Sacerdote, só sacerdote

Oferecemos um dos capítulos do livro 'Sacerdote, sólo sacerdote', que recolhe um discurso no ato acadêmico celebrado em honra de São Josemaria no Seminário de Logronho, Espanha (18 de janeiro de 2003), e posteriormente publicado em “Romana, o Boletim da Prelazia do Opus Dei” 36 (2003), pp. 110-121.

Agradeço ao meu querido irmão no episcopado, Dom Ramón Búa, o seu carinhoso convite para dirigir algumas palavras ao clero de La Rioja. Sugeriu-me que falasse da chamada à santidade no sacerdócio ministerial, seguindo o exemplo e os ensinamentos de São Josemaria Escrivá, recentemente canonizado por João Paulo II; e o faço com muitíssimo gosto.

Com efeito, evocar a figura e os ensinamentos desse santo sacerdote constitui para mim um gozo muito grande. Se, além disso, as pessoas que me escutam são presbíteros, a minha alegria se multiplica, pois conheço bem o grande amor – mais ainda, veneração – que o Fundador do Opus Dei dispensava aos seus irmãos no sacerdócio. Como se alegrava quando tinha ocasião de reunir-se com eles! Aprendia de todos e, para aqueles que lhe pediam, não tinha inconvenientes de abrir-lhes o seu coração e falar-lhes dos grandes amores de sua vida: Cristo com Maria, a Igreja e o Papa, todas as almas. Costumava dizer que, nessas ocasiões, se sentia com quem vai vender mel ao apicultor. Mas a sua quantidade de mel era tanta que os que o escutavam saíam dessas reuniões com renovados desejos de fidelidade à vocação, com a alma transbordante de otimismo, decididos a se gastar com alegria na tarefa pastoral e apostólica.

Identidade do sacerdote

Começarei a minha intervenção com umas palavras que São Josemaria costumava dirigir aos recém-ordenados, mas que servem também – e, talvez, mais especialmente – aos que temos muitos anos de sacerdócio. Dizia: sede, em primeiro lugar, sacerdotes; depois, sacerdotes; sempre e em tudo só sacerdotes. Nesta afirmação transparece a altíssima idéia que fazia do sacerdócio ministerial, pelo qual uns pobres homens – que é isso o que todos nós somos diante do Senhor – são constituídos ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus (1 Cor 4, 1). Tão firme era a sua fé na identificação sacramental com Cristo que se leva a cabo no sacramento da Ordem, que o seu único timbre de glória – ao lado do qual todas as honras da terra empalideciam – era simplesmente ser sacerdote de Jesus Cristo.

Os santos, desde os tempos mais antigos, detiveram-se a comentar a dignidade do sacerdócio. Vários Papas – entre os quais recordo especialmente São Pio X, Pio XI e o atual Romano Pontífice – escreveram documentos inesquecíveis, que alimentaram e continuam alimentando a nossa vida sacerdotal. São Josemaria também nos deixou o seu ensinamento. Numa homilia de 1973, quando se difundiam vozes confusas sobre a identidade do sacerdócio ministerial, resumia o seu pensamento com as seguintes palavras: esta é a identidade do sacerdote: instrumento imediato e diário dessa graça salvadora que Cristo ganhou para nós. Se se compreende isto, se isto é meditado no silêncio ativo da oração, como se pode considerar o sacerdócio uma renúncia? É um ganho impossível de calcular. A nossa Mãe Santa Maria, a mais santa das criaturas – mais do que Ela, só Deus – trouxe uma vez Jesus ao mundo; os sacerdotes trazem-no à nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os dias: Cristo vem para nos alimentar, para nos vivificar, para ser, desde já, penhor da vida futura [1].

O sentido da grandeza do sacerdócio o levava a cuidar com esmero da sua vocação sacerdotal, pela qual se encontrava cada vez mais enamorado. Quando – para atender os rogos daqueles que vivíamos ao seu lado – se referia, às vezes, ao processo de sua vocação, sempre ressaltava a iniciativa de Deus, que foi ao seu encontro quando tinha quinze o dezesseis anos. Como vocês bem sabem, foi em Logroño, em dezembro de 1917 ou em janeiro de 1918, onde o adolescente Josemaria Escrivá teve os primeiros pressentimentos – vislumbres, como os qualificava – de que o Senhor o chamava para algo que não sabia o que era. Não lhe havia passado pela cabeça a possibilidade do sacerdócio. No entanto, perante essa ação de Deus, com o fim de se preparar melhor para cumprir a Vontade divina, decidiu ingressar no Seminário. Com toda a verdade, podia afirmar, passados os anos, que a arrancada de sua vocação sacerdotal havia sido uma chamada de Deus, um vislumbre de amor, um enamorar-se de um rapaz de quinze ou dezesseis anos [2].

