Tempo de Natal 2021-2022 com o Papa Francisco

Oferecemos aqui todos os textos do Papa Francisco neste Natal: homilia da Missa de Galo, Ângelus, Mensagem Urbi et orbi, Santa Maria Mãe de Deus...

NATAL DO SENHOR
24 de dezembro de 2021
Santa Missa de Natal - Homilia

NATAL DO SENHOR
25 de dezembro de 2021
Bênção "Urbi et Orbi" - Discurso

SAGRADA FAMÍLIA DE NAZARÉ
26 de dezembro de 2021
Ângelus 

SEXTA FEIRA
31 de dezembro de 2021
Vésperas e Te Deum - Homilia

MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS
1° de janeiro de 2022
Santa Missa - Homilia - Ângelus

EPIFANIA DO SENHOR
6 de janeiro de 2022
Santa Missa - Homilia


SANTA MISSA DA NOITE DE NATAL

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica Vaticana
Sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Na noite, acende-se uma luz. Aparece um anjo, a glória do Senhor envolve os pastores e finalmente chega o anúncio há séculos esperado: “Hoje (…) nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor” (Lc 2, 11). Mas surpreende o que o anjo acrescenta para indicar aos pastores como encontrar Deus que veio à terra. “Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura” (2, 12). Eis o sinal: um menino. E é tudo: um menino na tosca pobreza de uma manjedoura. Cessam luzes, fulgor, coros de anjos. Só um menino. Nada mais! Como predissera Isaías: “Um menino nasceu para nós” (Is 9, 5).

Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez

O Evangelho insiste neste contraste. Narra o nascimento de Jesus, começando por César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo a seguir, leva-nos a Belém, onde, de grande, não há nada: apenas um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós, tocar-nos o coração, salvar-nos e levar-nos de volta para o que conta.

Irmãos e irmãs, ao parar diante do presépio, prestemos atenção no centro: deixemos para trás luzes e decorações – que são belas – e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus inteiro. Reconheçamo-Lo: “Menino, vós sois Deus, Deus-Menino”. Deixemo-nos invadir por este espanto alvoroçado. Aquele que abraça o universo, precisa ser tomado nos braços. Ele, que fez o sol, tem de ser aquecido. A ternura em pessoa precisa ser mimada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite batimentos leves. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida tem de ser nutrido. O criador do mundo não tem onde morar. Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez.

E nós – perguntemo-nos – sabemos acolher este caminho de Deus? É o desafio do Natal: Deus revela-Se, mas os homens não O compreendem. Faz-Se pequeno aos olhos do mundo… e nós continuamos a procurar a grandeza segundo o mundo, talvez até em nome d’Ele. Deus abaixa-Se… e nós queremos subir para o pedestal. O Altíssimo indica a humildade… e nós pretendemos sobressair. Deus vai à procura dos pastores, dos invisíveis… nós buscamos visibilidade, fazermo-nos ver. Jesus nasce para servir… e nós passamos os anos atrás do sucesso. Deus não busca força nem poder; pede ternura e pequenez interior.

Eis o que devemos pedir a Jesus no Natal: a graça da pequenez. “Senhor, ensinai-nos a amar a pequenez. Ajudai-nos a compreender que é a estrada para a verdadeira grandeza”. Mas o que significa, concretamente, acolher a pequenez? Em primeiro lugar, significa acreditar que Deus quer vir às pequenas coisas da nossa vida, quer habitar nas realidades cotidianas, nos gestos simples que realizamos em casa, na família, na escola, no trabalho. É na nossa existência ordinária que Ele quer realizar coisas extraordinárias. Trata-se de uma mensagem de grande esperança: Jesus convida-nos a valorizar e redescobrir as pequenas coisas da vida. Se Ele está lá conosco, o que nos falta? Então deixemos para trás o lamento por causa da grandeza que não temos. Renunciemos às lamúrias e rostos amuados, à avidez que nos deixa insatisfeitos. A pequenez, a maravilha daquela Criança pequenina: esta é a mensagem.

Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez

Mais ainda! Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez: ao nosso sentir-nos fracos, frágeis, inadequados, talvez até errados. Irmã e irmão, se, como em Belém, te circunda a escuridão da noite, se em redor notas uma indiferença fria, se as feridas que trazes dentro te gritam “contas pouco, não vales nada, nunca serás amado como queres”, nesta noite – se tu sentes isto – tens a resposta de Deus, que te diz: “Amo-te assim como és. A tua pequenez não Me assusta, as tuas fragilidades não Me preocupam. Fiz-Me pequeno por ti. Para ser o teu Deus, tornei-Me teu irmão. Amado irmão, amada irmã, não tenhas medo de Mim, mas reencontra em Mim a tua grandeza. Estou perto de ti e a única coisa que te peço é isto: confia em Mim e dá-Me guarida no teu coração”.

Acolher a pequenez significa mais uma coisa: abraçar Jesus nos pequenos de hoje. Ou seja, amá-Lo nos últimos, servi-Lo nos pobres. São eles os mais parecidos com Jesus, nascido pobre. E é nos pobres que Ele quer ser honrado. Nesta noite de amor, um único medo nos assalte: ferir o amor de Deus, feri-lo desprezando os pobres com a nossa indiferença. São os prediletos de Jesus, que nos hão de acolher um dia no Céu. Uma poetisa escreveu: “Quem encontrou o Céu cá em baixo, falhará lá em cima” (E. Dickinson, Poems, XVII). Não percamos de vista o Céu, cuidemos de Jesus agora, acarinhando-O nos necessitados, porque Se identificou com eles.

Olhando de novo para o presépio, vemos que, no seu nascimento, Jesus está rodeado precisamente pelos pequenos, pelos pobres. São os pastores. Eram os mais simples; e foram os que estiveram mais perto do Senhor. Encontraram-No, porque “pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite” (Lc 2, 8). Estavam lá para trabalhar, porque eram pobres e a sua vida não tinha horário, dependia do rebanho. Não podiam viver como e onde queriam, mas regulavam-se de acordo com as exigências das ovelhas que cuidavam. E Jesus nasceu lá perto deles, perto dos esquecidos das periferias. Vem onde a dignidade do homem é posta à prova. Vem nobilitar os excluídos, revelando-Se primeiramente a eles: não a personalidades cultas e importantes, mas a gente pobre que trabalhava. Nesta noite, Deus vem encher de dignidade a dureza do trabalho. Recorda-nos como é importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem, porque o homem é senhor e não escravo do trabalho. No dia da Vida, repitamos: chega de mortes no trabalho! Empenhemo-nos para que cessem.

