Nada há melhor do que sabermo-nos, por Amor, escravos de Deus. Porque nesse momento perdemos a situação de escravos para nos convertermos em amigos, em filhos. E aqui se manifesta a diferença: enfrentamos as honestas ocupações do mundo com a mesma paixão, com o mesmo empenho que as outras pessoas, mas com paz no fundo da alma; com alegria e serenidade, mesmo nas contrariedades. Porque não depositamos a nossa confiança no que passa, mas no que permanece para sempre. Não somos filhos da escrava, mas da livre[1].
Paradoxalmente, a liberdade alcança sua plenitude quando escolhe servir. Pelo contrário, a pretensão de uma liberdade absoluta, independente de Deus e dos outros, sem nada que a limite, desemboca num eu prostrado ante o dinheiro, o poder, o êxito ou outros ídolos, mais ou menos brilhantes, mas transitórios e sem valor.
“A liberdade de um ser humano é a liberdade de um ser limitado e, portanto, ela própria é limitada. Só podemos possuí-la como liberdade compartilhada, na comunhão das liberdades: a liberdade somente pode desenvolver-se se vivemos, como devemos, uns com os outros e uns para os outros”[2].
Necessitamos dos outros, não somente pelo que recebemos deles, mas também porque estamos feitos para dar. Não há crescimento pessoal independente das necessidades dos que nos rodeiam: o marido se realiza servindo a sua mulher e os seus filhos, e o mesmo ocorre com a esposa; o advogado exerce sua profissão para servir o cliente e o bem comum dos cidadãos; o doente se põe em mãos do médico e este tem que se acomodar ao paciente... quem é maior, o que está à mesa, ou aquele que serve? Não é o que está à mesa? No entanto, Eu estou no meio de vós como aquele que serve[3].
O serviço que Cristo pede aos seus discípulos não consiste somente em dar algo, mas em dar-se a si mesmo, em pôr a liberdade radicalmente em jogo. Como escreveu o Papa Bento XVI na sua primeira carta encíclica: “A íntima participação pessoal nas necessidades e sofrimentos do outro se converte assim num dar-me a mim mesmo: para que a doação não humilhe o outro, não somente devo dar-lhe algo meu, mas a mim mesmo; hei de ser parte do dom como pessoa”[4].
Dar-me por completo, entregar-me totalmente, é simplesmente entregar a minha liberdade: entregá-la por amor. Entregando a liberdade por amor, tornamo-nos mais capazes de amor e de entrega e, portanto, mais livres; este é o jogo da doação pessoal: dar sem perder; mais ainda, ganhar dando.
Quando a liberdade se deposita inteiramente em Deus, sem mais garantias que buscar e fazer a sua vontade, o lucro é a identificação com Cristo, e a liberdade se recupera a um nível mais profundo: como íntima liberdade filial que nenhuma circunstância nem nenhum poder podem submeter. Por Ele perdi todas as coisas, e as considero como lixo a fim de ganhar a Cristo e nEle viver[5].
Buscar a Cristo
“A cada homem é confiada a tarefa de ser artífice da própria vida”[6]. Cada um pode fazer de sua vida uma obra-prima de amor; com acertos, erros, debilidades: não tem importância. O importante é não perder de vista o farol, o sentido, Aquele em quem se alegra o coração[7], o único que pode preencher a capacidade de amar, a quem radicalmente queremos orientar a liberdade.
As escolhas particulares – empreender e desenvolver uma profissão, estabelecer um horário, adquirir qualquer compromisso, grande ou pequeno – apontam, em último termo, para um bem querido em si mesmo, não em função de outro. Esse bem que amamos de maneira absoluta nos caracteriza mais que qualquer outra coisa.
Esse fim dá sentido último às pequenas ações de cada dia, guia o comportamento concreto, é o critério que indica, na dúvida, o que convém e o que não convém fazer.
Ou seja, como diz São Tomás comentando Santo Agostinho, só há dois bens que podem apresentar-se ao homem como absolutos e, por tanto, guiar o resto das ações: a glória de Deus ou a própria estima. “Como no amor a Deus, o mesmo Deus é o último fim a que se ordenam todas as coisas que se amam retamente, assim no amor da própria excelência se encontra outro último fim a que se ordenam também todas as coisas; pois aquele que busca crescer em riquezas, em ciência, ou em honras, ou quaisquer outros bens, por tudo isso busca sua própria excelência”[8].