No Seminário de Logroño recebeu a primeira formação sacerdotal, que depois completaria em Saragoça. Deus queria que a semente que ia lançar sobre a terra, em 02 de outubro de 1928, encontrasse um coração de sacerdote preparado a fundo para acolhê-la e fazê-la frutificar. Por isso, com agradecimento a Nosso Senhor, São Josemaria afirmava que a sua vocação era – permitam-me que insista – a de ser sacerdote, só sacerdote, sempre sacerdote. Amava com loucura esta condição, que, configurando-o com Cristo, lhe havia preparado para ser instrumento, nas mãos de Deus, para a fundação do Opus Dei.

Dom e tarefa

Ao enumerar as condições dos candidatos ao sacerdócio, antigamente se prescrevia que deveriam ser escolhidos entre homens que tivessem uma vida honesta. Esta formulação – minimalista e já superada – parecia muito pobre a São Josemaria. Entendemos, com toda a tradição eclesiástica – escrevia em 1945 –, que o sacerdócio pede – pelas funções sagradas que lhe competem – algo mais que uma vida honesta: exige uma vida santa naqueles que o exercem, constituídos – como estão – em mediadores entre Deus e os homens [3].

Josemaria Escrivá havia recebido, no seio de sua família e no colégio, uma formação profundamente cristã, que compreendia o conhecimento da doutrina, a frequência de sacramentos, a preocupação concreta pelas necessidades espirituais e materiais das pessoas, como põem em evidência testemunhas daquela época. Ao receber a chamada divina ao sacerdócio, a sua existência mudou radicalmente, no sentido de que aumentou a intensidade e a frequência de seu trato com Deus e a sua preocupação apostólica pelos outros. Isto o levou a uma maturidade imprópria para a sua idade, mas sobrenaturalmente lógica. Cumpria-se na sua vida o que afirma a Sagrada Escritura: super senes intellexi quia mandata tua servavi [4], adquiri mais prudência que os anciãos porque guardei fielmente os teus mandamentos. A partir daqueles vislumbres, o adolescente Josemaria começou a tomar a sério a santidade, procurando conhecer e cumprir fidelissimamente a Vontade de Deus.

Quando o Concílio Vaticano II, no capítulo V da Constituição dogmática Lumen gentium, enfrenta o tema da vocação dos batizados à santidade, afirma: «Os seguidores de Cristo, chamados por Deus não em razão de suas obras, mas em virtude do desígnio e graça divinos, e justificados no Senhor Jesus, foram feitos pelo Batismo, sacramento da fé, verdadeiros filhos de Deus e partícipes da natureza divina e, por isto mesmo, realmente santos. Como consequência, é necessário que, com a ajuda de Deus, conservem e aperfeiçoem em sua vida a santificação que receberam» [5].

Enquanto membros do Corpo Místico de Cristo, no qual fomos enxertados pelo Batismo, todos fomos santificados radicalmente: levamos em nós mesmos o germe e o início da vida nova que Cristo nos conquistou com a sua Morte e Ressurreição. A consagração batismal é a realidade fundante da chamada à santidade em todos os gêneros de vida. Deste ponto de vista, atendendo a absoluta gratuidade do que recebemos, a santificação mostra-se claramente em sua dimensão de dom: um presente imerecido que o nosso Pai-Deus nos outorga, em Cristo, pelo Espírito Santo. Ao mesmo tempo, a santificação é uma chamada pessoal, uma tarefa encomendada à responsabilidade de cada cristão. São Josemaria dirá que é obra de toda a vida [6].

Assim, a santidade é dom e tarefa. Entrega gratuita de um imerecido e, ao mesmo tempo, encargo que há que se levar a termo com esforço pessoal, com correspondência heróica, empenhando-se num verdadeiro compromisso de vida cristã.

A santidade sacerdotal como dom

Ao ser uma só e a mesma a condição radical de todos os batizados, todos – sacerdotes e leigos – estamos igualmente convocados à plenitude da vida cristã. Não há santidade de segunda categoria: ou existe em nós um luta constante por estarmos na graça de Deus e sermos conformes a Cristo, nosso Modelo, ou desertamos dessas batalhas divinas. O Senhor convida-nos a todos, para que cada um se santifique no seu próprio estado [7].

