Proselitismo? Liberdade e proposta vocacional

É legítimo para um cristão fazer proselitismo? O que significa “proselitismo”? Sempre teve este significado? Como deve ser o impulso evangelizador dos cristãos?

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Sumário

1. Deus entra em nossa vida servindo-se de outras pessoas

2. Comunicar o que recebemos é proporcionar um dom. Evolução do termo “proselitismo”

3. Chamar: uma necessidade e uma obrigação

4. A importância dos meios sobrenaturais

5. Selecionar para chegar a mais pessoas


Outros artigos sobre o proselitismo – Carta do Prelado (9 de janeiro de 2018)Proselitismo(Verbete do dicionário de São Josemaria) – Evangelização, proselitismo e ecumenismo (Mons. Fernando Ocáriz) – Abundância de luz (Mons. Javier Echevarría, em Avvenire) – Padre, sou judia(vídeo): No Chile, em 1974, num encontro com centenas de pessoas, uma moça judia dirige-se ao Fundador do Opus Dei e o interroga sobre a fé católica.


“Vinde e vereis” (Jo 1, 39). Assim responde Jesus a dois discípulos de João Batista que lhe perguntavam onde morava. Estas palavras anunciam uma chamada divina, para estar com Cristo e compartilhar a sua vida. No plano meramente humano, manifestam uma verdade que todos experimentamos: o bem, por sua própria natureza, é difusivo. Quanto maior é esse bem, mais poderosa é sua força expansiva. Jesus convida a essa comunidade de vida com ele, que tem um poder de atração enorme. E assim se difundiu o Evangelho, a partir da alegria de conhecer e seguir a Jesus, o que traz consigo o desejo de levar outros a compartilhar essa aventura.

Cícero comenta que a admiração de alguém que subisse aos céus e contemplasse a beleza das estrelas seria amarga se não houvesse alguém com quem compartilhá-la[1]. Da mesma forma, a vocação que Deus concede desprende toda a sua beleza na medida em que se procura compartilhá-la; por isto, pode-se dizer que a chamada a se entregar a Deus no Opus Dei, como em outras realidades eclesiais, constitui uma chamada contagiosa.

1. Deus entra em nossa vida servindo-se de outras pessoas

Depois do testemunho do Batista, o Evangelho de João relata a chamada de André e Pedro: “No dia seguinte, estava lá João outra vez com dois dos seus discípulos. E, avistando Jesus que ia passando, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus’. Os dois discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus. Voltando-se Jesus e vendo que o seguiam, perguntou-lhes: ‘Que procurais? ’ Disseram-lhe: ‘Rabi (que quer dizer Mestre), onde moras?’ ‘Vinde e vede’, respondeu-lhes ele. Foram aonde ele morava e ficaram com ele aquele dia. Era cerca da hora décima. André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido João e que o tinham seguido. Foi ele então logo à procura de seu irmão e disse-lhe: ‘Achamos o Messias (que quer dizer o Cristo)’. Levou-o a Jesus, e Jesus, fixando nele o olhar, disse: ‘Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas’ (que quer dizer pedra)” (Jo 1, 35-42).

São João Paulo II comenta que “esta página do Evangelho é uma de tantas da Bíblia nas quais se descreve o ‘mistério’ da vocação; em nosso caso [os sacerdotes], o mistério da vocação para ser apóstolos de Jesus”[2]; e acrescenta que o texto de São João “também tem um significado para a vocação cristã como tal”[3].

A vocação ao Opus Dei é uma concretização da vocação batismal, um dos caminhos na Igreja para seguir a Jesus Cristo no meio do mundo, como cristão comum e ao mesmo tempo com um compromisso sério de viver a radicalidade da chamada universal à santidade e ao apostolado, mediante a santificação do trabalho profissional e as ocupações cotidianas.

O Evangelho citado acima destaca como o encontro de alguns discípulos com Jesus acontece pela mediação dos que já o seguem. Não se descobre a vocação por telepatia mas sim, como no caso de André e Pedro, através de outros dos quais Deus se serve para entrar na vida da pessoa.