Tudo se harmoniza quando, no centro,
está Jesus

Olhemos uma última vez para o presépio, alongando a vista até às suas extremidades, onde já se vislumbram os Magos que vêm, peregrinos, para adorar o Senhor. Olhemos e compreendamos que, à volta de Jesus, tudo se compõe numa unidade: não estão só os últimos, os pastores, mas também os eruditos e os ricos, os Magos. Em Belém, estão juntos pobres e ricos, quem adora como os Magos e quem trabalha como os pastores. Tudo se harmoniza quando, no centro, está Jesus: não as nossas ideias sobre Jesus, mas Ele mesmo, o Vivente. Então, queridos irmãos e irmãs, voltemos a Belém, voltemos às origens: à essencialidade da fé, ao primeiro amor, à adoração e à caridade. Olhemos os Magos que vêm em peregrinação e, como Igreja sinodal, a caminho, vamos a Belém, onde está Deus no homem e o homem em Deus; onde o Senhor ocupa o primeiro lugar e é adorado; onde os últimos ocupam o lugar mais próximo d’Ele; onde pastores e Magos estão juntos numa fraternidade mais forte do que qualquer distinção. Que Deus nos conceda ser uma Igreja adoradora, pobre, fraterna. Isto é o essencial. Voltemos a Belém.

Faz-nos bem ir lá, dóceis ao Evangelho de Natal, que apresenta a Sagrada Família, os pastores e os Magos: são, todos, pessoas a caminho. Irmãos e irmãs, ponhamo-nos a caminho, porque a vida é uma peregrinação. Ergamo-nos, despertemos porque, nesta noite, acendeu-se uma luz. É uma luz suave e lembra-nos que, na nossa pequenez, somos filhos amados, filhos da luz (cf. 1 Tes 5, 5). Irmãos e irmãs, alegremo-nos juntos, porque ninguém apagará jamais esta luz, a luz de Jesus, que, desde esta noite, brilha no mundo.


MENSAGEM URBI ET ORBI
DO PAPA FRANCISCO

NATAL 2021

Balcão central da Basílica Vaticana
Sábado, 25 de dezembro de 2021

Queridos irmãos e irmãs, feliz Natal!

A Palavra de Deus, que criou o mundo e dá sentido à história e ao caminho do homem, fez-Se carne e veio habitar entre nós. Apareceu como um sussurro, como o murmúrio duma brisa ligeira, deixando cheio de maravilha o coração de todo o homem e mulher que se abre ao mistério.

O Verbo fez-Se carne para dialogar conosco. Deus não quer construir um monólogo, mas um diálogo. Pois o próprio Deus, Pai e Filho e Espírito Santo, é diálogo, comunhão eterna e infinita de amor e de vida.

Quando veio ao mundo, na pessoa do Verbo encarnado, Deus mostrou-nos o caminho do encontro e do diálogo. Mais, Ele próprio encarnou em Si mesmo este Caminho para nós podermos conhecê-lo e percorrê-lo com confiança e esperança.

Irmãs e irmãos, “como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades”? (Francisco, Carta enc. 198) Percebemos isso ainda melhor neste tempo de pandemia. A nossa capacidade de relações sociais é duramente posta à prova; aumenta a tendência para fechar-se, arranjar-se sozinho, renunciar a sair, a encontrar-se, a fazer as coisas juntos. E, mesmo a nível internacional, corre-se o risco de não querer dialogar, o risco de que a complexidade da crise induza a optar por atalhos em vez dos caminhos mais longos do diálogo; mas, na realidade, só estes conduzem à solução dos conflitos e a benefícios partilhados e duradouros.

Com efeito, ao mesmo tempo que ressoa, à nossa volta e por todo o mundo, o anúncio do nascimento do Salvador, fonte da verdadeira paz, vemos ainda tantos conflitos, crises e contradições. Parecem não ter fim, e já quase não os notamos. De tal maneira nos habituamos, que há tragédias imensas das quais já nem se fala; corremos o risco de não ouvir o grito de dor e desespero de tantos irmãos e irmãs nossos.

Pensemos no povo sírio, que, há mais duma década, vive uma guerra que já causou muitas vítimas e um número incalculável de refugiados. Olhemos para o Iraque, que luta ainda para se levantar depois de um longo conflito. Ouçamos o grito das crianças que se levanta do Iémen, onde uma tragédia enorme, esquecida por todos, se consuma há anos em silêncio, provocando mortes todos os dias.

Lembremos as contínuas tensões entre israelitas e palestinos, que se arrastam sem solução, com consequências sociais e políticas cada vez mais graves. Não nos esqueçamos de Belém, o lugar onde Jesus viu a luz e que vive tempos difíceis inclusive pelas dificuldades econômicas devidas à pandemia que impede os peregrinos de chegarem à Terra Santa, com consequências negativas na vida da população. Pensemos no Líbano, que padece uma crise sem precedentes, com condições econômicas e sociais muito preocupantes.

Mas, no coração da noite, eis o sinal de esperança: hoje, “o amor que move o sol e as mais estrelas” (Dante, Paraíso, XXXIII, 145), faz-Se carne. Veio em forma humana, partilhou os nossos dramas e rompeu o muro da nossa indiferença. No frio da noite, estende os seus bracinhos para nós: tem necessidade de tudo, mas vem para nos dar tudo. A Ele pedimos a força de nos abrirmos ao diálogo. Neste dia de festa, imploramos-Lhe que suscite, no coração de todos, anseios de reconciliação e fraternidade. A Ele, dirijamos a nossa súplica.

Menino Jesus, dai paz e concórdia ao Médio Oriente e ao mundo inteiro. Amparai a quantos se encontram empenhados em prestar assistência humanitária às populações forçadas a fugir da sua pátria; confortai o povo afegão que, há mais de quarenta anos, está submetido a dura prova por conflitos que impeliram muitos a deixar o país.

Rei dos povos, ajudai as autoridades políticas a pacificar as sociedades abaladas por tensões e contrastes. Sustentai o povo do Myanmar, onde intolerância e violência se abatem, não raro, também sobre a comunidade cristã e os locais de culto, e turbam o rosto pacífico daquela população.

Sede luz e amparo para quem, mesmo indo contracorrente, crê e trabalha em prol do encontro e do diálogo, e não permitais que se espalhem na Ucrânia as metástases de um conflito gangrenado.