Estamos perante uma das intuições fundamentais que São Josemaria Escrivá pregou, por encargo divino, desde 1928. Ao fundar o Opus Dei, o Senhor lhe mostrou que cada pessoa há de procurar santificar-se no próprio estado, no gênero de vida em que foi chamada, em seu próprio trabalho e através de seu próprio trabalho, segundo a conhecida expressão de São Paulo: unusquisque, in qua vocatione vocatus est, in ea permaneat [8].

A santidade, nos sacerdotes e nos leigos, se edifica, portanto, sobre o mesmo fundamento: a consagração originária do Batismo, aperfeiçoada pela Confirmação. No entanto, é evidente que o dever de tender à santidade impele especialmente o sacerdote, que foi escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados (Hb 5, 1).

«Em contato contínuo com a santidade de Deus – escreveu João Paulo II –, o sacerdote deve chegar a ser santo. O seu próprio ministério o compromete a uma opção de vida inspirada no radicalismo evangélico» [9]. E acrescenta no mesmo livro Dom e mistério, escrito por ocasião do quinquagésimo aniversário de sua ordenação sacerdotal: «Se o Concílio Vaticano II fala da vocação universal à santidade, no caso do sacerdote é preciso falar de uma especial vocação à santidade. Cristo tem necessidade de sacerdotes santos! O mundo atual clama por sacerdotes santos! Somente um sacerdote santo pode ser, num mundo cada vez mais secularizado, uma testemunha transparente de Cristo e de seu Evangelho. Somente assim o sacerdote pode ser guia dos homens e mestre de santidade» [10].

O sacerdote foi consagrado a Deus duas vezes: no Batismo, como todos os cristãos, e no sacramento da Ordem. Por isso, embora não se possa falar de santidade de primeira e de segunda categorias – porque todos estamos convidados à perfeição com a qual o próprio Pai celestial é perfeito (cf. Mt 5, 48) –, é indubitável que recai especialmente sobre os sacerdotes o dever de tender à santidade. Releiamos umas palavras do Fundador do Opus Dei que são especialmente esclarecedoras. Todos nós, cristãos, podemos e devemos ser, não alter Christus, mas ipse Christus: outros Cristos, o próprio Cristo! Mas, no sacerdote, isto se dá imediatamente, de forma sacramental [11].

No exercício do ministério para o qual foi ordenado o sacerdote encontra o alimento de sua vida espiritual, o material que lhe faz arder no amor de Deus. Por isso, seria um grave erro se outras aspirações ou outras tarefas desfiguram-se em sua alma aquilo que para ele se concretiza em algo indispensável para alcançar a santidade: a celebração cuidadosa e cheia de amor do Sacrifício da Missa, a pregação da Palavra de Deus, a administração dos sacramentos aos fiéis, especialmente o da Penitência; uma vida de oração constante e de penitência alegre; o cuidado das almas que lhe foram confiadas, junto com os mil serviços que uma caridade vigilante sabe dispensar.

Desde que percebeu a chamada ao sacerdócio e, mais explicitamente, desde que foi ordenado sacerdote, São Josemaria quis identificar-se com Cristo, ser o próprio Cristo, no exercício do ministério sacerdotal e em toda a sua existência. Daí a sua vida de oração, a sua celebração pausada da Missa, a sua “necessidade" de permanecer longos períodos de tempo junto ao Sacrário; e, ao mesmo tempo, a sua urgência em buscar as almas para conduzi-las, em Cristo, por caminhos de santidade. Compreendeu que se pode e se deve levar uma conduta santa em todos os estados de vida, e concretamente no matrimônio; por isso, desde os seus primeiros anos como pastor, além de encaminhar muitas pessoas pelas vias do celibato apostólico assumido com verdadeira alegria, alentou muitas outras a descobrirem a dignidade da vocação matrimonial.

Escreve João Paulo II: «O sentido do próprio sacerdócio se redescobre cada dia mais no Mysterium fidei. Esta é magnitude do dom do sacerdócio e é também a medida da resposta que tal dom requer. O dom é sempre maior! E é bonito que seja assim. É bonito que um homem nunca possa dizer que respondeu plenamente ao dom. É um dom e também uma tarefa: sempre! Ter consciência disto é fundamental para viver plenamente o próprio sacerdócio» [12].