O fato de dar um nome a Simão equivale, por outro lado, a tomar posse dele. Assim, por mais que existam mediadores para a chamada, só Deus pode tomar posse de uma alma, dele viemos e a ele voltamos. Ninguém é proprietário das almas[4].

O Papa Francisco insistiu muitas vezes na dimensão missionária da vocação cristã: “Hoje gostaria de vos indicar o vínculo estreito que existe entre a misericórdia e a missão. Como recordava são João Paulo II: ‘A Igreja vive uma existência autêntica quando professa e proclama a misericórdia e aproxima os homens das fontes da misericórdia’ (cf. Enc. Dives in misericordia, 13). Como cristãos temos a responsabilidade de ser missionários do Evangelho. Quando recebemos uma boa notícia, ou vivemos uma experiência bonita, é natural que sintamos a exigência de partilhá-la com os outros. Sentimos dentro de nós que não podemos conter a alegria que nos foi doada: queremos compartilhá-la. A alegria suscitada é tal que nos impele a comunicá-la.

E deveria ser assim também quando nos encontramos com o Senhor: a alegria deste encontro, da sua misericórdia, comunicar a misericórdia do Senhor. Aliás, o sinal concreto de que nos encontramos realmente com Jesus é a alegria que sentimos ao comunicá-la também aos outros. E isto não é ‘fazer proselitismo’, é oferecer um dom: dou-te o que me dá alegria. Lendo o Evangelho vemos que esta foi a experiência dos primeiros discípulos: depois do primeiro encontro com Jesus, André foi imediatamente contar ao seu irmão Pedro (cf. Jo 1, 40-42) e o mesmo fez Filipe a Natanael (cf. Jo 1, 45-46). Encontrar com Jesus equivale a encontrar o seu amor. Este amor transforma-nos e torna-nos capazes de transmitir aos outros a força que nos doa. De qualquer maneira poderíamos dizer que a partir do dia do Batismo a cada um de nós é dado um novo nome que se acrescenta ao que os pais nos deram, e este nome é ‘Cristóvão’: somos todos ‘Cristóvãos’. O que significa? ‘Portadores de Cristo’. É o nome da nossa atitude, uma atitude de portadores da alegria de Cristo, da misericórdia de Cristo. Cada cristão é um ‘Cristóvão’, isto é, um portador de Cristo!”[5]

2. Comunicar o que recebemos é um dom que proporcionamos. Evolução do termo “proselitismo”.

Na catequese do Papa Francisco citada anteriormente, é mencionada a palavra “proselitismo”. Esse termo, frequente há décadas na literatura espiritual, deriva de “prosélitos”, palavra com a qual são designados na Bíblia os ger, gentios que viviam entre o Povo de Israel e que se propunham entrar na Aliança e observar a Lei de Moisés. Daí passou para a linguagem cristã.

Já São Justino, de mentalidade aberta, bom conhecedor dos filósofos do seu tempo, preso por proselitismo e executado no ano de 166 porque não quis renegar a sua fé, escrevia: “Resta-vos este breve tempo para aderir a nós [para vos fazerdes nossos prosélitos]; se Cristo apressar a sua vinda, em vão vos arrependereis”[6]: designava assim o zelo apostólico para anunciar a Cristo e trazer novos fiéis à Igreja. Com esse sentido surgirá na época moderna o termo “proselitismo” que, junto com o impulso missionário, traz também, com o desenvolvimento da Igreja, a solicitude por aproximar os outros das instituições surgidas no seio do Povo de Deus.

Nesse mesmo sentido é que o usou São Josemaria, desde o início do Opus Dei. Procurava realçar tanto a profundidade do zelo apostólico, como o fato de que não somos nós e sim Deus quem chama: cada um deve, evidentemente, tomar as decisões que determinam o rumo de uma vida pessoalmente, com liberdade, sem coação nem pressão de nenhum tipo, como ele sempre insistirá[7].

Nos últimos decênios, se foi generalizando outra acepção desse vocábulo, para descrever determinadas atuações com as quais se pretende atrair para o próprio grupo, com o uso de violência, de engano, de coerção ou de outros modos que forçam a consciência ou manipulam a liberdade.