Somente Deus pode dar autêntica unidade de sentido a nossos afãs e ocupações: “fizeste-nos para ti e nosso coração está inquieto enquanto não descansa em ti”[9]. Esta frase de Santo Agostinho mostra a origem e o fim da liberdade criada, que é ao mesmo tempo dom e tarefa. Deus nos deu a liberdade para alcançar a plenitude; e a plenitude é o resultado de escolher o Amor de Deus, buscando sua vontade nas grandes decisões e no pequeno de cada dia.
Um dos lugares onde o Evangelho mostra a orientação da existência como fruto das escolhas pessoais é o episódio do jovem rico. A inquietude do coração desse homem impele-o a buscar o caminho da autêntica felicidade.
Não querendo conformar-se com menos, recorre a quem tem as respostas definitivas, a Jesus: Mestre bom, que devo fazer para ganhar a vida eterna?[10]. A resposta do Senhor não é menos radical que a pergunta. Primeiro assinala quais são os caminhos incompatíveis com o que busca: não cometerás adultério, não roubarás, não dirás falso testemunho...[11].
Depois lhe indica a direção que leva à paz e à alegria verdadeiras: se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá-os aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me[12].
Essas palavras relativizam a importância de tudo o que até então centrava o interesse do jovem. Sua liberdade tropeça com uma alternativa não prevista, uma chamada a ampliar o horizonte da sua vida.
Não é que vivesse mal; ao contrário, tinha um prestígio social e moral que seguramente proporcionava satisfação a seus pais e educadores. Mas isto lhe parecia insuficiente, aspirava a mais..., e por isso se dirigiu ao Mestre. No entanto, ante o novo panorama que Jesus lhe abre, cala; sabe que o Mestre bom tem razão, mais ainda depois de escutar as misteriosas palavras que revelam de algum modo a sua divindade: Por que me chamas bom?, ninguém é bom senão um só, Deus.
Apesar de tudo, não é suficientemente livre para pôr-se à disposição do Senhor. A prudência humana, o temor de perder algo valioso e talvez o afã de segurança, levam-no a conformar-se com o que já tem; com a vã esperança de que, sem aspirar a tanto como o que Jesus lhe propõe, sem arriscar sua posição, sua fama, seu dinheiro e finalmente o seu próprio eu, talvez poderá estar bem.
Quando se procura fazer o bem com pouco amor, dificilmente se encontra o caminho. Em palavras de São João da Cruz, “quem procura a Deus querendo continuar com os seus gostos, procura-o de noite e, de noite, não o encontrará”[13]; então a razão se complica com razões sem razão[14] e o bem se atrasa ou se deixa de fazer.
Se o amor é muito débil, a luta se faz desajeitada, enredada pelo novelo de muitos pequenos fios, indecisa: quando as razões de amor não são suficientes para fazer o que Deus quer, buscam-se outras sem-razões para não o fazer.
O coração do jovem não ficou satisfeito: uma resposta a meias não satisfaz a ninguém, nenhum coração humano se conforma com meias medidas; por isso, foi embora triste[15].
Voltar para Cristo
Perseverar no amor não consiste numa luta tensa por não falhar nunca. Geralmente nenhum barco chega ao porto em linha reta, mas procura aproveitar os ventos que encontra e corrige constantemente os desvios detectados pelos instrumentos de navegação.
O importante é saber aonde se quer chegar e permanecer vigilantes. É necessário voltar a entregar a liberdade muitas vezes, sobretudo se percebemos que começamos a servir a outros senhores[16].
Para não nos perdermos, devemos examinar a atuação concreta à luz da vocação; esta é como o farol divino que orienta a liberdade. É indispensável, por isso, que estejamos dispostos a recomeçar, a reencontrar – nas novas situações da nossa vida – a luz e o impulso da primeira conversão. Esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Não existe outro caminho, se queremos converter-nos de novo[17].
A falta de alegria é um desses indicadores que permite descobrir quando a vontade está perdendo a orientação para Deus. Com a luz do Espírito Santo poderemos ver onde está posto o coração, para retificar o que for necessário.
