos na frente do televisor ou navegando na internet. A família tem de ser uma escola em que todos os membros aprendam a descansar pensando uns nos outros.

Mas não só se descansa no próprio lar. Dom Álvaro del Portillo, seguindo o ensinamento de São Josemaria, considerava importante a criação de lugares “onde impere um tom cristão nas relações sociais, nas diversões, no aproveitamento do tempo livre”[23]. O Concílio Vaticano II animou todos os cristãos a cooperar na imponente tarefa direcionada a conseguir “que as manifestações e atividades culturais coletivas, características do nosso tempo, sejam penetradas de espírito humano e cristão”[24]. Em Jesus, Maria e José, vemos esse equilíbrio harmônico.

“Família, trabalho, festa: três dons de Deus, três dimensões da nossa existência que têm de encontrar um equilíbrio harmônico”[25]. A vida familiar e o trabalho não impediam os três de participar das festas: Iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa (Lc 2, 41). Esse também é um modo de descansar, de cultivar a relação com os amigos, de conhecer outras famílias e de dar vigor à sociedade.

A Igreja necessita de pessoas que se dediquem, com mentalidade laical, a este campo da nova evangelização. “Urge recristianizar as festas e os costumes populares. – Urge evitar que os espetáculos públicos se vejam nessa disjuntiva: ou piegas ou pagão. Pede ao Senhor que haja quem trabalhe nessa tarefa urgente, a que podemos chamar ‘apostolado da diversão’”[26].


[1] São João Paulo II, EncíclicaLaborem Exercens, 14.9.1981, n. 25.

[2] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2184.

[3] Cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes, n. 67; Código de Direito Canônico, c. 1247; Catecismo da Igreja Católica, n. 2184 e segs.; São João Paulo II, Carta Dies Domini, 31.5.1998.

[4] São João Paulo II, Carta Dies Domini, n. 65.

[5] Cf. 1 Cor 10, 31.

[6] São Josemaria Escrivá, A sós com Deus, n. 29.

[7] São João Paulo II, Carta Dies Domini, n. 65.

[8] Ibidem.

[9] Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 137.

[10] São Josemaria Escrivá, Carta, 15.10.1948, n. 14.

[11] Josemaria Escrivá, Caminho, n. 357; Amigos de Deus, n. 62.

[12] São João Paulo II, Encíclica Laborem exercens, 14.9.1981, n. 25. Cf. Jo 5, 17.

[13] Josemaria Escrivá, Sulco, n. 514.

[14] Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 10.

[15] Cf. Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, n. 108.

[16] Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 121.

[17] São João Paulo II, Carta Dies Domini, n. 68.

[18] São Josemaria Escrivá, A sós com Deus, n. 221.

[19] São Tomás de Aquino, In Matth. Ev., XVII, 1.

[20] São João Paulo II, Carta Dies Domini, n. 26.

[21] Santo Agostinho, Sermo 88, 17.

[22] São João Paulo II, Carta Dies Domini, n. 68.

[23] Bem-aventurado Álvaro del Portillo, Carta pastoral, 1.7.1988.

[24] Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes, n. 61.

[25] Bento XVI, Homilia em Milão, 3.6.2012.

[26] Josemaria Escrivá, Caminho, n. 975.