São Josemaria Escrivá celebrava a cada dia a Santa Missa com paixão de enamorado, bem consciente de que pelo Sacramento da Ordem, o sacerdote torna-se efetivamente apto para emprestar a Nosso Senhor a voz, as mãos, todo o seu ser [13]. Veja-se como descrevia numa reunião familiar esse misterioso eclipse da personalidade humana do presbítero, que, nesses momentos, se converte em instrumento vivo de Deus:

Chego ao altar e o primeiro que penso é: Josemaria, tu não és Josemaria Escrivá de Balaguer (…): és Cristo. Todos os sacerdotes somos Cristo. Eu empresto ao Senhor a minha voz, as minhas mãos, o meu corpo, a minha alma: dou-lhe tudo. É Ele quem diz: este é o meu Corpo, este é o meu Sangue, o que consagra. Se não, eu não poderia fazê-lo. Ali se renova de modo incruento o divino Sacrifício do Calvário. De maneira que estou ali in persona Christi, fazendo as vezes de Cristo. O sacerdote desaparece como pessoa concreta: Pe. Fulano, Pe. Sicrano ou Josemaria…Não, senhor! É Cristo [14].

A santidade como tarefa

A grandeza incomparável do sacerdote se fundamenta em sua identificação sacramental com Cristo, que o leva a ser ipse Christus e a atuar in persona Christi capitis, sobretudo na celebração eucarística e no ministério da Reconciliação. Uma grandeza emprestada – comentava São Josemaria Escrivá –, compatível com a minha pequenez. Eu peço a Deus Nosso Senhor – acrescentava – que nos dê a todos os sacerdotes a graça de realizarmos santamente as coisas santas, e de refletirmos também na nossa vida as maravilhas das grandezas do Senhor [15].

Cada cristão há de procurar que a sua condição de seguidor de Jesus Cristo se reflita em toda a sua conduta: na família, na profissão, na atividade social, pública, esportiva… Também na existência concreta do sacerdote, em sua vida diária, há de manifestar-se a sua específica pertença a Cristo. Pelo caráter indelével recebido na ordenação, é-se sacerdote durante as vinte e quatro horas do dia, não só nos momentos em que se exerce expressamente o ministério. Convém tê-lo muito presente na época atual, quando vão desaparecendo – da nossa sociedade multicultural e multirreligiosa – tantos sinais que recordavam aos nossos antepassados a primazia de Deus e da vida sobrenatural. Não o digo com pessimismo, mas com ânimo de que todos nos esforcemos para que não se percam as raízes cristãs do nosso povo, que se manifestam também em tradições piedosas, em elementos da cultura, da arte e dos costumes.

O sacerdote deve chegar à meta da santidade como por um plano inclinado, sob a direção do Espírito Santo, que é quem modela nos filhos adotivos de Deus os traços de Jesus Cristo. Neste processo, que dura toda a vida, junto com a ação sobrenatural da graça resulta decisiva a resposta dócil da criatura.

Sem esforço por praticar as virtudes, sem luta por desenvolvê-las cotidianamente, com constância, não é possível a santidade. Em que se centram os hábitos virtuosos que hão de estruturar a santidade do sacerdote? No mesmo que nos demais fiéis, posto que todos estamos chamados à idêntica meta – a união com Deus – e dispomos dos mesmos meios para alcançá-la. A diferença reside no modo de exercitar essas virtudes. No sacerdote, tudo deve se cumprir sacerdotalmente; isto é, tendo sempre presente a finalidade de sua vocação específica, o serviço às almas. Temos de seguir o exemplo do Senhor, que afirmou de si mesmo: Pro eis ego sanctifico meipsum, ut sint et ipsi sanctificati in veritate (Jo 17, 19).

Não cabe, neste breve tempo, expor um elenco completo das virtudes sacerdotais. Limitar-me-ei a apresentar algumas que considero capitais no ensinamento e no exemplo de São Josemaria.

Virtudes humanas do sacerdote

Utilizando a metáfora da construção – imagem de raízes bíblicas –, a primeira coisa que se busca é um terreno sólido. O próprio Cristo alude a esta necessidade, na conclusão do Sermão da Montanha, quando fala do homem prudente que edificou sua casa sobre rocha, de modo que quando chegaram os ventos e as chuvas nada puderam contra essa casa (cf. Mt 7, 24-25).

