- A fraternidade, ideal cristão.
- Manifestações na vida da Igreja e da sociedade.
- O espírito de família no Opus Dei.
A caridade, o amor que Jesus Cristo ensina, é caridade universal: todos nós, homens, somos filhos do nosso Pai Deus, irmãos de Jesus Cristo. Nasce daí uma consciência de fraternidade universal, fraternidade que se torna mais íntima entre aqueles que receberam o Batismo, e por este sacramento, tornaram-se filhos de Deus, membros de Cristo e templos do Espírito Santo.
“A paternidade de Deus é mais real do que a paternidade humana, porque nós, em última instância, é d'Ele que temos o ser; porque Ele pensou em nós e nos quis eternamente; porque Ele nos oferece a real, a eterna casa paterna. E se a paternidade terrena separa, a celeste une: céu significa, portanto, aquela outra elevação de Deus, de onde todos nós viemos e para onde todos nós devemos ir. A paternidade "nos céus" remete-nos para aquele "nós" maior, que ultrapassa todas as fronteiras, abate todos os muros e cria a paz”[1].
O vínculo da paternidade com Deus gera o da fraternidade entre todos os homens, especialmente entre os batizados. Em si mesma a fraternidade é a união que se dá entre irmãos e que implica, além do laço de sangue, um forte vínculo de carinho, respeito e ajuda, e existe uma fraternidade espiritual entre todos os batizados. “A unidade do gênero humano, a comunhão fraterna além de toda divisão, nasce da palavra de Deus – Amor que nos convoca”[2]. Por isso São Josemaria diz: “e, ao reconhecermo-nos parte da Igreja e convidados a sentir-nos irmãos na fé, descobrimos mais profundamente a fraternidade que nos une a toda a humanidade: porque a Igreja foi enviada por Cristo a todos os homens e a todos os povos” (É Cristo que Passa, 139).
A filiação divina é o fundamento da fraternidade dos filhos de Deus. São Josemaria explicava que o Senhor veio trazer a salvação a todos. “Não só aos ricos, nem só aos pobres! A todos os homens, a todos os irmãos! Pois irmãos somos todos em Jesus: filhos de Deus, irmãos de Cristo. Sua Mãe é nossa Mãe. Na terra, há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus. Todos devemos falar a mesma língua: a que o nosso Pai que está nos céus nos ensina” (É Cristo que Passa, 13).
1. A fraternidade, ideal cristão.
A fraternidade que o Evangelho proclama tem um fundamento que faz com que o vínculo entre os homens que dela deriva seja muito mais íntimo do que aquele que nasce de fato de possuir a mesma natureza humana, pois a união com Cristo situa-se em um plano superior. O amor de Deus pelos homens não tem fronteiras, abarca toda a humanidade; o anúncio da salvação em Cristo estende-se até os confins da terra. E tem como manifestações próprias a paz, a solidariedade, a compreensão e, como consequência, a alegria.
A universalidade da salvação oferecida por Jesus Cristo torna mais sólida a relação que os homens são chamados a ter com Deus e entre si, acrescentando a responsabilidade frente ao próximo em cada situação histórica concreta[3], de tal modo que não é possível amar o próximo como a si mesmo e perseverar nesta decisão de amor sem o esforço constante por conseguir o bem de todos e da cada um, porque somos todos verdadeiramente responsáveis por todos[4].
O Concílio Vaticano II afirma que “todos os povos formam uma comunidade, têm uma mesma origem, posto que Deus fez todo o gênero humano habitar sobre a face da terra (cfr At. 17, 26), e têm também um fim último, que é Deus, cuja providência, manifestação de bondade e desígnio de salvação, estende-se a todos”[5]. Este ideal de unidade da família humana é a mensagem que a Igreja leva a todos os homens, para conseguir uma sociedade mais humana que procure o bem comum e proporcione as condições necessárias para que todos os homens possam aperfeiçoar-se e alcançar a sua plenitude.
2. Manifestações na vida da Igreja e da sociedade.
Quando perguntam a Jesus Cristo qual é o primeiro de todo os mandamentos, Ele responde claramente: “Amarás o Senhor teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com toda tua mente e com todas as tuas forças. O segundo é: Amarás o próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento maior que estes” (Mc 12, 29-31). São Paulo recorda as palavras do Senhor em sua própria vida e o manifesta em suas cartas. Escreve assim aos coríntios: “Quem é fraco, que eu não seja fraco? Quem sofre escândalo, que eu não me consuma de dor? ” (2 Cor 11, 29). E São João destaca que devemos amar-nos imitando Cristo: “Nisto sabemos o que é o amor: Jesus deu a vida por nós. Portanto, também nós devemos dar a vida pelos irmãos (1 Jo 3, 16).
