A leitura nasceu quando a humanidade começou a anotar as máximas dos seus sábios, os códigos que recolhiam os costumes e as leis, os relatos dos acontecimentos nos quais cada povo havia se forjado…Até então a cultura – cultivo da alma – só se transmitia por meio da oralidade: unicamente o que os indivíduos retinham na memória era passado às gerações seguintes, como um valioso mapa do mundo, uma tocha em meio à obscuridade.
Hoje, ouvir continua sendo fundamental na nossa vida: dirige o nosso primeiro acesso à linguagem, lhe dá forma, e, sobretudo, faz possível o diálogo, que é uma das fibras do tecido da vida. Ao mesmo tempo, para escutar e dialogar de verdade, torna-se necessário ler. A leitura ocupa por isso um lugar insubstituível na cultura: a memória da humanidade é hoje também, em grande medida, palavra escrita, letra que espera o diálogo com um leitor.
Prestar atenção
Escutar e ler são hábitos essenciais para ampliar nosso horizonte, em si mesmo limitado, para amadurecer perspectivas, compreender a complexidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade do real… Supõem, um e outro, a capacidade de prestar atenção. Os meios de comunicação, as redes sociais e as companhias telefônicas disputam precisamente a nossa atenção como o seu capital mais valioso. É fácil que a abundância de chamados a fragmentem, como acontece a alguém que está sendo constantemente interrompido. Essa atenção fragmentada não deixa de ser útil para os benefícios do Big Data, para os gigantes da comunicação, mas talvez nos empobreça, porque tende a lançar-nos para fora e assim pode nos deixar sem dentro. Diante dessa dinâmica de dispersão, a capacidade de prestar atenção a uma coisa, a um livro, a uma conversa, tem em si um grande potencial.
Ser verdadeiramente capaz de ler é mais que saber dar som às letras: é ser capaz de recolher-se, de habitar dentro de si mesmo, de ler as situações e as pessoas.
A verdadeira atenção é muito mais do que um esforço ocasional para reter dados: permite que a realidade, as pessoas, os acontecimentos… atinjam-nos, nos surpreendam, e que as relações que nascem com esses encontros se mantenham vivas dentro de nós. A escuta e a leitura, como formas de atenção, fazem possível a vida espiritual. E, por isso, humanizam o mundo, e contribuem para reconciliá-lo com Deus. Quem lê e escuta aprofunda na experiência do que vive, graças a um processo de interiorização, análogo ao que aconteceu quando Natã, por meio de uma parábola, levou o rei Davi a fazer penitência[1].
Legere originalmente significa recolher, reunir. Ser verdadeiramente capaz de ler é mais que saber dar som às letras: é ser capaz de recolher-se, de habitar dentro de si mesmo, de ler as situações e as pessoas. A cultura humana, que é um grande diálogo, se nutre dessas aptidões. E, no entanto, inclusive para uma pessoa com uma cultura média, a aceleração da vida intensifica o risco de não ler, de que, arrastados pela multiplicação contemporânea das fontes de atenção, as semanas e os meses passem sem que encontremos tempo para nos sentar com um livro nas mãos. Nosso mapa do mundo, então, podendo ter três dimensões, se limitaria a umas linhas precárias. E nosso diálogo com os outros, em vez de perceber a grande escala de matizes da realidade pessoal e social, ficaria em quatro cores elementares, com os quais seria difícil contribuir, ajudar a melhorar o mundo.
São Josemaria sempre animou os que se conviviam com ela a ter um olhar amplo e a cultivá-lo, porque um cristão é uma pessoa capaz de assombrar-se, disposta a pensar, a rever as próprias opiniões, para levar o Evangelho a todos os lugares. A leitura bem escolhida – non legere, sed eligere, diz um adágio clássico – é uma das chaves mestras dessa atividade apostólica. “Para ti, que desejas formar-te numa mentalidade católica, universal, transcrevo algumas características: – amplidão de horizontes, e um aprofundamento enérgico no que é permanentemente vivo na ortodoxia católica; – empenho reto e sadio – nunca frivolidade – em renovar as doutrinas típicas do pensamento tradicional, na filosofia e na interpretação da história...; – uma cuidadosa atenção às orientações da ciência e do pensamento contemporâneos; – e uma atitude positiva e aberta ante a transformação atual das estruturas sociais e das formas de vida”[2].