Príncipe da Paz, assisti a Etiópia na descoberta do caminho da reconciliação e da paz, através duma discussão sincera que coloque em primeiro lugar as necessidades da população. Escutai o clamor das populações da região do Sahel, que sofrem a violência do terrorismo internacional. Voltai o olhar para os povos dos países do Norte de África que são atribulados pelas divisões, o desemprego e o desnível econômico; e aliviai os sofrimentos dos inúmeros irmãos e irmãs que padecem com os conflitos internos no Sudão e no Sudão do Sul.

Fazei que, nos corações dos povos do continente americano, prevaleçam os valores da solidariedade, reconciliação e convivência pacífica, através do diálogo, do respeito mútuo e do reconhecimento dos direitos e valores culturais de todos os seres humanos.

Filho de Deus, confortai as vítimas da violência contra as mulheres que grassa neste tempo de pandemia. Concedei esperança às crianças e adolescentes que são vítimas do bullying e de abusos. Dai consolação e carinho aos idosos, sobretudo aos mais abandonados. Proporcionai serenidade e unidade às famílias, lugar primário da educação e base do tecido social.

Deus-conosco, concedei saúde aos doentes e inspirai todas as pessoas de boa vontade a encontrar as soluções mais adequadas para superar a crise sanitária e as suas consequências. Tornai generosos os corações, para fazerem chegar os tratamentos necessários, especialmente as vacinas, às populações mais necessitadas. Recompensai todos aqueles que mostram solicitude e dedicação no cuidado dos familiares, dos doentes e dos mais fragilizados.

Menino de Belém, tornai possível em breve o regresso a casa de tantos prisioneiros de guerra, civis e militares, dos conflitos recentes, e daqueles que estão presos por razões políticas. Não nos deixeis indiferentes à vista do drama dos migrantes, deslocados e refugiados. Os seus olhos pedem-nos para não virarmos o rosto para o outro lado, para não renegarmos a humanidade que nos une, para assumirmos as suas histórias e não nos esquecermos dos seus dramas (Cf. Francisco, Discurso no “Centro de Recepção e Identificação”; Grécia – Mytilene, 05/XII/2021).

Verbo eterno encarnado, tornai-nos solícitos pela nossa Casa comum, também ela enferma pelo descuido com que frequentemente a tratamos, e incitai as autoridades políticas a encontrarem acordos de tal modo eficazes que as próximas gerações possam viver num ambiente respeitoso da vida.

Queridos irmãos e irmãs, muitas são as dificuldades do nosso tempo, mas a esperança é mais forte, porque “um menino nasceu para nós” (Is 9, 5). Ele é a Palavra de Deus que Se fez “in-fante”, capaz apenas de chorar e necessitado de tudo. Quis aprender a falar, como qualquer criança, para que nós aprendêssemos a escutar Deus, nosso Pai, a escutar-nos uns aos outros e a dialogar como irmãos e irmãs. Ó Cristo, nascido para nós, ensinai-nos a caminhar convosco pelas sendas da paz.

Feliz Natal para todos!


FESTA DA SANTA FAMÍLIA DE NAZARÉ

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 26 de dezembro de 2021

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje celebramos a Sagrada Família de Nazaré. Deus escolheu uma família humilde e simples para vir entre nós. Contemplemos a beleza deste mistério, ressaltando também dois aspectos concretos para as nossas famílias.

a pessoa que hoje somos não nasce tanto dos bens materiais que desfrutamos, quanto do amor que recebemos,

O primeiro: a família é a história da qual provimos. Cada um de nós tem a própria história, ninguém nasceu por magia, com a varinha mágica; cada um de nós tem uma história e a família é a história de onde provimos. O Evangelho da liturgia de hoje recorda-nos que também Jesus é filho de uma história familiar. Vemo-lo ir a Jerusalém com Maria e José para a Páscoa; depois, faz preocupar a mãe e o pai, que não o encontram; quando o encontram, volta para casa com eles (cf. Lc 2, 41-52). É bonito ver Jesus inserido nas vicissitudes dos afetos familiares, que nasce e cresce no abraço e nas preocupações dos seus. Isto é importante também para nós: provimos de uma história tecida com vínculos de amor e a pessoa que hoje somos não nasce tanto dos bens materiais que desfrutamos, quanto do amor que recebemos, do amor no seio da família. Talvez não nasçamos numa família extraordinária e sem problemas, mas é a nossa história – cada um deve pensar: é a minha história - são as nossas raízes: se as cortarmos, a vida torna-se árida! Deus não nos criou para ser líderes solitários, mas para caminhar juntos. Agradeçamos-lhe e rezemos pelas nossas famílias. Deus pensa em nós e quer que estejamos juntos: gratos, unidos, capazes de preservar as raízes. E devemos pensar sobre isto, sobre a nossa história.

O segundo aspecto: aprende-se a ser família todos os dias. No Evangelho vemos que até na Sagrada Família nem tudo corre bem: há problemas inesperados, angústias, sofrimentos. Não existe a Sagrada Família dos santinhos. Maria e José perdem Jesus, procuram-no ansiosamente, e encontram-no depois de três dias. E quando, sentado entre os mestres no Templo, responde que deve cuidar das coisas do seu Pai, não o compreendem. Precisam de tempo para aprender a conhecer o seu filho. Assim também para nós: todos os dias, em família, é preciso aprender a ouvir-se e a compreender-se, a caminhar juntos, a enfrentar conflitos e dificuldades. É o desafio diário, que se vence com a atitude certa, com pequenas atenções, com gestos simples, cuidando dos detalhes das nossas relações. E também isto nos ajuda muito a falar em família, falar à mesa, o diálogo entre os pais e os filhos, o diálogo entre os irmãos ajuda-nos a viver esta raiz familiar que vem dos avós. O diálogo com os avós!