O amor ao próximo é um preceito fundamental da vida cristã, que tem manifestações variadas tanto nas relações mútuas quanto na vida em sociedade. Cada pessoa é “outro eu” e isto gera um movimento de abertura do homem para com os outros, com o mesmo amor com o qual Jesus Cristo nos amou, buscando o bem de todos e comprometendo-se na edificação de uma vida social, econômica e política conforme o desígnio de Deus. Implica um coração misericordioso, acolhedor, que sabe compadecer-se da necessidade alheia. A misericórdia é um elemento indispensável para plasmar as relações mútuas dos homens no respeito e na concórdia; para criar o ambiente propício para a vida individual, familiar e social.
São Josemaria também ensinou sempre assim: “Jesus Cristo, que veio salvar todos os homens e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos – a ti e a mim – uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Ele ama a cada um de nós. Só desta maneira imitando – dentro da nossa rudeza pessoal – os modos divinos, conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais alto, inteiramente novo” (Amigos de Deus, 225). Este ensinamento, porém, não se limitou à sua pregação, mas transmitiu-o com sua própria vida; queria que os católicos amassem e servissem a todos sem exceção, nunca se sentiu inimigo de ninguém e praticou uma caridade heroica no trato com os outros. “O cristão deve amar os outros, e respeitar, portanto, as opiniões contrárias às suas, e conviver com plena fraternidade com aqueles que pensam de outro modo” (Entrevistas, 67).
Na contemplação do Coração de Jesus Cristo, São Josemaria descobriu que a caridade sobrenatural não pode prescindir do carinho humano, eleva-o precisamente. “Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos como alguns, que conservar o coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não contaminá-lo com afetos humanos, então o resultado lógico será tornarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seríamos capazes de uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor humano” (É Cristo que Passa, 167). O carinho que São Josemaria ensinou a viver é esse amor que mana do Coração de Jesus Cristo; amor sobrenatural, e por isso mesmo concreto, afetivo e efetivo, que leva a atender os outros em suas necessidades e inclusive a dar a vida por eles.
Saber amar não é questão de temperamento, nem de cultura, mas de virtude, da virtude sobrenatural da caridade e das virtudes humanas. Um carinho que, sendo sobrenatural, é também, muito humano, profundo, sólido, superior à amabilidade ou ao protocolo. A fraternidade implica, por isso, em primeiro lugar, ajudar os outros a crescerem como pessoas e a progredirem – respeitando sempre a sua liberdade – no caminho da santidade: oração, mortificação, bom exemplo, carinho. E muitas outras manifestações humanas, cheias de delicadeza e caridade sobrenatural. Carinho abnegado, sobrenatural e humano, gozoso e atento, que chega ao coração e torna a existência mais atraente, tanto nas situações comuns como nos momentos difíceis. Em Caminho ficaram plasmados alguns dos ensinamentos de São Josemaria neste campo; evitar críticas ou murmurações, não admitir um mau pensamento de ninguém, a ajuda que passa despercebida, a fortaleza que a fraternidade vivida com sentido sobrenatural outorga (cfr. Caminho, 440, 442, 444, 460, 461).
São Josemaria animou a todos a participarem ativamente da sociedade, a serem artífices do mundo em que vivemos. No dia 8 de outubro de 1967, celebrou a santa Missa no Campus da Universidade de Navarra; na homilia, depois intitulada Amar o mundo apaixonadamente, dirigiu-se a todos os presentes dizendo: ”ter ouvido a Palavra de Deus já vos situa no âmbito que estas palavras que agora vos dirijo querem mover-se: palavras de sacerdote, pronunciadas diante de uma grande família de filhos de Deus em sua Santa Igreja. (...) Não duvideis, meus filhos: todo modo de evasão das honestas realidades diárias é para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à vontade de Deus. Deveis compreender, pelo contrário, agora com uma nova clareza, que Deus vos chama a servi-lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio da família e em todo o imenso panorama do trabalho, Deus nos espera cada dia. Compreendei bem: há um algo santo, divino, escondido nas situações mais comuns, que cabe a cada um de vós descobrir” (Entrevistas, 113-114).