O hábito de ler
Pedagogos e especialistas em educação de jovens ressaltam que é difícil alcançar hábitos de leitura se não foram adquiridos na infância. Também se constata com frequência diferenças significativas entre as crianças que leem e as que não o fazem quase nunca: os que leem costumam ter maior facilidade para se expressar, maior capacidade compreensiva, um melhor conhecimento próprio. Entretanto, aqueles que se focam em outras formas de entretenimento costumam ter mais dificuldades para amadurecer. Talvez não o uso, mas o abuso dos videogames, por exemplo, faz com que o jovem seja, às vezes, menos imaginativo: seu mundo interior se desertifica, e se encontra dependente dos estímulos, excessivamente básicos, dessas formas de diversão. Contudo, é óbvio que não se consegue fomentar a leitura à base da demonização da televisão ou dos videogames, ou apresentando-a como um dever moral. Em vez disso, é necessário atingir o fundo da alma, despertar a fascinação pelas histórias, a beleza, a centelha da inteligência e da sensibilidade.
Não se consegue fomentar a leitura à base da demonização da televisão ou dos videogames, é necessário atingir o fundo da alma, despertar a fascinação pelas histórias, a beleza, a centelha da inteligência e da sensibilidade.
É bom descobrir em cada família quem pode exercer esse papel: o pai, a mãe, um irmão mais velho, um avô… e apoiar-se também no trabalho de professores, monitores do clube juvenil, etc. Quando se dá atenção à sensibilidade do jovem leitor, ele mesmo descobre o seu itinerário, que inclui os grandes marcos da literatura universal – cada um no seu momento –, e outros títulos que corresponderão à sua personalidade. Esta tarefa, que não requer muito tempo, mas sim um pouco de cabeça e constância, é decisiva. Às vezes, será preciso ajudá-los – também com o exemplo – a encontrar momentos para ler, para que experimentem o prazer da leitura, sem cair no egoísmo de preferi-la sempre ao diálogo e à convivência. Provavelmente muitos recordamos os primeiros livros que nos presentearam ou que lemos, as histórias que nos contavam na infância, as edições de obras clássicas ou textos de história sagrada adaptados para crianças…. Talvez ficou gravada em nós a personalidade daquele professor que nos revelou a poesia, ou que contagiou o seu entusiasmo por um determinado autor.
Quando se começa o trabalho profissional e a vida se acelera, mesmo quem percebe os benefícios da leitura talvez descubra que o tempo que pode dedicar-lhe é muito breve. Daí a importância de saber defender um momento para ler: talvez não seja muito o que se consiga a cada dia, mas é questão de prioridades, de ordem, de tirar minutos de atividades menos importantes. Em parte, “não é tempo o que nos falta, mas sim concentração”[3]. Ao mesmo tempo, uma pessoa desfruta quando sabe aproveitar situações recorrentes: viagens de trem, avião, transportes públicos, esperas e, é claro, momentos de descanso. Quem traz consigo sempre um livro – coisa que agora se torna fácil de conseguir com os leitores digitais, tablets, etc. – pode aproveitar minutos preciosos, às vezes, imprevistos. Mesmo que o soma de poucos momentos pode parecer uma irrigação gota a gota, passam os dias e os meses, e cresce a vegetação.
As tecnologias digitais também facilitaram a proliferação de audiolivros e áudios de artigos de revistas, e inclusive a leitura automática de quase qualquer texto: recursos muito úteis para quem tem de passar, por exemplo, muitas horas ao volante, ou caminhando, ou realizando trabalhos domésticos. Os audiolivros, sobretudo quando se trata de boas gravações, mostram que ler é outra forma de escutar, e nos remete de certa forma àquela época na qual ao redor de um leitor se reunia um grupo de ouvintes que gozavam de um dom de que careciam: saber ler!
Diante da maré de livros
A cada ano se editam milhares de livros no mundo, sem contar a prodigiosa literatura científica, cada vez mais especializada. Além disso, a internet dá acesso, muitas vezes gratuitamente, à infinidade de meios de comunicação e serviços de informação e de opinião. Diante de tantas possibilidades, e com a evidente limitação de tempo de cada um, torna-se mais atual do que nunca essa consideração que São João Paulo II fazia, retrospectivamente: “Sempre tive este dilema: o que devo ler? Buscava escolher aquilo que fosse mais essencial. A produção editorial é tão vasta! Nem todos os livros têm o mesmo valor e utilidade. É preciso saber escolher e pedir conselho a respeito do que merece ser lido”[4].