Para preservar a harmonia na família, devemos combater a ditadura do eu

E como se faz isto? Olhemos para Maria, que no Evangelho de hoje diz a Jesus: “O teu pai e eu estávamos à tua procura” (v. 48). O teu pai e eu, não diz eu e o teu pai: antes do eu, há o tu! Aprendamos isto: antes do eu há o tu. Na minha língua há um adjetivo para as pessoas que primeiro dizem eu e depois tu: “eu, mim, comigo, para mim e em meu benefício”. Para certas pessoas é assim, primeiro eu, depois tu. Não, na Sagrada Família, primeiro o tu e depois o eu. Para preservar a harmonia na família, devemos combater a ditadura do eu, quando o eu se incha. É perigoso quando, em vez de nos ouvirmos, culpamo-nos uns aos outros pelos erros; quando, em vez de termos gestos de cuidado pelos outros, nos fixamos nas nossas necessidades; quando, em vez de dialogar, nos isolamos com o celular - é triste ver uma família almoçar, cada qual com o seu celular, sem falar uns com os outros, cada um falando com o seu celular; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas frases, encenando uma comédia que já vimos, onde cada um quer ter razão e, no final, instaura-se um silêncio frio. Aquele silêncio frio e agudo, depois de uma discussão familiar, que é terrível, deveras terrível! Repito um conselho: à noite, no final de tudo, é bom fazer as pazes, sempre. Nunca ir dormir sem ter feito as pazes, caso contrário no dia seguinte haverá uma “guerra fria”! E isto é perigoso, porque começará uma história de repreensões, uma história de ressentimentos. Quantas vezes, infelizmente, dentro de casa nascem e crescem conflitos de silêncios demasiado longos e de egoísmos descuidados! Às vezes chega-se até a violências físicas e morais. Isto dilacera a harmonia e mata a família. Passemos do eu para o tu. O que deve ser mais importante na família, é o tu. E todos os dias, por favor, rezai um pouco juntos, se puderdes fazer o esforço, para pedir a Deus o dom da paz na família. E comprometamo-nos todos - pais, filhos, Igreja, sociedade civil - a apoiar, defender e preservar a família, que é o nosso tesouro!

Que a Virgem Maria, esposa de José e mãe de Jesus, ampare as nossas famílias.


Depois do Ângelus

Agora dirijo-me aos esposos do mundo inteiro.

Hoje, na festa da Sagrada Família, é publicada uma Carta que escrevi pensando em vós. Quer ser o meu presente de Natal para vós, esposos: um encorajamento, um sinal de proximidade e também uma ocasião de meditação. É importante refletir e experimentar a bondade e a ternura de Deus que, com mão paterna, guia os passos dos esposos no caminho do bem. Que o Senhor conceda a todos os esposos a força e a alegria de continuar no caminho empreendido. Quero recordar-vos também que nos aproximamos do Encontro Mundial das Famílias: convido-vos a preparar-vos para este evento, especialmente com a oração, e a vivê-lo nas vossas dioceses com as outras famílias.

E falando da família, vem-me à mente uma preocupação, uma verdadeira preocupação, pelo menos aqui na Itália: o inverno demográfico. Parece que muitos perderam a aspiração de ir em frente com filhos, e muitos casais preferem não ter filhos ou ter só um. Pensai nisto, é uma tragédia. Há alguns minutos vi no programa “A Sua immagine” que se falava deste grave problema, o inverno demográfico. Façamos todos o possível para retomar uma consciência, para superar este inverno demográfico, que vai contra as nossas famílias, contra a nossa pátria, inclusive contra o nosso futuro.

Agora saúdo todos vós, peregrinos provenientes da Itália e de vários países - vejo aqui poloneses, brasileiros, e ali vejo também colombianos - as famílias, os grupos paroquiais, as associações. Renovo os votos de que a contemplação do Menino Jesus, coração e centro das festividades de Natal, possa suscitar atitudes de fraternidade e de partilha nas famílias e nas comunidades. E para celebrar um pouco o Natal, será bom visitar o presépio aqui na praça e os 100 presépios que estão debaixo da colunata, também isto nos ajudará.

Nestes dias recebi muitas mensagens de bons votos de Roma e de outras partes do mundo. Infelizmente, não me é possível responder a todos, mas rezo por cada um, e estou especialmente grato pelas orações que muitos de vós prometeram fazer. Por favor, rezai por mim, não vos esqueçais. Muito obrigado e boa festa da Sagrada Família. Bom almoço e até à vista!


PRIMEIRAS VÉSPERAS DA SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS
E TE DEUM DE AÇÃO DE GRAÇAS PELO ANO QUE PASSOU

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Nestes dias, a Liturgia convida-nos a despertar em nós a admiração pelo mistério da Encarnação. A festa de Natal é, talvez, a que mais suscita esta atitude interior: a admiração, o enlevo, a contemplação... Como os pastores de Belém, que primeiro recebem o luminoso anúncio angélico e depois acorrem e encontram efetivamente o sinal que lhes fora indicado, o Menino envolto em faixas numa manjedoura. Com lágrimas nos olhos, ajoelham-se diante do Salvador recém-nascido. Mas não apenas eles, também Maria e José estão cheios de santa admiração pelo que os pastores dizem ter ouvido do anjo a respeito do Menino.

É assim: não se pode celebrar o Natal sem admiração! Mas uma maravilha que não se limite a uma emoção superficial, ligada à exterioridade da festa ou, pior ainda, a um frenesi consumista. Se o Natal se reduzir a isto, nada mudará: amanhã será igual a ontem, o próximo ano será como o ano passado, e assim por diante. Significaria aquecer-nos por alguns instantes num fogo de palha, sem nos expormos com todo o nosso ser à força do Acontecimento, sem compreender o âmago do mistério do nascimento de Cristo.

E o cerne é este: “O Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Ouvimos repeti-lo várias vezes nesta liturgia vespertina, com que começa a solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus. Ela é a primeira testemunha, a primeira e a maior, e ao mesmo tempo a mais humilde. A maior porque a mais humilde. O seu coração está cheio de admiração, mas sem sombra de romantismos, afetações, espiritualismos. Não! A Mãe restitui-nos à realidade, à verdade do Natal, contida nas três palavras de São Paulo: “nascido de mulher” (Gl 4, 4). O enlevo cristão não deriva de efeitos especiais, de mundos fantásticos, mas do mistério da realidade: não há nada mais maravilhoso e surpreendente do que a realidade! Uma flor, um pedaço de terra, uma história de vida, um encontro... O rosto enrugado de um idoso e a face recém-desabrochada de uma criança. Uma mãe que tem ao colo o seu filho e que o amamenta. É ali que o mistério transparece!

Irmãos, irmãs, o enlevo de Maria, o enlevo da Igreja está repleto de gratidão. A gratidão. A gratidão da Mãe que, contemplando o Filho, sente a proximidade de Deus, sente que Deus não abandonou o seu povo, veio, está próximo, é Deus conosco. Os problemas não desapareceram, as dificuldades e as preocupações não faltam, mas não estamos sozinhos: o Pai “enviou-nos o seu Filho” (Gl 4, 4) para nos resgatar da escravidão do pecado e para nos restituir a dignidade de filhos. Ele, o Unigênito, fez-se primogênito entre muitos irmãos, para reconduzir todos nós, desorientados e dispersos, à casa do Pai.