Esse modo de atuar é, naturalmente, alheio ao espírito cristão e totalmente reprovável. Os últimos papas referiram-se várias vezes a essa acepção negativa ao afirmar, por exemplo, que “não impomos nossa fé a ninguém; semelhante gênero de proselitismo é contrário ao cristianismo”[8] ou que “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração”[9]. Essa atração requer em primeiro lugar o testemunho de uma conduta reta, de uma vida cheia de amor, mas não é sinônimo de passividade: não exclui a proclamação verbal de uma mensagem, como ensina São Paulo: “e como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados?”(Rom 10, 14-15)[10].

Referindo-se àqueles que usam a palavra proselitismo como acusação para propalar temores frente à ação apostólica dos fiéis, São João Paulo II escreve que o fazem “talvez com o intuito de tirar da Igreja a coragem e a disposição de empreender a sua missão evangelizadora, e essa missão pertence à essência da Igreja”[11].

De qualquer forma, as línguas são mutáveis e há frequentemente palavras que deixam de ter um significado unívoco e adquirem até um sentido contrário ao original. Tendo em conta o uso cada vez mais difundido do sentido negativo da palavra “proselitismo”, expressa-se melhor seu conteúdo positivo original com outros termos: por exemplo, propor a chamada divina, ajudar a descobrir o caminho que Deus quer para cada um, convidar a pensar sobre a própria vocação, discernimento vocacional, apostolado vocacional, despertar o sentido de missão.

Por isso, no capítulo “Proselitismo” de Caminho, se deve entender essa palavra com o seu significado autêntico na pregação de São Josemaria, no marco da missão apostólica dos cristãos, dirigida a todo mundo (Cfr. Mc. 16,15). Muitos autores espirituais – e entre eles São Josemaria – empregaram o termo “proselitismo” nesse sentido, como sinônimo de apostolado ou evangelização: um trabalho que se caracteriza, entre outras coisas, por um profundo respeito da liberdade, em contraste com a acepção negativa que este vocábulo adquiriu nos últimos anos do século XX. Na linha dessa tradição, São Josemaria utiliza a palavra “proselitismo” com o significado de proposta ou convite com que os cristãos compartilham com seus colegas e amigos a chamada de Jesus Cristo e abrem diante deles o horizonte do seu Amor[12].

3. Chamar: uma necessidade e uma obrigação

“Ide, pois, e fazei discípulos a todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; e ensinando-lhes a guardar tudo quanto vos mandei. E sabei que estou convosco todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20). Essas são as últimas palavras de Jesus que São Mateus anota. Os cristãos estão assim chamados a dar testemunho do Senhor, a fazer discípulos, conscientes de que Jesus vive neles: atuarão “em nome” de Deus, com o seu poder. Na missão apostólica, há esta dupla vertente de ação pessoal nossa e de ação de Deus.

“Anunciar entre os pagãos a inexplorável riqueza de Cristo, e a todos manifestar o desígnio salvador de Deus, mistério oculto desde a eternidade em Deus”. (Ef. 3,8) era para São Paulo uma “graça” (ib) e uma obrigação moral: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (1 Cor 9 16). Essa graça é compartilhada por todos os cristãos. Com a vocação cristã batismal, o Povo de Deus “constituído por Cristo para a comunhão de vida, caridade e verdade, é por Ele ainda assumido como instrumento de redenção de todos e é enviado ao mundo inteiro como luz do mundo e sal da terra (cfr. Mt 5, 13-16)”[13].

A Igreja tem a missão de “cuidar do nascimento, do discernimento e do acompanhamento das vocações”[14]. O Papa Francisco nota que “onde há vida, fervor, vontade de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas”[15]. Isso implica que a comunidade cristã, além de rezar, “atreve-se a propor um caminho”[16], diz Francisco, referindo-se à entrega a Deus. Neste sentido, falando de vocações sacerdotais, não duvida em sublinhar a importância de “chamar”. “Chamar. É o verbo típico da vocação cristã. Jesus não faz discursos longos, não entrega um programa ao qual aderir, não faz proselitismo, nem oferece respostas pré-fabricadas. Dirigindo-se a Mateus, limita-se a dizer: ‘Segue-Me!’. Deste modo, suscita nele o fascínio de descobrir uma nova meta, abrindo a sua vida a um ‘lugar’ que vai além do pequeno banco no qual está sentado. O desejo de Jesus é pôr as pessoas a caminho, tirá-las de uma vida sedentária funesta, interromper a ilusão que se possa viver felizes permanecendo comodamente sentadas entre as próprias certezas.

