Onde Deus se esconde

Na discrição e no silêncio dos sacramentos Jesus nos espera para que lhe abramos nossa alma livremente.

Há um grande alvoroço no Monte das Oliveiras. Levam até lá, aos empurrões, uma mulher que tinha sido encontrada com um homem que não era seu marido. É fácil imaginar a dor de Jesus pensando no sofrimento daquela pobre mulher e na cegueira daqueles homens: Como conhecem pouco seu Pai Deus! Na verdade, eles a arrastaram para lá numa armadilha para Jesus: “Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes?” (Jo 8,5).

No fundo, não estão interessados na resposta. Usando as leis de Deus, esses homens querem uma justificativa para a sua sentença pessoal já aprovada. Por isso, não serão capazes de compreender o primeiro gesto eloquente que o Senhor lhes oferece: “Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever no chão, com o dedo” (Jo 8,6). Depois, Ele se levanta e lhes diz claramente: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” (Jo 8,7). E, ao final, inclina-se novamente e escreve na areia sob seus pés.

Ações e gestos discretos

Nesta passagem vemos que, ainda que Jesus se levante para falar publicamente, quando Ele quer escrever algo que responda pessoalmente à vida daquela mulher, inclina-se sobre o chão. Esta é geralmente a forma como Ele se comunica conosco: agachado, escondido, como se estivesse ocultando a sua divindade em ações discretas e pequenos gestos. Às vezes temos dificuldade para valorizar o que está escrito na terra. Em várias ocasiões não somos capazes de reconhecer o Senhor aí.

Isso passa tão despercebido que o evangelista nem mesmo nos contou o que Jesus escreveu. O Filho de Deus aparece na cena – da mesma forma que também aparece em nossas vidas – mas não quer impor a sua presença, nem a sua opinião, nem mesmo quer especificar de forma clara uma interpretação correta da lei de Moisés, como eles lhe pediam. Jesus “não mudou a história forçando alguém ou à força de palavras, mas com o dom da sua vida. Não esperou que nos tornássemos bons para nos amar, mas deu-Se gratuitamente a nós. Por nossa parte, não esperemos que o próximo se torne bom para lhe fazermos bem, que a Igreja seja perfeita para a amarmos, que os outros tenham consideração por nós para os servirmos. Comecemos nós. Isto é acolher o dom da graça. E a santidade consiste precisamente em preservar esta gratuidade”[1].

Talvez tenhamos nos perguntado muitas vezes por que Deus não se manifesta mais claramente, por que não fala mais alto. Talvez, inclusive, já desejamos nos rebelar diante desta sua forma de ser e, ingenuamente, procuramos corrigi-la. Bento XVI nos prevenia diante dessa tentação, fazendo-nos ver o que se repete constantemente ao longo da história: “Cansado de um caminho com um Deus invisível, agora que também Moisés, o mediador, desapareceu, o povo pede uma presença tangível, palpável, do Senhor, e encontra no bezerro de metal fundido, construído por Aarão, um deus que se torna acessível, manobrável, ao alcance do homem. Trata-se de uma tentação constante no caminho de fé: eludir o mistério divino, construindo um deus compreensível, correspondente aos próprios esquemas, aos próprios programas”[2].

Não queremos cair nessa tentação. Gostaríamos de nos maravilhar e adorar ao Deus escondido nas situações que vivemos cada dia, nas pessoas que nos rodeiam, nos sacramentos aos que acudimos com frequência, como a confissão e a santa Missa. Queremos encontrar Jesus nesta terra onde escreve, com sua própria mão, palavras de carinho e esperança. Por isso pedimos a Ele para compreender as suas razões para agir desta forma, pedimos que tenhamos a sabedoria para valorizar o mistério desse refinado respeito que Ele tem pela nossa liberdade. Na cena evangélica vemos que Jesus não fica com raiva da mulher que pecou nem dos acusadores que lhe montaram uma armadilha. Coloca-se no meio de ambos e toma para si as pedras, os gritos, a condenação. Pode-nos vir à mente o que o livro dos Reis narra quando nos diz que Deus não está no vento forte que quebra os rochedos, nem no terremoto, nem no fogo. Deus é um sussurro de brisa suave. Aí o encontrou Elias e aí queremos, também nós, descobri-lo (cfr. 1 R 19,11-13).