Este tempo de pandemia aumentou no mundo inteiro a sensação de desorientação. Após uma primeira fase de reação, em que nos sentimos solidários no mesmo barco, difundiu-se a tentação do “salve-se quem puder”. Mas graças a Deus reagimos de novo, com o sentido de responsabilidade. Realmente, podemos e devemos dizer “graças a Deus”, pois a escolha da responsabilidade solidária não vem do mundo: vem de Deus; aliás, vem de Jesus Cristo, que gravou de uma vez por todas na nossa história a “rota” da sua vocação original: ser todos irmãs e irmãos, filhos do único Pai.

Roma tem esta vocação inscrita no coração. Em Roma todos se sentem irmãos; num certo sentido, todos se sentem em casa, pois esta cidade conserva em si uma abertura universal. Ouso dizer: é a cidade universal. Deriva-lhe da sua história, da sua cultura; deriva-lhe principalmente do Evangelho de Cristo, que aqui lançou raízes profundas, fecundadas pelo sangue dos mártires, começando por Pedro e Paulo.

Mas também neste caso, estejamos atentos: uma cidade hospitaleira e fraterna não se reconhece pela “fachada”, pelas palavras, pelos eventos magnificentes. Não! Reconhece-se pela atenção diária, “normal” a quem tem mais dificuldade, às famílias que sentem o peso da crise, às pessoas com deficiências graves e aos seus familiares, a quantos têm necessidade dos meios de transporte público para ir trabalhar todos os dias, aos que vivem nas periferias, a quem foi esmagado por algum fracasso na sua vida e precisa de serviços sociais, e assim por diante. É a cidade que olha para cada um dos seus filhos, para cada um dos seus habitantes, aliás, para cada um dos seus hóspedes.

Roma é uma cidade maravilhosa, que não deixa de encantar; mas para quem vive aqui, é também uma cidade cansativa, infelizmente nem sempre digna para os cidadãos e para os hóspedes, uma cidade que às vezes parece que descarta. Então, a esperança é de que quem vive aqui e quem se encontra aqui por motivos de trabalho, peregrinação ou turismo, todos possam apreciá-la cada vez mais pela atenção à hospitalidade, à dignidade da vida, da casa comum, dos mais frágeis e vulneráveis. Que cada um se possa surpreender, descobrindo nesta cidade uma beleza que, eu diria, “coerente”, e que suscite gratidão. São os meus votos para este ano.

Irmãs e irmãos, hoje a Mãe — a Mãe Maria e a Mãe Igreja — mostra-nos o Menino. Sorri para nós e diz-nos: “Ele é o Caminho. Segui-o, tende confiança! Ele não desilude”. Sigamo-lo, no percurso diário: Ele dá plenitude ao tempo, confere sentido às obras e aos dias. Tenhamos confiança, nos momentos felizes e nos dolorosos: a esperança que Ele nos dá é a esperança que nunca desilude!


SANTA MISSA NA SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS
LIV DIA MUNDIAL DA PAZ

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Sábado, 1º de janeiro de 2022

Os pastores encontram “Maria, José e o menino deitado na manjedoura” (Lc 2, 16). A manjedoura é sinal de alegria para os pastores: confirma o que tinham sabido do anjo (cf. 2, 12), é o lugar onde encontram o Salvador. E é também a prova de que Deus está junto deles: nasce numa manjedoura, objeto bem conhecido deles, demonstrando assim ser-lhes próximo e familiar. Mas a manjedoura é um sinal de alegria também para nós: Jesus, nascendo pequenino e pobre, toca-nos o coração, incute-nos amor em vez de temor. A manjedoura preanuncia-nos que Ele Se fará alimento para nós. E a sua pobreza é uma boa notícia para todos, especialmente para os marginalizados, para os rejeitados, para quem não conta no mundo. Ali desce Deus: nenhuma via preferencial, nem sequer um berço! Eis por que é bom vê-Lo deitado numa manjedoura.

Mas para Maria, a Santa Mãe de Deus, não foi assim. Ela teve de suportar “o escândalo da manjedoura”. Também Ela, muito antes dos pastores, recebera o anúncio de um anjo, que Lhe dissera palavras solenes, falando-Lhe do trono de Davi: “Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será grande e vai chamar-Se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-Lhe o trono de seu pai Davi” (Lc 1, 31-32). E agora tem de O colocar numa manjedoura para animais. Como harmonizar o trono do rei e a pobre manjedoura? Como conciliar a glória do Altíssimo e a miséria de um estábulo? Pensemos no desconsolo da Mãe de Deus. Que há de mais duro, para uma mãe, do que ver o seu filho sofrer a miséria? É caso para se sentir desconsolado. Não se poderia censurar Maria, se Se lamentasse de toda aquela desolação inesperada. Ela, porém, não perde a coragem. Não Se queixa, mas está em silêncio. Em vez dos nossos queixumes, opta por uma saída diversa: “Quanto a Maria – diz o Evangelho –, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2, 19).

Maria guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração

Trata-se de um comportamento diferente do dos pastores e do povo. Eles contam a todos o que viram: o anjo que lhes apareceu no meio da noite, as suas palavras sobre o Menino. E o povo admirava-se ao ouvir estas coisas (cf. 2, 18): palavras e admiração. Ao contrário, Maria aparece pensativa. Guarda e medita no coração. São duas atitudes diferentes, que se podem encontrar também em nós. A narração e a maravilha dos pastores recordam a nossa condição nos primeiros tempos da fé: então é tudo fácil e linear, alegra-se pela novidade de Deus que entra na vida, enchendo todos os seus aspectos dum clima de maravilha. Diversamente, a atitude meditativa de Maria é a expressão duma fé madura, adulta, não inicial; duma fé que não é recém-nascida, duma fé que se tornou geradora. Porque a fecundidade espiritual passa através da prova. Saída da tranquilidade de Nazaré e das promessas triunfantes recebidas do anjo – o seu início –, Maria encontra-Se agora no estábulo escuro de Belém. Mas é aqui que dá Deus ao mundo. E enquanto outros, perante o escândalo da manjedoura, teriam sido tomados pelo desconsolo, Ela não: guarda meditando.