Na vida espiritual do cristão, o terreno sólido do edifício espiritual se consegue através das virtudes humanas, pois a graça pressupõe sempre a natureza. Convém não esquecer que o sacerdote não deixa de ser homem ao receber a ordenação. Pelo contrário, precisamente por ter sido tirado dentre os homens e ter sido constituído mediador entre os homens e Deus (cf. Hb 5, 1) necessita cuidar de sua preparação humana, que o capacita para servir melhor as almas.

«Esta formação compreende – escreve Mons. Álvaro del Portillo – o conjunto de virtudes humanas que se integram direta ou indiretamente nas quatro virtudes cardeais e a bagagem de cultura não eclesiástica indispensável para que o sacerdote possa exercitar com facilidade – ajudado pela graça – o seu apostolado» [16]. O meu predecessor à frente da Prelazia do Opus Dei sublinha os motivos principais que hão de impulsionar o sacerdote a adquirir e desenvolver estas virtudes: «O primeiro, como parte da luta ascética normalmente necessária para chegar à perfeição; o segundo, como meio para exercitar maior eficácia o apostolado» [17].

Na vida e nos ensinamentos de São Josemaria, destaca-se este aspecto basilar da formação cristã e da especificamente sacerdotal. Temos numerosas provas desta afirmação, desde a sua infância até o seu falecimento, em 1975. As testemunhas de seu labor pastoral se manifestam concordes em descrevê-lo como um sacerdote enamorado de Jesus Cristo, entregue ao serviço das almas, com uma personalidade forte e harmônica, na qual o humano e o sobrenatural se fundiam estreitamente em unidade de vida. No que se refere aos seus ensinamentos, resulta paradigmática a homilia “Virtudes humanas", recolhida no livro Amigos de Deus, em que se assenta o fundamento teológico da necessidade de cultivar as virtudes humanas: a profundidade da Encarnação do Verbo, perfeito Homem sem deixar de ser perfeito Deus. Nessa homilia analisa as principais virtudes que um cristão e um sacerdote devem cultivar: a retidão, a serenidade, a paciência, a laboriosidade, a ordem, a diligência, a veracidade, o amor à liberdade, a alegria.

Sobre o fundamento da humildade

A humildade é o fundamento da nossa vida, meio e condição de eficácia [18], escreve São Josemaria, em sintonia com a tradição espiritual do Cristianismo. Evidentemente, refere-se ao fundamento moral, pois o teologal – como pregou com a sua conduta e com os seus ensinamentos – se centra na fé teologal, que nos conduz a assumir com profundidade o sentido de nossa filiação divina em Cristo. Esta convicção põe em evidência perante os homens a verdade mais profunda sobre nós mesmos e, portanto, potencia necessariamente a humildade, que não reflete outra coisa senão aquele “andar na verdade" da Santa de Ávila: o caminhar na fé.

Com uma fé rija, como base da resposta cristã, desvia-se do erro de apresentar a humildade como falta de decisão ou de iniciativa, como renúncia ao exercício de direitos que são deveres. Nada mais longe do pensamento do Fundador do Opus Dei. Ser humildes – pregava numa ocasião – não é andar sujos nem abandonados; nem mostrar-nos indiferentes perante tudo o que acontece ao nosso redor, num contínuo abrir mão de direitos. Muito menos é ir apregoando coisas tolas contra si mesmo. Não pode haver humildade onde há comédia e hipocrisia, porque a humildade é a verdade [19].

Tão importante é esta virtude na vida cristã que São Josemaria assegurava que da mesma maneira que se condimentam com sal os alimentos, para que não fiquem insípidos, na nossa vida temos de pôr sempre a humildade [20]. E recorria a uma comparação clássica: não vades fazer como essas galinhas que, logo que põe um único ovo, chamam a atenção para si cacarejando por toda a casa. É preciso trabalhar, é preciso desempenhar o labor intelectual ou manual – e sempre apostólico – com grandes intenções e grandes desejos – que o Senhor transforma em realidades – de servir a Deus e de passar inadvertidos [21].