Este desejo de busca, que muitas vezes habita os mais jovens, é o tesouro que o Senhor põe nas nossas mãos e que devemos cuidar, cultivar e fazer germinar. Olhemos para Jesus, que passa ao longo das margens da existência, recolhendo o desejo de quem procura, a desilusão de uma noite infrutuosa de pesca, a sede ardente de uma mulher que vai ao poço buscar água, ou a grande necessidade de mudar de vida. Assim, também nós, em vez de reduzir a fé a um livro de receitas ou a um conjunto de normas a serem observadas, podemos ajudar os jovens a fazer-se as perguntas certas, a pôr-se a caminho e a descobrir a alegria do Evangelho.

Sei bem que a tarefa não é fácil e que, às vezes, não obstante um compromisso generoso, os resultados podem ser escassos e que nos arriscamos a ficar frustrados e desanimados. Mas se não nos fecharmos nas lamentações e continuarmos a ‘sair’ para anunciar o Evangelho, o Senhor permanece ao nosso lado e doa-nos a coragem de lançar as redes também quando estamos cansados e desiludidos por não ter pescado nada (...). Não tenham medo de anunciar o Evangelho, de encontrar, de orientar a vida dos jovens”[17]. Por seu lado, João Paulo II afirmava: “Não deve existir nenhum medo de propor diretamente a uma pessoa jovem, ou menos jovem, as chamadas do Senhor. É um ato de estima e de confiança. Pode ser um momento de luz e de graça”[18].

“Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente” (2 Tim 4,2), diz Paulo a Timóteo: “opportune, importune”. “Muitos, com ar de auto justificação, perguntam-se: Eu, por que é que me vou meter na vida dos outros? – Porque tens obrigação, por seres cristão, de te meteres na vida dos outros, para os servires! Porque Cristo se meteu na tua vida e na minha!”[19].

São Josemaria ensinava a seus filhos que ninguém poderia sentir-se dispensado de propor a vocação quando encontra uma pessoa que poderia achar nela seu caminho. Se for necessário, criam-se oportunidades de falar da chamada, já que não basta apenas a presença. “Tiveste uma conversa com este, com aquele, com aquele outro, porque te consome o zelo pelas almas. Aquele ficou com medo; o outro consultou um “prudente”, que o orientou mal... – Persevera: que ninguém possa depois desculpar-se afirmando quia nemo nos conduxit – que ninguém nos chamou”[20].

Também é importante propor a vocação porque há pessoas que, por uma humildade talvez mal entendida, julgam erroneamente que não são dignas dela, ou então não se atrevem a perguntar se é para elas, mais ou menos como aqueles personagens dos romances que nunca chegam a pedir a mão da mulher que amam... e ficam sozinhos. Por isso o fundador da Obra falava de “santa coação”[21] animando o leitor de Caminho a considerar a sua responsabilidade apostólica com relação às pessoas à sua volta, com respeito pleno de sua liberdade. Com essa união de palavras contraditórias, chamada “oximoro”, ganhava força expressiva a ideia de que a missão apostólica não se opõe à energia que o Espírito Santo nos dá. Esse Espírito é Amor, e é Espírito de liberdade.

O fundador da Obra podia, portanto, afirmar que esta “não apenas respeita a liberdade” de seus membros, “como fá-los tomar clara consciência dela. Para conseguir a perfeição cristã na profissão ou ofício que cada um tiver”, acrescentava, “precisam estar formados de modo que saibam administrar a própria liberdade: com presença de Deus, com piedade sincera, com doutrina”[22].