Aprendamos da Mãe de Deus esta atitude: guardar meditando. Com efeito, acontece também a nós ter de suportar certos “escândalos da manjedoura”. Esperamos que tudo corra bem, mas depois, como relâmpago em céu sereno, chega um problema inesperado. E gera-se uma dolorosa colisão entre as expectativas e a realidade. E pode acontecer também na fé, quando a alegria do Evangelho é posta à prova numa situação difícil por que passamos. Mas hoje a Mãe de Deus ensina-nos a tirar proveito desta colisão. Mostra-nos a sua necessidade: é o caminho estreito para chegar à meta, é a cruz sem a qual não se ressuscita. É como um parto doloroso, que dá vida a uma fé mais madura.

como superar a colisão entre o ideal e o real? Fazendo como Maria: guardando e meditando

Pergunto-me, irmãos e irmãs, como realizar esta passagem, como superar a colisão entre o ideal e o real? Fazendo precisamente como Maria: guardando e meditando. Em primeiro lugar, Maria guarda, ou seja, não deixa disperso. Não rejeita o que acontece. Guarda tudo no coração, tudo aquilo que viu e ouviu: não só as coisas lindas, como o que Lhe dissera o anjo e aquilo que contaram os pastores, mas também as coisas difíceis de aceitar: o perigo que correu aparecendo grávida antes do casamento, agora a triste desolação do estábulo onde deu à luz. Eis o que faz Maria: não seleciona, mas guarda. Acolhe a realidade como vem, não tenta camuflar, maquiar a vida; guarda no coração.

Depois temos a segunda atitude. Como guarda Maria? Guarda meditando. O verbo usado no Evangelho evoca o entrelaçamento das coisas: Maria compara experiências diferentes, encontrando os fios ocultos que as interligam. No seu coração, na sua oração realiza esta operação extraordinária: interliga as coisas lindas e as coisas duras; não as mantém separadas, mas une-as. E por isso Maria é a Mãe da catolicidade. Podemos, forçando um pouco as palavras, dizer que Maria é católica por isto: porque une, não separa. E assim apreende o sentido pleno, a perspectiva de Deus. No seu coração de mãe, compreende que a glória do Altíssimo passa pela humildade; acolhe o plano da salvação, segundo o qual Deus devia descansar numa manjedoura. Vê o Menino divino frágil e tiritando de frio, e acolhe o maravilhoso entrelaçamento divino de grandeza e pequenez. É assim que Maria guarda: meditando.

Este olhar inclusivo, que supera as tensões guardando e meditando no coração, é o olhar das mães, que nas tensões, não separam, mas guardam-nas, e assim cresce a vida. É o olhar com que muitas mães abraçam as situações dos filhos. É um olhar concreto, que não se deixa condicionar pelo desconsolo, nem se deixa paralisar perante os problemas, mas coloca-os num horizonte mais amplo. E Maria continua assim, até ao Calvário, meditando e guardando: guarda e medita. Vêm à mente os rostos das mães que assistem um filho doente ou em dificuldade. Quanto amor há nos seus olhos, banhados de lágrimas, que ao mesmo tempo sabem inspirar motivos de esperança! Trata-se de um olhar consciente, sem ilusões, e, todavia, sem se deter na tristeza e nos problemas, oferece uma perspectiva mais ampla, a perspectiva do cuidado, do amor que regenera a esperança. É isto que fazem as mães: sabem superar obstáculos e conflitos, sabem infundir a paz. Assim conseguem transformar as adversidades em ocasiões de renascimento e em ocasiões de crescimento. Fazem-no porque sabem guardar. As mães sabem guardar, sabem manter os fios da vida todos juntos. Há necessidade de pessoas capazes de tecer fios de comunhão, que contrastem os numerosos fios de arame farpado das divisões; fios de comunhão, isto sabem-no fazer as mães.

As mães sabem guardar, sabem manter os fios da vida todos juntos.

O novo ano começa sob o signo da Santa Mãe de Deus, sob o signo da Mãe. O olhar materno é o caminho para renascer e crescer. As mães, as mulheres olham o mundo não para o explorar, mas para que tenha vida: olhando com o coração, conseguem manter juntos os sonhos e a realidade concreta, evitando as derivas do pragmatismo asséptico e da abstração. E a Igreja é mãe, é mãe assim! E a Igreja é mulher, é mulher assim! Por isso não podemos encontrar o lugar da mulher na Igreja sem a espelhar neste coração de mulher-mãe. Este é o lugar da mulher na Igreja, o grande lugar, do qual derivam outros mais concretos, mais secundários. Mas a Igreja é mãe, a Igreja é mulher. E enquanto as mães dão a vida e as mulheres guardam o mundo, empenhemo-nos todos para promover as mães e proteger as mulheres. Quanta violência existe contra as mulheres! Basta! Ferir uma mulher é ultrajar a Deus, que tomou duma mulher a humanidade… Não a tomou dum anjo, nem [a criou] diretamente: tomou-a duma mulher. Tal como duma mulher, a Igreja-mulher toma a humanidade dos filhos.

No início do Ano Novo, coloquemo-nos sob a proteção desta mulher, a Santa Mãe de Deus, que é nossa mãe. Que Ela nos ajude a guardar e meditar tudo, sem ter medo das provações, na jubilosa certeza de que o Senhor é fiel e sabe transformar as cruzes em ressurreições. Invoquemo-La, também hoje, como fez o Povo de Deus em Éfeso. Ponhamo-nos todos de pé, fixemos o olhar em Nossa Senhora e, como fez o povo de Deus em Éfeso, repitamos três vezes o seu título de Mãe de Deus. Todos juntos: Santa Mãe de Deus, Santa Mãe de Deus, Santa Mãe de Deus!. Amém.


SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS
55º DIA MUNDIAL DA PAZ

ÂNGELUS

Praça São Pedro
Sábado, 1º de janeiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia! Bom ano!

Comecemos o novo ano, confiando-o a Maria Mãe de Deus. O Evangelho da liturgia de hoje fala dela, reconduzindo-nos para o encanto do presépio. Os pastores vão sem demora para a gruta e o que encontram? Encontram – diz o texto – “Maria, José e o menino deitado na manjedoura” (Lc 2, 16). Façamos uma pausa sobre esta cena e imaginemos Maria que, como mãe terna e carinhosa, acabou de colocar Jesus na manjedoura. Naquele gesto podemos ver um dom feito a nós: Nossa Senhora não guarda o Filho para si, mas apresenta-o a nós; não o segura apenas no seu colo, mas depõe-no para nos convidar a olhar para ele, acolhê-lo e adorá-lo. Eis a maternidade de Maria: o Filho que nasceu é oferecido a todos nós. Sempre oferecendo o Filho, indicando o Filho, nunca o reteve como unicamente seu, não. E foi assim ao longo da vida de Jesus.

Maria acabou de colocar Jesus na manjedoura. Naquele gesto podemos ver um dom feito a nós

E ao colocá-lo diante dos nossos olhos, sem dizer uma palavra, transmite-nos uma mensagem maravilhosa: Deus está próximo, ao nosso alcance. Ele não vem com o poder de quem quer ser temido, mas com a fragilidade de quem pede para ser amado; não julga a partir do alto de um trono, mas olha para nós de baixo como irmão, aliás, como filho. Ele nasce pequenino e necessitado para que ninguém se envergonhe: precisamente quando experimentamos a nossa fraqueza e fragilidade, podemos sentir Deus ainda mais próximo, porque Ele se nos apresentou assim, débil e frágil. É o Deus-menino que nasce para não excluir ninguém. Para nos tornar todos irmãos e irmãs.