A leitura pode ser um bom entretenimento para momentos de descanso: há uma abundância de livros nesse sentido. Certamente, outra coisa é a leitura – talvez mais serena e espaçada – de obras que elevam o espírito. Existe uma longa tradição de livros que educam e ao mesmo tempo divertem, mas mesmo assim pode acontecer que uma pessoa dedique quase exclusivamente seu tempo de leitura aos livros de evasão. Não se trata, portanto, da materialidade de “ler muito”, mas de ler – de acordo com a capacidade e as circunstâncias de cada um – também obras de qualidade filosófica, teológica, literária, histórica, científica, artística, etc., para que a nossa visão do mundo enriqueça. São tantas as histórias, os enfoques, os campos do saber que podem fazer-nos crescer por dentro que, com um pouco de paciência, sempre se pode encontrar um livro de qualidade adaptado a cada um.
Na hora de escolher, é importante ter em conta que várias empresas de comunicação controlam negócios editoriais e, logicamente, ao informar, dão prioridade às publicações do seu grupo, em detrimento de outros livros talvez mais valiosos, mas editados por empresas menores ou com menos presença na imprensa, no rádio, na televisão. Por isso convém evitar a valorização exagerada da última publicação, ou do mais vendido, como se isso fosse garantia de qualidade. “Há livros dos quais a capa e a contracapa são, de longe, o melhor”[5], escrevia, ironicamente, Charles Dickens. Querer estar sempre na última poderia fazer com que se nos escapassem outros títulos mais divertidos, inteligentes ou criativos, esquecidos nas estantes das bibliotecas ou de nossa casa. Se não se dispõe de muito tempo e existem tantos livros bons, vale a pena escolher cuidadosamente o que se lê e não se deixar levar apenas por simples anúncios publicitários.
Quando alguém assistiu a um filme medíocre, pode lamentar-se por ter perdido duas horas da sua vida. No entanto, quando chegamos ao final de um livro talvez bom, mas que nunca chegou a interessar-nos de verdade, podemos ter perdido muito mais tempo. Se um livro não consegue conquistar-nos, e não há motivos especiais para lê-lo, talvez não valha a pena prosseguir com a leitura: esperam-nos muitos outros livros que talvez nos enriquecerão mais. O zapping com os livros pode esconder impaciência ou falta de firmeza, mas, não poucas vezes, permite encontrar títulos que fazem desfrutar e crescer a cada um.
“Há livros dos quais a capa e a contracapa são, de longe, o melhor”(Charles Dickens)
O leitor que se aproxima de um livro não assina nenhum contrato com o autor, que o proíba de ler na diagonal, ou deva se comprometer a chegar até o final do livro. Há quem tenha o costume de abrir os livros em uma página determinada: se essa página lhe interessa, lê o livro, se não, o deixa. É bom, sem dúvida, dar ao autor a oportunidade de ganhar nossa atenção, mas, por outro lado, por que dedicar tempo a um que não entendemos? É claro que, como pode acontecer com os grandes clássicos, a falta de sintonia às vezes se deve a uma carência na formação literária. Talvez uma obra deverá descansar um tempo na prateleira: poderemos retomar após alguns meses ou anos, ou encontrar outro bom livro no caminho. De qualquer forma, uma vida inteira não seria suficiente para ler os livros que hoje se consideram como clássicos. Também se aprende a escolher entre eles, como as amizades: de Aristóteles a Shakespeare, de Cícero a Molière, Dostoievski a Chesterton. “É qualquer livro discreto/que se cansa, de falar deixa/um amigo que aconselha/e repreende em segredo”[6].
Texto: Luis Ramoneda - Carlos Ayxelà
[1] Cfr. 2 Sam 12, 1-19.
[2] São Josemaria, Sulco, 428.
[3] A. Zagajewski, Na Beleza Alheia, Valencia, Pre-textos 2003, 165.
[4] São João Paulo II, Levantai-vos! Vamos! 2004, 89.
[5] C. Dickens, Oliver Twist.
[6] Lope de Vega, A viúva valenciana, Castalia, Barcelona 2001, 104.