A liberdade é necessária para entregar-se ao Senhor e para renovar essa entrega: a formação no Opus Dei destina-se principalmente a fazer que a todos “chegue o espírito genuíno do Evangelho – espírito de caridade, de convivência, de compreensão, absolutamente alheio ao fanatismo – através de uma sólida e oportuna formação teológica e apostólica. Depois, cada um atua com completa liberdade pessoal e, formando autonomamente a sua própria consciência, procura buscar a perfeição cristã e cristianizar seu ambiente, santificando seu próprio trabalho, intelectual ou manual, em qualquer circunstância de sua vida e em seu próprio lar”[23].

Jesus Cristo convida à humildade no serviço com uma parábola a propósito da lavoura e do cuidado do gado, que se aplica bem ao esforço da evangelização. Ele nos convida a tornar nossos os sentimentos dos trabalhadores: “Somos servos como quaisquer outros; fizemos o que devíamos fazer”: Servi inutiles sumus; quod debuimos facere, fecimus” (Lc 17, 10). Cristo nos pressiona a evitar qualquer vanglória. É claro que nem recomenda o trato abusivo do patrão nem o aprova. Ensina-nos, porém, que a virtude vivida ao cumprir os seus mandatos consolar-nos-á interiormente e despertará inclusive a admiração dos outros. Então, em vez de envaidecer-nos, devemos considerar que apenas cumprimos o plano de Deus: “Não te vanglories de ser chamado filho de Deus – reconhece a graça, e não desconheças tua natureza – nem te envaideças por tê-lo servido bem: é o que tinhas que fazer. O sol realiza seu ofício, a lua obedece e os anjos cumprem seu serviço (...). Não pretendamos ser louvados por nós mesmos, não adiantemos o juízo de Deus”[24].

Na história do Opus Dei, os que seguiram São Josemaria foram heroicos em estender a semente da sua mensagem a todos os lugares. Quando a guerra civil espanhola terminou, formavam parte da Obra São Josemaria e dez ou doze filhos espirituais seus. Um ano depois, contava o Bem-aventurado Álvaro del Portillo, percorriam a Espanha em todas as direções, havia trabalho apostólico em várias cidades. Viajavam em trens incômodos ou por estradas semidestruídas pela guerra. Aproveitavam o fim de semana, que na época era constituído apenas pelo domingo, para ir a diferentes lugares e em pouco tempo surgiram vocações para o Opus Dei em todos os cantos. É bonito ver o que José Maria Hernández Garnica escreveu sobre Isidoro Zorzano que procurava aproximá-lo de Deus: “Eu o toureei muito por minha moleza, e ele, com paciência extraordinária não deixava de escrever-me e animar-me, embora muitas vezes não recebesse resposta por muito tempo”[25]. E vieram assim, do zelo apostólico dos fiéis do Opus Dei, vocações para a Obra e também para ordens e congregações religiosas e para os seminários diocesanos. Tal zelo expressa a intensidade do amor e do dom de si, que nascem na humildade de quem sabe que toda fecundidade vem de Deus.

4. A importância dos meios sobrenaturais

Os frutos, as decisões de entrega a Deus, vêm sempre de Deus, como disse Jesus Cristo: “O Reino de Deus é como um homem que lança a semente à terra. Dorme, levanta-se, de noite e de dia, e a semente brota e cresce, sem ele o perceber” (Mc 4, 26-27).

Na parábola dos convidados às bodas, Jesus explica a formação da Igreja como chamada universal à salvação. A imagem do banquete permite descrever o Reino de Deus. Quando tudo estava preparado, muitos rejeitaram o Filho de Deus e a chamada estendeu-se a todos, inclusive aos pagãos: “O senhor ordenou: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga todos a entrar, para que se encha a minha casa” (Lc 14, 23).

São Josemaria contemplava nessa surpreendente “obrigação” um grande respeito à liberdade de cada pessoa. Afirmou, por exemplo, referindo-se ao florescimento de uma vida cristã coerente, que a expressão compelle intrare (“obriga-os a entrar”); “é um convite, uma ajuda a decidir-se, – nunca nem de longe – uma coação”; “não é como um empurrão material, mas a abundância de luz, de doutrina; o acúmulo de sacrifícios que sabeis oferecer; o sorriso que vos vem aos lábios porque sois filhos de Deus (...). Acrescentai a tudo isso vosso garbo e vossa simpatia humana, e teremos o conteúdo do compelle intrare”[26]. É assim que a graça atua, através de nós. São Basílio nota que “como os corpos claros e diáfanos, atingidos por um raio luminoso, tornam-se brilhantes e emitem outro fulgor, assim as almas portadoras do Espírito, iluminadas por ele, tornam-se elas também espirituais e propagam a graça”[27].