Mas, voltemos a considerar o fundamento teologal, isto é, a fé, e com a fé, a esperança: não há santidade se não se desenvolve uma fé que abarca toda a realidade, se não se fomenta – como a força que impulsiona o peregrinar terreno – a virtude da esperança. Desde o primeiro momento, o Fundador do Opus Dei esteve bem consciente de que a missão que Deus lhe havia confiado era imensamente superior às suas forças. Por isso, recorreu com insistência, sem abandoná-los jamais, aos únicos meios capazes de pôr ao nosso alcance a onipotência divina: a oração e o sacrifício. São inumeráveis os testemunhos que documentam de que modo foi mendigando, pelos hospitais e pelos bairros marginalizados de Madri, como se se tratasse de um tesouro, a oração e o oferecimento a Deus da dor de muitas pessoas abandonadas, às que levava o consolo e o alento de sua assistência sacerdotal.

Quanta necessidade temos nós, os sacerdotes, de que a nossa fé e a nossa esperança aumentem mais e mais! Achamo-nos metidos num labor em que o que mais conta, a única coisa absolutamente necessária (cf. Lc 10, 42) é os meios sobrenaturais. Requerem-se verdadeiros milagres para conduzir as almas até Deus. No entanto, ouve-se às vezes dizer que atualmente os milagres são menos frequentes. Não será antes o caso de serem menos as almas que vivem vida de fé? [22]. Estas palavras de São Josemaria ressoam em nossos ouvidos como um toque de atenção, uma chamada ao nosso sentido de responsabilidade, porque o sacerdote há de ser, antes de tudo, um homem de fé e um homem esperançado. «Por meio da fé – escreve o Papa João Paulo II –, tem acesso aos bens invisíveis que constituem a herança da Redenção do mundo levada a cabo pelo Filho de Deus» [23].

A fé é fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê (Hb 11, 1). E é «na oração perseverante de cada dia, com facilidade ou com aridez, onde o sacerdote, como todo cristão, recebe de Deus (…) luzes novas, firmeza na fé, esperança segura na eficácia sobrenatural de seu trabalho pastoral, amor renovado: numa palavra, o impulso para perseverar nesse trabalho e a raiz da efetiva eficácia do trabalho mesmo» [24]. Nestas palavras de Mons. Álvaro del Portillo, o mais estreito colaborador do Fundador do Opus Dei durante muitos anos, podemos descobrir uma delicada alusão à vida espiritual de São Josemaria, que recebeu de Deus a graça de ser contemplativo no meio das tarefas mais absorventes. Acrescenta Dom Álvaro: «Sem oração, e sem oração que se esforça por ser contínua, em meio de todos os afazeres, não há identificação com Cristo no que esta tem de tarefa, fundamentada no que tem de dom. Mais ainda, atrevo-me a dizer que um sacerdote sem oração, se não falseia a imagem que dá de Cristo – Modelo para todos –, apresenta-a como uma nebulosa que nem atrai nem orienta, que não serve de norte ao povo que nos vê ou que nos ouve» [25].

Caridade pastoral

Chegamos, assim, à virtude mais definitiva e característica da vida cristã: a caridade, que no sacerdote adquire uns contornos precisos: é caridade pastoral. Em poucas palavras, nasce da consciência de ser representante de Jesus Cristo, o Supremo Pastor (1 Pe 5, 4) das almas, que deu a vida pelas suas ovelhas (cf. Jo 10, 11). Esta convicção sobrenatural há de impulsionar o sacerdote a gastar-se até o extremo no exercício de seu ministério, pois lhe urge a caridade de Cristo (cf. 2 Cor 5, 14). Uma caridade pastoral, forte e perseverantemente alimentada na Eucaristia e na oração, dará eficácia de frutos ao seu ministério.

A figura de São Josemaria mostra-se muito ilustrativa a este respeito. Desde os primeiros momentos de sua vocação, não se poupou nenhum trabalho no serviço das almas. Antes aludi brevemente às suas andanças pelos bairros periféricos da Madri dos anos 20 e 30, em perene contato com a pobreza e com a doença, atendendo os moribundos, confortando os enfermos, ilustrando as crianças e os adultos com a doutrina cristã. Posso assegurar – porque o contemplei com meus olhos – que, dessa maneira, gastou o resto de sua existência, até o último dia: sempre pendente dos demais, próximos e afastados, conhecidos e desconhecidos: rezava e se sacrificava com gosto por todas as almas, sem exceção.