A parábola do filho pródigo é a autêntica guia no itinerário para a conversão. O ponto de partida é o momento em que o filho percebe a sua indigência material, e sobretudo espiritual – a falta de alegria –, pois toma consciência de ter abusado da sua liberdade filial.
Começa então a examinar sua situação com objetividade. Olha dentro de si, in se autem reversus[18], sem medo de reconhecer a dura verdade dos fatos. O panorama é de fome, solidão, tristeza, falta de carinho... Como cheguei a esta situação? Se perguntaria. Poderia ter lançado a culpa à má sorte ou ao período de escassez que a região atravessava. No entanto, atreve-se a assumir suas decisões anteriores sem esquivar da responsabilidade.
Foi ele próprio, livremente, quem trocou a fidelidade a seu pai pela miragem de uma felicidade irreal. Foi amadurecendo nele a ideia de que os bens que lhe correspondiam, neste caso a herança paterna, teriam a capacidade de saciar suas ânsias de bem-estar, de realização pessoal. Sua vontade tinha ido se fechando no seu pequeno tesouro: suas ambições, sua diversão, seu tempo, sua sensualidade, sua preguiça.
Foi a viva percepção de sua penúria o que o fez reagir e perceber o pouco que valia por si só, as cruéis servidões a que se havia visto submetido sem seu pai: quantos empregados em casa de meu pai têm pão abundante enquanto eu aqui morro de fome![19].
A casa do Pai: a Igreja Santa de Deus, esta partezinha da Igreja que é o Opus Dei... Perdeu o medo de chamar as coisas pelo seu nome, e o contato com a verdade sobre si mesmo o encaminha para a liberdade: a verdade vos fará livres[20]. Ante a realidade das coisas, toma corpo a nostalgia do amor do Pai; é a viagem de regresso para casa.
Deve regressar ao lar muitas vezes na vida porque é o lugar do reencontro conosco mesmos, onde redescobrimos o que somos: filhos de Deus. A casa é também a consciência, sacrário íntimo da pessoa. E o filho pródigo, que com tanta determinação havia exigido seus direitos, à vista da verdade nua sobre si mesmo, renuncia agora a todo direito. Vou ter com meu pai e digo-lhe: “Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me com um de teus jornaleiros”. E levantando-se, pôs-se a caminho para a casa de seu pai[21].
Na volta já se inicia a alegria da conversão. O arrependimento abriu a porta à esperança e, na decisão de regressar, a liberdade recuperou sua disposição para o amor. Mas, além disso, o encontro com o pai supera as melhores expectativas.
O pobre coração humano, humilhado por suas faltas, ver-se-á inundado pela infinita misericórdia do Amor: quando ainda estava longe, seu pai o viu e se compadeceu. E correndo a seu encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o cobriu de beijos[22].
A liberdade amadurece no amor a Deus; a liberdade filial não se contabiliza num balanço de acertos e erros; os erros se convertem em acertos, em ocasião de amar mais, quando sabemos retificar e pedir perdão, com plena confiança na misericórdia de Deus.
Aprendamos a recomeçar pela mão de são Josemaria: tereis observado no vosso exame – e comigo passa-se outro tanto; perdoai que faça estas referências à minha pessoa, mas, enquanto vos falo, vou dando voltas com o Senhor às necessidades da minha alma – que sofreis repetidamente pequenos reveses, que às vezes vos parecem descomunais, porque revelam uma evidente falta de amor, de entrega, de espírito de sacrifício, de delicadeza. Fomentai as ânsias de reparação, com uma contrição sincera, mas não me percais a paz[23].
Não me percais a paz: esta comovedora súplica paterna vai unida a uma chamada à contrição, que é o mais importante do exame de consciência. São Josemaria abria sua alma para dar-nos o alimento de sua experiência de amizade com Deus.
Agora a sua experiência é a bem-aventurança, e a sua participação na paternidade de Deus é mais intensa. Recorramos à sua intercessão para alcançar uma contrição serena e filial; para que nos ensine a fazer um exame contrito, que não tire a paz mas que a dê. Cada ato de contrição é um recomeçar. Que paz nos dá saber que, enquanto há vida, não há fracassos definitivos!