Trata-se de um trabalho que não deve ser realizado isoladamente, mas sim com um autêntico sentido eclesial, que manifesta que é Deus quem chama através da sua Igreja. Embebida de visão sobrenatural, a obediência dá fecundidade ao esforço apostólico. São Josemaria comenta assim uma pesca milagrosa: “Duc in altum – Mar adentro! – Repele o pessimismo que te faz covarde. Et laxate retia vestra in capturam – e lança as redes para pescar. Não vês que podes dizer, como Pedro: In nomine tuo, laxabo rete – Jesus, em teu nome procurarei almas”[28].

No Opus Dei, antes de falar a uma pessoa de sua possível vocação, conta-se com a concordância de quem dirige o Centro aonde essa pessoa costuma ir. Quem propõe a vocação a alguém deve pedir em sua oração ao Senhor que mova o coração de seu amigo para que o siga. Falar de vocação implica uma grande amizade: empatia, confiança recíproca, compreensão mútua e a capacidade de escuta, no respeito da liberdade das consciências e a devida reserva. Tudo isso se constrói a partir do “apostolado de amizade e confidência”[29] e se fundamenta na oração, no espírito de sacrifício pelo outro e no testemunho de uma vida coerente.

Algumas vezes, uma pessoa pode afirmar: “não vejo nada”, e pode ser que Deus não a esteja chamando, ou talvez, que, mais do que não ver, esteja faltando o querer. Por isso, além de recomendar que busque conselho, convém também animá-la a que peça forças ao Senhor para querer o que Ele estiver pedindo. É significativo como São Josemaria, intuía a chamada divina, pedia não apenas para ver a vontade do Senhor – Domine ut videam! – mas também que ela se realizasse – Domine, ut sit! Dizer que sim ao Senhor não é possível sem uma plena liberdade potenciada pela graça divina[30].

5. Selecionar para chegar a mais pessoas

O Opus Dei existe para a multidão e se interessa por todas as almas, “porque cada alma é um tesouro maravilhoso; cada homem é único, insubstituível. Cada um vale todo o sangue de Cristo”[31]. Mas nem todos estão chamados a este caminho e há muitos caminhos na Igreja: para cada pessoa, o melhor é o destinado a ela.

Quanto ao Opus Dei, o seu único objetivo é “contribuir para que haja no meio do mundo, das realidades e anseios deste mundo, homens e mulheres de todas as raças e condições sociais, que procurem amar e servir a Deus e aos outros homens no e através de seu trabalho cotidiano”[32]. Isso implica esforçar-se por trabalhar “com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e no serviço aos homens)”[33]. Um certo prestígio profissional ou nos estudos proporciona melhores condições para fazer um apostolado desinteressado e “abrir-se em leque para chegar a todas as almas”[34].

A decisão de entrega ao Senhor é um passo que se dá pessoalmente, mas sempre acompanhado. Esta companhia consiste numa ajuda para amadurecer, humana e cristãmente, a possível chamada do Senhor, que talvez se manifeste de modo incipiente. É um convite para abrir-se à ação do Espírito Santo na alma, que levará a desenvolver uma liberdade interior que gera o clima sobrenatural de humildade, serenidade e generosidade no qual é possível responder ao desígnio de Deus sobre a própria vida.

Parte deste acompanhamento consiste em animar a atuar com retidão de intenção. “Não é arrogância querer ser melhor. É, pelo contrário, uma virtude grata a Deus: já que conhecemos o mau material de que somos feitos e, para ser melhores, teremos sempre que apoiar-nos na misericórdia e na graça do Senhor, e repetir aquelas palavras de São Paulo: omnia possum in eo qui me confortat. Temos, portanto, obrigação de formar essas almas, de modo a ajudá-las a ser bons católicos, retificando a conduta, inculcando neles a necessidade da vida interior, e tornando-os conscientes de que o trabalho de cada dia é o meio mais apto para conseguir a perfeição cristã e para fazer o bem a todas as almas”[35].