Eis então: o novo ano começa com Deus que, nos braços da sua Mãe e deitado numa manjedoura, nos encoraja ternamente. Precisamos deste encorajamento. Ainda vivemos tempos incertos e difíceis devido à pandemia. Muitos estão assustados com o futuro e sobrecarregados por situações sociais, problemas pessoais, perigos que provêm da crise ecológica, injustiças e desequilíbrios econômicos planetários. Olhando para Maria com o Filho nos braços, penso nas jovens mães e nos seus filhos que fogem das guerras e da fome ou que aguardam nos campos de refugiados. São tantos! E ao contemplarmos Maria que coloca Jesus na manjedoura, pondo-o à disposição de todos, lembremo-nos que o mundo muda e a vida de todos só melhora se nos colocarmos à disposição dos outros, sem esperar que eles comecem a fazê-lo. Se nos tornarmos artífices da fraternidade, seremos capazes de tecer os fios de um mundo dilacerado por guerras e violências.

Hoje celebramos o Dia Mundial da Paz. A paz “é conjuntamente dádiva do Alto e fruto dum empenho compartilhado” (Mensagem para o LV Dia Mundial da Paz, 1). Dádiva do alto: deve ser implorada a Jesus, porque sozinhos não somos capazes de a salvaguardar. Só podemos verdadeiramente construir a paz se a tivermos no coração, só se a recebermos do Príncipe da paz. Mas a paz é também empenho nosso: exige que demos o primeiro passo, requer gestos concretos. É construída com atenção aos últimos, com a promoção da justiça, com a coragem do perdão, que extingue o fogo do ódio. E também precisa de uma perspectiva positiva: que olhemos sempre – na Igreja como na sociedade – não para o mal que nos divide, mas para o bem que nos pode unir! Não nos devemos abater nem lamentar, mas arregaçar as mangas para construir a paz. A Mãe de Deus, Rainha da paz, no início deste ano, obtenha concórdia para os nossos corações e para o mundo inteiro.

Depois do Ângelus

Amados irmãos e irmãs!

No início do novo ano desejo a todos a paz, que é o compêndio de todo o bem. Paz! Retribuo de coração e com gratidão a saudação do Senhor Presidente da República Italiana, Sergio Mattarella, e asseguro a minha oração por ele e pelo povo italiano.

Hoje é o Dia Mundial da Paz, iniciado por São Paulo VI em 1968. Na Mensagem deste ano frisei que a paz é construída através do diálogo entre as gerações, com a educação e o trabalho. Sem estes três elementos, faltam as bases.

Estou grato por todas as iniciativas promovidas em todo o mundo por ocasião deste Dia, de forma compatível com a situação pandêmica; em particular pela Vigília realizada ontem à noite na Catedral de Savona como expressão da Igreja na Itália.

Saúdo os participantes na manifestação “Paz em todas as terras”, organizada pela Comunidade de Santo Egídio aqui em Roma e em muitas partes do mundo – competentes os membros de Santo Egídio, muito bem! – em colaboração com as dioceses e paróquias. Obrigado pela sua presença e pelo seu empenho!

Saúdo todos vocês, queridos romanos e peregrinos! Saúdo os jovens de Curtatone, as famílias de Forlimpopoli, os fiéis de Pádua e os de Comun Nuovo, perto de Sotto il Monte – terra de São João XXIII, o Papa da Encíclica Pacem in terris, atual como nunca!

Vamos para casa pensando: paz, paz, paz! Precisamos de paz. Hoje estava vendo as imagens no programa de televisão “A sua imagine”, sobre a guerra, os deslocados, a miséria... E isto está a acontecer no mundo de hoje. Queremos paz!

Os melhores votos a todos! Por favor, não se esqueçam de rezar por mim. Feliz ano novo! Bom almoço e até amanhã.


SANTA MISSA DA SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Os Magos estão de viagem para Belém. E a sua peregrinação interpela-nos também a nós, chamados a caminhar para Jesus, porque é Ele a estrela polar que ilumina os céus da vida e orienta os passos para a verdadeira alegria. Mas, qual foi o ponto de partida da peregrinação dos Magos ao encontro de Jesus? O que é que levou estes homens do Oriente a porem-se em viagem?

Tinham ótimas desculpas para não partir: eram sábios e astrólogos, tinham fama e riqueza; de posse duma tal segurança cultural, social e econômica, podiam acomodar-se no que tinham e sabiam, ficando tranquilos. Mas não; deixam-se inquietar por uma pergunta e um sinal: “Onde está Aquele que nasceu? Vimos despontar a sua estrela” (Mt 2, 2). O seu coração não se deixa amortecer na toca da apatia, mas está sedento de luz; não se arrasta pesadamente na preguiça, mas está abrasado pela nostalgia de novos horizontes. Os seus olhos não estão voltados para a terra, mas são janelas abertas para o céu. Como afirmou Bento XVI, eram “pessoas de coração inquieto (...); homens à espera, que não se contentavam com seus rendimentos assegurados e com uma posição social (...); eram indagadores de Deus” (Homilia, 06/I/2013).

Mas esta saudável inquietação, que os levou a peregrinar, donde nasce? Nasce do desejo. Eis o seu segredo interior: saber desejar. Meditemos nisto. Desejar significa manter vivo o fogo que arde dentro de nós e nos impele a buscar mais além do imediato, mais além das coisas visíveis. Desejar é acolher a vida como um mistério que nos ultrapassa, como uma fresta sempre aberta que nos convida a olhar além, porque a vida não é “toda aqui”, é também “em outro lugar”. É como uma tela em branco que precisa ser colorida. Um grande pintor, Van Gogh, escreveu que a necessidade de Deus o impelia a sair de noite para pintar as estrelas (cf. Carta a Theo, 09/V/1889). Isto deve-se ao fato de Deus nos ter feito assim: empapados de desejo; orientados, como os Magos, para as estrelas. Podemos dizer, sem exagerar, que nós somos aquilo que desejamos. Porque são os desejos que ampliam o nosso olhar e impelem a vida mais além: além das barreiras do hábito, além de uma vida limitada ao consumo, além de uma fé repetitiva e cansada, além do medo de arriscar, de nos empenharmos pelos outros e pelo bem. “A nossa vida – dizia Santo Agostinho – é uma ginástica do desejo” (Tratados sobre a primeira Carta de João, IV, 6).