Quando Deus parece muito vulnerável

Pode ser que este modo de ser de Deus nos inquiete. Podemos pensar que esse silêncio facilita que os seus direitos sejam pisoteados, pode nos passar pela cabeça que esse mecanismo é bastante arriscado, que o torna muito vulnerável. De fato, Deus nos deu um grau tão alto de liberdade que podemos realmente escolher os nossos caminhos, tão diferentes uns dos outros, usando a vontade ajudada pela graça. Mas se alguma vez podemos ofender a Deus não é porque Ele seja demasiadamente suscetível. Ao contrário, Ele tem muita confiança, é muito livre nas relações que estabelece conosco. Pode parecer fácil passar por cima do amor que na realidade Ele merece, mas isso acontece porque Ele quis colocar o seu coração no chão, para que nós pisássemos no macio. O Senhor não sofre, nem se sente ofendido pelo que isso supõe para Si, mas pelo dano que causa a nós mesmos. Jesus adverte às mulheres que choravam no caminho do Calvário: “Mulheres de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! Porque dias virão em que se dirá: ‘Felizes as estéreis, os ventres que nunca deram à luz e os seios que nunca amamentaram’. Então começarão a pedir às montanhas: ‘Caí sobre nós!’, e às colinas: ‘Escondei- nos!’ Pois, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” (Lc 23,28-31).

No entanto, o mais surpreendente é que o Senhor não se queixa, não se zanga, não se cansa. Inclusive, se alguma vez deixamos pouco espaço para Ele em nosso coração, não se afasta batendo a porta. Deus sempre fica por perto, sem fazer ruído, como oculto nos sacramentos, com a esperança de que voltemos a permitir o quanto antes que Ele se hospede plenamente na nossa alma.

É verdade que, como Jesus nos oferece uma e outra vez o seu amor, podem ser muitas as vezes que tenhamos falhado com Ele. Mas Ele não se preocupa com o imenso tamanho da chaga de seu coração se isso a converte na porta pela que entremos e descansemos em seu amor. Deus não é ingênuo e, por isso, nos disse que faz isso com todo amor: “Meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11,30). No entanto, nós, seres humanos, podemos achar que tanta bondade é exagerada e, inclusive inconscientemente, reagir com certa descrença. Podemos não chegar a compreender a verdadeira magnitude desse presente que Deus nos dá. São Josemaria dizia que os homens podem quebrar “o jugo suave, sacodem das costas a sua carga, maravilhosa carga de santidade e justiça, de graça, de amor e paz. Enfurecem-se diante do amor, riem-se da bondade inerme de um Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos para se defender”[3].

A proximidade da confissão

Voltando à cena do Monte das Oliveiras, onde montaram a armadilha para Jesus, podemos ver que, ainda que aquela mulher não tivesse se respeitado a si mesma, seus acusadores não foram capazes de reconhecer nela uma filha de Deus. Mas Cristo a olha de outra forma. Que diferença entre o olhar de Jesus e o nosso! “Hoje diz a mim, a ti, a cada um de nós: ‘Amo-te e sempre te amarei; és precioso aos meus olhos’”[4]. Santa Teresa de Jesus, de alguma forma, experimentou esse olhar divino com frequência: “Considero muitas vezes, Cristo meu, quão cheios de graça e de delícias se mostram os vossos olhos a quem vos conhece e ama, e a quem vós, meu Bem, quereis fitar para sempre com amor. Parece-me que, às almas que tendes por Vossas, um só desses olhares tão suaves basta por prêmio de muitos anos de serviço”[5]. O olhar de Jesus não é ingênuo, mas profundo, e, por isso mesmo, compreensivo, cheio de futuro. “Ouve como foste amado enquanto não eras amável. Ouve como foste amado sendo torpe, antes que houvesse em ti algo que fosse digno de se amar. Vais sendo amado antes, para que te tornes digno de ser amado”[6].

No sacramento da confissão comprovamos que o arrependimento é suficiente para que Jesus acredite firmemente que o amamos. Foi-lhe suficiente o arrependimento de Pedro e basta-lhe também o nosso: “Senhor, Tu sabes tudo. Tu sabes que eu te amo” (Jo 21,17). Quando nos aproximamos do confessionário, naquelas palavras e gestos que dão forma ao sacramento, estamos dizendo a Jesus: “Ofendi-te de novo, voltei a buscar a felicidade fora de ti, desprezei teu carinho, mas Senhor, sabes que eu te amo”. Então ouvimos claramente, como aquela mulher: “Eu também não te condeno” (Jo 8,11). E enchemo-nos de paz. Se às vezes podemos pensar que Deus tomou poucas precauções para não ser ofendido por nós, ele tornou tudo mais fácil ainda para podermos ser perdoados por Ele. Um padre da Igreja coloca essas palavras nos lábios de Jesus: “Esta cruz não me feriu a mim, mas feriu a morte. Estes cravos não me provocam dor, mas cravam mais profundamente em mim o amor por vós. Estas chagas não me fazem soltar gemidos, mas vos introduzem ainda mais intimamente em meu coração. O meu corpo, ao ser estendido na cruz, não aumenta o meu sofrimento, mas dilata os espaços do coração para vos acolher. Meu sangue não é uma perda para mim, mas é o preço do vosso resgate”[7].