A vocação à Obra impulsiona a converter-se em fermento para levedar toda a massa (cfr. Lc 13,21). Neste sentido, aqueles que acompanham alguém que deseja pedir admissão, devem saber avaliar a sua idoneidade espiritual, física e psicológica, moral e intelectual, ao mesmo que a autenticidade de sua motivação.

Importa pensar em cada pessoa e ajudá-la a avaliar com realismo a sua própria situação, para que não tome decisões que com o passar do tempo não for capaz de levar à prática. Neste ambiente de confiança, o interessado procurará abrir-se e dar-se a conhecer, para discernir com quem o ajuda a vontade de Deus. Trata-se de um caminho que se percorre na oração, para entender a realidade da vida de uma pessoa – virtudes, caráter, história, família, formação, saúde, etc. – e procurar seu bem à luz do Espírito Santo.

No caso de pessoas muitos jovens este caminho se percorre com os pais, “principais e primeiros educadores de seus filhos”[36], chamados também a fazer os filhos crescerem na vida moral, espiritual e sobrenatural. O magistério da Igreja ensina: “quanto mais a criança cresce, rumo a uma maturidade e autonomia humanas e espirituais, a vocação singular que vem de Deus, afirma-se com mais claridade e força. Os pais devem respeitar esta chamada e favorecer a resposta dos filhos para segui-la. É preciso convencer-se de que a primeira vocação do cristão é seguir a Jesus (cfr. Mt 16,25): ‘Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim. Quem ama seu filho mais que a mim, não é digno de mim’ (Mt 10, 37)”[37].

Para entregar-se a Deus no Opus Dei é importante o equilíbrio pessoal, entendido como a capacidade de cumprir habitualmente os compromissos assumidos com paz interior, sem rigidez ou aflição desproporcionada. Isso não quer dizer que a pessoa tenha que ser impassível ou inquebrantável, pois todos os que têm compromissos sérios – religiosos, familiares, civis – podem passar por momentos de tensão ou cansaço. “O mais importante na Igreja não é ver como nós, os homens, correspondemos, mas sim o que Deus realiza. A Igreja não é nem mais nem menos que Cristo presente entre nós, Deus que vem até à humanidade para salvá-la, chamando-nos com a sua Revelação, santificando-nos com a sua graça, sustentando-nos com a sua ajuda constante nos pequenos e nos grandes combates da vida diária”[38].

São Josemaria dizia: “Cabem: os enfermos, prediletos de Deus, e todos os que têm o coração grande, ainda que tenham sido maiores suas fraquezas”[39]. A generosidade, portanto, é uma virtude essencial. Etimologicamente, a palavra “generosidade” significa “de boa raça”. Quem é generoso, pode dizer: “somos filhos de santos, e esperamos aquela vida que Deus dará aos que não retiram dele sua confiança” (Tob 2,18 vg.). Com essa generosidade cheia de liberdade interior se pode formar cada pessoa nos diferentes âmbitos, contando com seu “desejo sincero e eficaz de tender à virtude”[40].

O crescimento da própria família é causa de alegria. São Josemaria, por outro lado, comentando que assim como uma família que não tem filhos desaparece, aplicava essa ideia à importância de procurar mais apóstolos que perpetuem a família sobrenatural do Opus Dei. O Bem-aventurado Álvaro glosava a ideia precedente, dizendo que o fundador desejava que todos os seus filhos albergassem um grande zelo “que não faça acepção de pessoas, nem discriminação alguma, para que a nossa família se dilate cada vez mais e contribua eficazmente para que todos os homens formem um só rebanho com um só pastor (Jo 10,16)”[41]: o rebanho da Igreja, apascentado por Jesus Cristo.

G. Derville

Dezembro de 2016


Elementos de bibliografia

Ernst Burkhart – Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaria, Vol 1, Rialp, Madri 2010, pp 537-542.

Javier López Díaz, Proselitismo, em Instituto Histórico San Josemaria Escrivá de BalaguerDiccionario de San Josemaria, Monte Carmelo, Burgos 2013, pp 1029-1033.