Irmãos e irmãs, como no caso dos Magos, também a nossa viagem da vida e o nosso caminho da fé têm necessidade de desejo, de impulso interior. Às vezes vivemos um espírito de “estacionamento”, vivemos estacionados, sem este ímpeto do desejo que nos impele para diante. Será bom perguntar-nos: a que ponto estamos nós na viagem da fé? Não estaremos já há bastante tempo bloqueados, estacionados numa religião convencional, exterior, formal, que deixou de aquecer o coração e já não muda a vida? As nossas palavras e ritos despertam no coração das pessoas o desejo de caminhar ao encontro de Deus ou são “língua morta”, que fala apenas de si mesma e a si mesma? É triste quando uma comunidade de cristãos já não tem desejos, arrastando-se, cansada, na gestão das coisas, em vez de se deixar levar por Jesus, pela alegria explosiva e desinquietadora do Evangelho. É triste quando um sacerdote fechou a porta do desejo; é triste cair no funcionalismo clerical! É muito triste...

Na nossa vida e nas nossas sociedades, a crise da fé tem a ver também com o desaparecimento do desejo de Deus. Tem a ver com a sonolência do espírito, com o hábito de nos contentarmos em viver o dia a dia, sem nos interrogarmos acerca daquilo que Deus quer de nós. Debruçamo-nos demasiado sobre os mapas da terra, e esquecemo-nos de erguer o olhar para o céu; estamos empanturrados com muitas coisas, mas desprovidos da nostalgia do que nos falta. Nostalgia de Deus. Fixamo-nos nas necessidades, no que havemos de comer e vestir (cf. Mt 6, 25), deixando dissipar-se o anseio por aquilo que o ultrapassa. E deparamo-nos com a bulimia de comunidades que têm tudo e muitas vezes já nada sentem no coração. Pessoas fechadas, comunidades fechadas, bispos fechados, padres fechados, consagrados fechados. Porque a falta de desejo leva à tristeza, à indiferença. Comunidades tristes, padres tristes, bispos tristes.

Com os olhos pousados sobretudo em nós mesmos, perguntemo-nos: como está a viagem da minha fé? É uma pergunta que podemos nos colocar hoje, cada um de nós. Como está a viagem da minha fé? Está estacionada ou está em caminho? A fé, para partir uma vez e outra, precisa ser deflagrada pelo detonador do desejo, colocar-se em jogo na aventura de uma relação sentida e vivaz com Deus. Mas o meu coração vive ainda animado pelo desejo de Deus? Ou deixo que o hábito e as decepções o apaguem? Hoje, irmãos e irmãs, é o dia bom para nos colocarmos estas perguntas. Hoje é o dia bom para voltar a alimentar o desejo. E como fazer? Vamos à “escola de desejo”, vamos ter com os Magos. Ensinar-nos-ão, na sua escola do desejo. Prestemos atenção asos passos que dão e tiremos algumas lições.

Em primeiro lugar, partem quando aparece a estrela: ensinam-nos que é preciso voltar a partir sempre cada dia, tanto na vida como na fé, porque a fé não é uma armadura que imobiliza, mas uma viagem fascinante, um movimento contínuo e desinquietador, sempre à procura de Deus, sempre com o discernimento, naquele caminho.

Depois, os Magos em Jerusalém perguntam: perguntam onde está o Menino. Ensinam-nos que precisamos de interrogativos, de ouvir com atenção as perguntas do coração, da consciência; porque frequentemente é assim que fala Deus, que dirige a nós mais com perguntas do que com respostas. Devemos aprender bem isto: Deus dirige-Se a nós mais com perguntas do que com respostas. Mas deixemo-nos desinquietar pelos interrogativos das crianças, pelas dúvidas, as esperanças e os desejos das pessoas do nosso tempo. A estrada é deixar-se questionar.

Além disso os Magos desafiam Herodes. Ensinam-nos que temos necessidade de uma fé corajosa, que não tenha medo de desafiar as lógicas obscuras do poder, tornando-se semente de justiça e fraternidade numa sociedade onde, ainda hoje, muitos “herodes” semeiam morte e massacram pobres e inocentes, na indiferença da multidão.

Por fim, os Magos regressam ”por outro caminho” (Mt 2, 12): provocam-nos a percorrer estradas novas. É a criatividade do Espírito, que faz sempre coisas novas. É também, neste momento, uma das tarefas do Sínodo que nós estamos realizando: caminhar numa escuta conjunta, para que o Espírito nos sugira caminhos novos, estradas para levar o Evangelho ao coração de quem é indiferente, vive alheado, de quem perdeu a esperança mas procura aquilo que sentiram os Magos: uma “imensa alegria” (Mt 2, 10). Sair para mais além, caminhar para a frente.

No ponto culminante da viagem dos Magos, porém, há um momento crucial: tendo chegado ao destino, viram o Menino e “prostrando-se adoraram-No” (2, 11). Adoram. Lembremo-nos disto: a viagem da fé só encontra ímpeto e cumprimento na presença de Deus. Só se recuperarmos o gosto da adoração é que se renova o desejo. O desejo leva-te à adoração e a adoração renova em ti o desejo. Porque o desejo de Deus cresce apenas permanecendo diante de Deus. Porque só Jesus cura os desejos. De quê? Cura-os da ditadura das necessidades. Com efeito, o coração adoece quando os desejos coincidem apenas com as necessidades; ao passo que Deus eleva os desejos e purifica-os; cura-os, sanando-os do egoísmo e abrindo-nos ao amor por Ele e pelos irmãos. Por isso, não esqueçamos a Adoração, a oração de adoração que é pouco comum entre nós: adorar, em silêncio. Por isso não esqueçamos a adoração, por favor.

E procedendo assim, cada dia, como os Magos, teremos a certeza de que, mesmo nas noites mais escuras, brilha uma estrela. É a estrela do Senhor, que vem cuidar da nossa frágil humanidade. Ponhamo-nos a caminho rumo a Ele. Não demos à apatia e à resignação a força de nos cravar na tristeza de uma vida medíocre. Abramo-nos à inquietude do Espírito, corações inquietos. O mundo espera dos cristãos um renovado ímpeto para o Céu. Como os Magos, levantemos a cabeça, ouçamos o desejo do coração, sigamos a estrela que Deus faz brilhar sobre nós. E como indagadores inquietos, permaneçamos abertos às surpresas de Deus. Irmãos e irmãs, sonhemos, procuremos, adoremos.

Bianca Fraccalvieri - Vatican News