Por tudo isso desejamos ser muito respeitosos com esta delicadeza com que Deus nos trata. Preocupa-nos a mera possibilidade de abusar de tanta confiança. Não gostamos de rebaixar o sagrado, transformando-o somente numa rotina para cumprir a cada certo tempo. Ganhamos o sacramento da confissão pelo sangue de Jesus e não queremos deixar de agradecer-lhe por isso, também com obras. Queremos ouvir sempre este perdão divino, pelo qual fica mais fácil retirar qualquer obstáculo que impeça saber-nos outra vez olhados e empurrados por Deus em direção ao futuro.

A missa de Jesus é nossa Missa

São Tomás de Aquino explica o valor que tem a salvação realizada por Jesus no Calvário: “Cristo, sofrendo por obediência e caridade, ofereceu a Deus um bem maior do que o exigido pela recompensa da ofensa total do gênero humano”[8]. E podemos oferecer essa mesma oferenda sanadora como se fosse a nossa própria oferenda: ela nos é presenteada por Cristo cada dia na celebração da Eucaristia. Por isso, são Josemaria gostava de dizer que é “a nossa Missa”[9], de cada um de nós e de Jesus. Se quisermos, como é fácil ser corredentores! Como é fácil mudar o curso da história junto d’Ele!

Santo Agostinho, ao contemplar a cena do evangelho que meditamos, notava que “somente dois ficam aí: a miserável e a Misericórdia. Quando todos foram embora e só ficou a mulher, Cristo levantou os olhos e fixou-os nela. Já ouvimos a voz da justiça. Ouçamos agora também a voz da mansidão”[10]. Com que suavidade Jesus a convida para a santidade! Ela já não estará sozinha em sua luta. Saberá sempre que o olhar de Jesus a acompanha. Depois de termos saboreado essa suavidade já não desejamos viver de outra maneira: “Eu te saboreei, e agora, tenho fome e sede de Ti”[11]. Como é natural então relacionar-se com Jesus na Eucaristia com essa suavidade e respeito! Não supõe distância, nem é mera educação ou cortesia protocolar. É carinho verdadeiro, feito de liberdade e de admiração. Até na maneira de aproximar-nos para comungar, no silêncio diante do Sacrário ou nas genuflexões pausadas descobrimos uma oportunidade de corresponder a tanto amor derramado por cada um. Não são mais que amostras da pureza interior que desejamos e que tantas vezes já pedimos a Nossa Senhora, ao rezar a comunhão espiritual.

Na Santa Missa comprovamos de maneira especial que “quando Ele pede alguma coisa, na realidade está oferecendo um dom. Não somos nós que lhe fazemos um favor: é Deus quem ilumina a nossa vida, enchendo-a de sentido”[12]. Como gostaríamos de agradecer a Deus por fazer a santidade tão acessível! Assim torna-se fácil ver-nos, como aquela mulher, lançados por Jesus à esperança: “Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8,11). Essa é a melhor notícia possível. Jesus a convenceu de que o pecado não é inevitável, não é o seu destino, não é a última palavra. Há uma luz no fim do túnel que, no nosso caso, chega vigorosamente por meio dos sacramentos. Se já ninguém a condena, por que ela se condenaria? Agora sabe que, fortalecida por Jesus, pode voltar, fazer o seu marido feliz e ser, ela mesma, muito feliz.

Diego Zalbidea/ Tradução: Mônica Diez


[1] Francisco, Homilia na Missa de Natal, 24/12/2019.

[2] Bento XVI, Audiência, 1/06/2011.

[3] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 185;

[4] Francisco, Homilia na Missa de Natal, 24/12/2019

[5] Santa Teresa de Jesus, Exclamações, 14.

[6] Santo Agostinho, Sermão 142.

[7] São Pedro Crisólogo, Sermão 108: PL 52, 499-500.

[8] São Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 48, a. 2, co.

[9] São Josemaria, Caminho, n. 533.

[10] Santo Agostinho, Tratado sobre o evangelho de São João, 33, 5-6.

[11] Santo Agostinho, Confissões, X, 38.

[12] Fernando Ocáriz, Luz para ver, força para querer (“O São Paulo”, página 16, edição 3218).