[1] Cfr. Cícero, De amicitia, XIII, 88: “Si quis in caelum ascendisset naturamque mundi et pulchritudinem siderum perspexisset, insuavem illam admirationem ei fore, quae iucundissima fuisset si aliquem cui narraret habuisset”.

[2] São João Paulo II, Exh. apost. pós-sinodal Pastores dabo vobis, n. 34.

[3] Ibidem.

[4] Cf. São Josemaria,Instrucción, 31/05/1936, nota 85.

[5] Francisco, Audiência Jubilar,30/01/2016. O Papa Francisco fala do sentido de missão do cristão em muitas ocasiões, por exemplo, em sua Mensagem para a jornada mundial de oração pelas vocações, 27/11/2016.

[6] São Justino, Dialogus cum Tryphone, 28, 2.

[7] Cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 104.

[8] Bento XVI, Homilia, 10/09/2006.

[9] Francisco, Exh. apost. Evangelii gaudium, n. 14, citando Bento XVI, Homilia, 13/05/2007.

[10] Cfr. Paulo VI, Exh. apost. Evangelii nuntiandi, 8/12/1975, nn. 41-42.

[11] São João Paulo II, Cruzando o limiar da esperança, p.118.

[12] Cf. São Josemaria, Caminho, n. 790,796.

[13] Concílio Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 9.

[14] São João Paulo II, Exh apost. pós-sinodal Pastores dabo vobis, n. 34.

[15] Francisco, Exh apost. Evangelii gaudium, n.107.

[16] Ibidem.

[17] Francisco, Discurso no simpósio internacional de pastoral vocacional, Roma, 21/10/2016.

[18] São João Paulo II, Mensagem para a XX Jornada Mundial de Oração pelas vocações, 2/02/1983.

[19] São Josemaria, Forja, n. 24.

[20] Sulco, 205. Analogamente São Josemaria comentava a história do paralítico da piscina de Bezata, e o perigo da indiferença com relação aos outros: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, quando a água se movimenta. Quando estou chegando, outro entra na minha frente” (Jo 5,5-7: “Hominem non habeo”): cfr. Sulco, n.212; Forja, n. 168; Homilia Lealdade à Igreja (4/06/1972), 6.

[21] São Josemaria,Caminho, n. 387.

[22] São Josemaria, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 53.

[23] Ibidem, n. 35.

[24] Santo Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, ad. Loc.

[25] José María Hernández Garnica, carta de 31/01/1948, em José Miguel Pero Sanz,Isidoro Zorzano Ledesma: ingeniero industrial (Buenos Aires, 1902 – Madri, 1943), Palabra, Madri 1996, p. 253.

[26] São Josemaria, Carta, 24/10/1942, n. 9/p>

[27] São Basílio, Liber de Spiritu Sancto, IX, 23.

[28] São Josemaria, Caminho, n. 792.

[29] São Josemaria, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 62.

[30] Sobre esses aspectos, cfr. Fernando Ocáriz, Sobre Dios, la Iglesia y el mundo. Rafael Serrano entrevista al Vicario general del Opus Dei, Rialp 2013, cap. IX, “Llamadas”, pp. 121-132.

[31] São Josemaria, É Cristo que passa, n 80

[32] São Josemaria, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 10

[33] Ibidem

[34] São Josemaria, Sulco, n. 193.

[35] São Josemaria, Carta 24/10/42, n. 21.

[36] Catecismo da Igreja Católica, n. 1653; Cfr Concílio Vaticano II, Declaração Gravissimum educationis, n. 3.

[37] Catecismo da Igreja Católica, 2232.

[38] São Josemaria, É Cristo que passa, n 131.

[39] São Josemaria, Instrucción, 1/04/1934, 65.

[40] Bem-aventurado Álvaro del Portillo, nota 59 a São Josemaria, Instrucción, 1/04/1934, n. 64.

[41] Bem-aventurado Álvaro del Portillo, nota 78 a São Josemaria, Instrucción, 1/04/1934, n. 84. Cfr São Josemaria, Instrucción, maio de 1935, n. 76 e nota 132.