Viver em Cristo
São João descreve no Apocalipse uma multidão incontável diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de branco e com palmas nas mãos[24]. A palma é símbolo da alegria e do triunfo: da alegria de honrar a Deus e da vitória daqueles que lhe dão glória para sempre. Poderíamos dizer, continuando esta imagem, que a palma da liberdade está na sua orientação para Deus até chegar ao triunfo definitivo da santidade alcançada.
Como conseguiremos tão preciosa conquista? O Concílio Vaticano II ensina que “a liberdade do homem, ferida pelo pecado, não pode conseguir esta orientação para Deus com plena eficácia se não é com a ajuda da graça”[25].
Por isso, Deus enviou seu Filho, que veio em nossa ajuda para nos fazer participantes da sua vitória na Cruz e para recebermos o dom do Espírito Santo. Nossa liberdade foi liberada no Calvário: “para ser livres nos libertou Cristo. Nele participamos da verdade que nos faz livres. O Espírito Santo nos foi dado, e, como ensina o Apóstolo, onde está o Espírito, aí está a liberdade. Já desde agora nos gloriamos com a liberdade dos filhos de Deus”[26].
Deus havia prometido a seu Povo um princípio novo de vida, uma lei escrita no coração que não somente indicasse a direção, mas que desse também as forças para caminhar pela senda do amor a Deus: dar-vos-ei um coração novo e em vosso interior porei um espírito novo. Arrancarei de vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Porei meu espírito em vosso interior e farei que caminheis segundo meus preceitos, e guardareis e cumprireis minhas leis[27].
Esta promessa fez-se realidade com o envio do Espírito Santo, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado[28]. Somente sobre esse princípio novo poderemos construir uma vida liberada da escravidão do egoísmo, uma vida de filhos livres. Porque os que são guiados pelo Espírito de Deus, estes são filhos de Deus[29].
Que a vontade se apoie sobre a rocha sobrenatural da filiação divina, e não sobre a areia das próprias forças. Então é possível vencer as próprias limitações, superando os obstáculos a partir da humildade, com a força de Deus.
A vontade sobrenaturalmente boa vive assim endeusada, buscando fazer em tudo a Vontade de Deus. Como? Mediante o esquecimento de si, com a fortaleza de Cristo. Por isso – diz São Paulo –, com sumo gosto me gloriarei mais ainda nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Pelo qual me alegro nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições e angústias, por Cristo; pois quando sou débil, então sou forte[30].
O sentido da filiação divina é um fundamento realista para a liberdade; ensina a recomeçar a partir da verdade da própria pequenez, que é ao mesmo tempo a grandeza de ser filho amadíssimo de Deus; é fonte de serenidade e de otimismo para a luta.
O filho de Deus se sente sustentado pela onipotência de um Pai que o ama com seus defeitos, ao mesmo tempo em que o ajuda a lutar contra eles e o impulsiona para a liberdade.
C. Ruiz
[1] Amigos de Deus, n. 35.
[2] Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005.
[3] Lc 22, 27.
[4] Bento XVI, Litt. enc. Deus caritas est, n. 34.
[5] Filip 3, 8.
[6] João Paulo II, Carta aos artistas, 4-IV-1999, n. 2.
[7] cfr. Sl 33[32], 21.
[8] São Tomás de Aquino, De malo, q. 8, a. 2, c.
[9] Santo Agostinho, Confissões I, I, I.
[10] Lc 18,18.
[11] Lc 18, 20.
[12] Mt 19, 21.
[13] São João da Cruz, Cântico espiritual, 3, 3.
[14] Amigos de Deus, n.37.
[15] Mt 19,22.
[16] Cfr. Lc 16, 13.
[17] É Cristo que passa, n. 58.
[18] Lc 15, 17.
[19] Lc 15, 17.
[20] Jo 8, 32.
[21] Lc 15, 18-20.
[22] Lc 15, 20.
[23] Amigos de Deus, n. 13.
[24] Cfr. Ap 7, 9-10.
[25] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 17.
[26] Catecismo da Igreja Católica, n. 1741; Gal 5, 1; cfr. Jo 8, 32; cfr. 2 Cor 3, 17; cfr. Rom 8, 21.
[27] Ez 36, 26-27.
[28] Rom 5, 5.
[29] Ibid., 8, 14.
[30] 2 Cor 12, 9-10.