A peculiar assunção da pessoa por Deus, que se leva a cabo na ordenação sacerdotal, faz com que o presbítero se vincule e se consagre integramente ao serviço e ao amor total de Cristo. Com tal envergadura se apresenta a riqueza deste dom que pode assumir como suas – num sentido particularmente profundo – as palavras do Apóstolo: mihi vivere Christus est (Filip 1, 21), vivo autem iam non ego, vivit vero in me Christus (Gal 2, 20). Por outro lado, a missão recebida tem um caráter universal: o sacerdote é enviado ao mundo inteiro como instrumento vivo de Cristo, que se entregou por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniquidade, nos purificar e nos constituir seu povo de predileção, zeloso e para purificar para si um povo escolhido, zeloso na prática do bem (Tit 2, 14).

A identificação sacramental com Cristo, junto com a missão recebida, acham-se no fundamento das peculiares exigências da caridade pastoral e colocam o sacerdote numa situação especial no mistério de Cristo e da Igreja. Comentando o aprofundamento doutrinal operado a este propósito pelo Concílio Vaticano II, Mons. Álvaro del Portillo escreve: «Se se considera que o Amor encarnado entre os homens evitou qualquer atadura humana – por justa e nobre que fosse – que pudesse em algum momento dificultar ou atrapalhar a plenitude à sua total dedicação ministerial, compreende-se bem a conveniência de que o sacerdote faça o mesmo, renunciando livremente – pelo celibato – a algo em si bom e santo para se unir mais facilmente a Cristo com todo o coração, e, por Ele e nEle, dedicar-se com mais liberdade ao inteiro serviço de Deus e dos homens» [26].

O celibato sacerdotal se configura como manifestação da completa oblação de sua vida que o sacerdote, livremente, oferece a Cristo e à Igreja. Nesta ótica, entendem-se bem as palavras de São Josemaria num momento de conversa familiar, em 1969. O sacerdote, se tiver verdadeiro espírito sacerdotal, se for homem de vida interior, nunca poderá sentir-se só. Ninguém como ele poderá ter um coração tão enamorado! É o homem do Amor, o representante, entre os homens, do Amor feito homem. Vive por Jesus Cristo, para Jesus Cristo, com Jesus Cristo e em Jesus Cristo. É uma realidade divina que me comove até as entranhas, quando todos os dias, alçando e tendo nas mãos o Cálice e a Sagrada Hóstia, repito devagar, saboreando-as, estas palavras do Cânon: Per Ipsum, et cum Ipso et in Ipso…. Por Ele, com Ele, nEle, para Ele e para as almas vivo eu. De seu Amor e para o seu Amor vivo eu, apesar de minhas misérias pessoais. E apesar dessas misérias, talvez por elas, é o meu Amor um amor que a cada dia se renova [27].

Fraternidade sacerdotal

Amando todas as almas sem exceção, São Josemaria reservava um amor de predileção aos seus irmãos sacerdotes. Já aludi à sua alegria quando podia se reunir com eles, para aprender da sua entrega – tantas vezes heróica – e, ao mesmo tempo, para transmitir-lhes algo de sua experiência pessoal. Mas não posso deixar de recordar os seus desvelos concretos pelos presbíteros, especialmente durante os anos em que residiu na Espanha. Na década de 40, por exemplo, a pedido dos Bispos diocesanos, pregou muitos retiros espirituais ao clero, que se encontrava necessitado de ajuda espiritual depois da terrível prova da perseguição religiosa dos anos anteriores. São Josemaria entregou-se de cheio a essa tarefa, e chegou a atender, às vezes, mais de mil presbíteros em um só ano.

Até o final de sua vida, fomentou um pedido urgente ao Senhor: que Deus enviasse à Igreja muitas vocações sacerdotais. Pessoalmente, preparou e encaminhou aos seminários um grande número de jovens com inquietações vocacionais para o sacerdócio. E impulsionava os fiéis leigos a rezar com insistência ao Dono da messe, para que mandasse muitos operários ao seu campo (cf. Mt 9, 37-38). Para São Josemaria, o pulso da vitalidade sobrenatural de uma Diocese é medido pelo número de vocações sacerdotais, das quais os primeiros responsáveis são os próprios sacerdotes.

Como o entristecia encontrar-se com alguém que se tinha despreocupado deste labor! Porque esse descuido constitui um sinal claro de que o próprio sacerdote não está contente com a sua chamada. Vem à minha memória a sua resposta imediata a uma pergunta sobre as causas da escassez de vocações para os seminários: Talvez a primeira razão é que muitas vezes nós, sacerdotes, não valorizamos muito o tesouro que temos nas mãos, e, por isso, não acendemos o desejo de o possuir nos jovens. Os seminários estariam cheios se nós amássemos mais o nosso sacerdócio [28].

A sua preocupação pela santidade do clero procedia de muito tempo antes. Tinha muito claro que o primeiro apostolado dos sacerdotes deve ser com os próprios sacerdotes: não deixá-los sós nas suas penas, compartilhar a suas alegrias, animá-los na dificuldade, fortalecê-los nos momentos de dúvida… Conservou gravadas a fogo em sua alma aquelas palavras da Escritura Santa: frater, qui adiuvatur a fratre, quasi civitas firma (Prv 18, 19), o irmão ajudado pelos seus irmãos é forte como cidade amuralhada.

Tão intensamente crescia o seu afã de ajudar os seus irmãos no sacerdócio que, em 1950, quando o Opus Dei já havia recebido a aprovação definitiva da Santa Sé, pensou dedicar-se plenamente aos sacerdotes diocesanos. Quando já havia oferecido ao Senhor o sacrifício de Abraão – pois estava decidido a deixar a Obra, se fosse necessário –, o Céu lhe mostrou que não era preciso esse sacrifício.

No espírito do Opus Dei, que ensina os cristãos a se santificarem no meio do mundo, cada um na própria ocupação ou tarefa, também havia o mesmo lugar de encontro com Deus para os sacerdotes diocesanos; bastava que, em plena comunhão com o seu próprio Ordinário e com o presbitério da Diocese, buscassem a santidade no exercício dos deveres ministeriais, tratando com especial veneração o Bispo diocesano, unidos estreitamente aos seus irmãos no sacerdócio. As portas da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, à que já pertenciam os clérigos incardinados no Opus Dei, se alargavam para dar acolhida aos sacerdotes diocesanos que recebessem esta específica chamada divina.

Hoje, nestas terras de La Rioja, onde o labor do Opus Dei se encontra perfeitamente integrado na Diocese já há muitos anos, elevo o meu coração agradecido à Trindade Beatíssima pelos copiosos frutos que também a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz produziu e continua produzindo, a serviço da Igreja universal e das Igrejas particulares. Tudo é fruto da graça que Deus nos outorga por meio de sua Santíssima Mãe; graça a que São Josemaria correspondeu plenamente faz oitenta e cinco anos, quando – precisamente em Logroño – recebeu a chamada ao sacerdócio.

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Notas

[1] São Josemaria, homilia “Sacerdote para a eternidade", de 13-IV-1973.

[2] São Josemaria, Apontamentos tomados em uma reunião familiar, em 28-III-1966.

[3] São Josemaria, Carta de 02-II-1945, n. 4.

[4] Sal 118, 100.

[5] Concílio Vaticano II, Const. dogmática Lumen gentium, n. 40.

[6] São Josemaria, Caminho, n. 285.

[7] São Josemaria, homilia “Sacerdote para a eternidade", de 13-IV-1973.

[8] 1 Cor 7, 20.

[9] João Paulo II, Dom e mistério.

[10] Ibid.

[11] São Josemaria, homilia “Sacerdote para a eternidade", de 13-IV-1973.

[12] João Paulo II, Dom e mistério.

[13] São Josemaria, homilia “Sacerdote para a eternidade", de 13-IV-1973.

[14] São Josemaria, Apontamentos tomados em uma reunião familiar, em 10-V-1974.

[15] São Josemaria, homilia “Sacerdote para a eternidade", de 13-IV-1973.

[16] Álvaro del Portillo, Escritos sobre el sacerdocio, 6ª ed., Madrid, Rialp, 1991, p. 23.

[17] Ibid., p. 27.

[18] São Josemaria, Carta de 24-III-1930, n. 20.

[19] São Josemaria, Apontamentos tomados em uma reunião familiar, em 25-XII-1972.

[20] Ibid.

[21] Ibid.

[22] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 190.

[23] João Paulo II, Dom e mistério.

[24] Álvaro del Portillo, Escritos sobre el sacerdocio, 6ª ed., Madrid, Rialp, 1991, p. 188.

[25] Ibid., pp. 188-189.

[26] Álvaro del Portillo, Escritos sobre el sacerdocio, 6ª ed., Madrid, Rialp, 1991, pp. 84-85.

[27] São Josemaria, Apontamentos tomados em uma reunião familiar, em 10-IV-1969.

[28] São Josemaria, Apontamentos tomados em uma reunião com sacerdotes, em 03-XI-1972.