A justiça, a solidariedade, o bem comum, o respeito pela pessoa, são princípios que devem reger a vida na sociedade. Sob o impulso de São Josemaria, surgiram atividades formativas dirigidas a todas as pessoas, desde colégios e universidades até centros de formação profissional na área de serviços, escolas técnicas, residências e outras iniciativas. Ao longo dos anos animou os membros da Obra a promoverem, junto com outras pessoas, atividades que resolvessem necessidades sociais autênticas, de atendimento aos mais necessitados, aos que têm menos oportunidades, impulsionando a empreender todo tipo de trabalhos de promoção humana e espiritual.
3. O espírito de família no Opus Dei.
Dentro da grande família humana, a Igreja é família, comunidade unida pela fé e pela caridade, sacramento universal de salvação para todo o gênero humano (cfr. LG, 48). E dentro da Igreja, a Obra - “pequena parte” da Igreja como costumava dizer São Josemaria – é também família, unida por laços sobrenaturais e fundamentada na caridade de Cristo[6].
A fraternidade na Obra apoia-se num profundo sentido da filiação divina em Cristo. Assim o viveram desde o princípio os primeiros que seguiram o fundador, chamando-o de Padre e sentindo-se irmãos entre si. Com os anos, São Josemaria dizia que o Opus Dei era uma realidade de unidade e fraternidade[7].
O modelo do espírito de família do Opus Dei é a Sagrada Família de Nazaré. Descobre-se lá o amor que supera todo egoísmo, o espírito de serviço, a entrega sem condições, o trato amável, a preocupação por todas as almas. Assim também a Obra é família, com carinho humano e sobrenatural, em que cada um encontra novas forças e alento para perseverar na luta e dar a vida com Cristo. Todos os membros da Obra, numerários, supernumerários e adscritos, homens e mulheres, fazem parte deste lar. Todos são chamados a ter dentro da alma a caridade de Cristo, para comunicá-la ao ambiente em que cada um desenvolva a própria vida familiar, profissional e social. Não tem nada a ver com a materialidade de viver num lugar; trata-se de um espírito que informa a vida de cada um com as manifestações oportunas em cada caso.
No modo de viver o espírito de família tiveram especial importância o pai, a mãe e a irmã de São Josemaria aos quais todos, na Obra referem-se habitualmente como os Avós e Tia Carmem. A Avó e Tia Carmem ocuparam-se do início da administração doméstica dos Centros da Obra, e souberam transmitir o calor de lar que havia caracterizado a vida da família Escrivá. Mons. Álvaro del Portillo, primeiro sucessor de São Josemaria, relata: “Nós íamos aprendendo a reconhecê-lo no bom gosto de tantos detalhes, na delicadeza no trato mútuo, no cuidado das coisas materiais da casa, que implicam – este é o aspecto mais importante – uma constante preocupação pelos outros e um espírito de serviço feito de vigilância e abnegação. Tínhamos contemplado tudo isso na pessoa do Padre e víamo-lo confirmado na Avó e na tia Carmen. Era natural que procurássemos entesourá-lo e foi assim, com uma simplicidade espontânea, que prenderam em nós os costumes e tradições familiares que hoje se continuam a viver nos Centros da Obra: fotografias ou retratos de família, que dão um tom mais íntimo à casa; uma sobremesa simples de doce no dia de um aniversário; umas flores postas com carinho e bom gosto diante de uma imagem de Nossa Senhora ou em algum recanto da casa, etc.
O ar de família característico do Opus Dei deve-se ao seu Fundador. Mas se ele conseguiu plasmar esse estilo de vida nos nossos Centros, não foi só em virtude do carisma fundacional, nas também pela educação que tinha recebido no lar paterno. E é justo ressaltar que, neste aspecto, a sua mãe e a sua irmã souberam secundar o Padre de modo muito eficaz”[8].
Quando, em 1964, em um Centro feminino, alguém lhe perguntou por que o modo de vida na Obra é de “vida em família”, São Josemaria respondeu sorrindo: “Tu, como professora que és, deves saber explicá-lo perfeitamente aos outros... O que acontece é que gostas de ouvi-lo de mim, não é verdade? Tu sabes que chamamos “vida em família” à convivência porque nas nossas casas existe o mesmo ambiente que há nas famílias cristãs. As nossas casas não são colégios, nem conventos, nem quartéis; são lares onde vivem pessoas que têm a mesma filiação; chamamos Pai ao mesmo Deus e Mãe à mesma Mãe de Deus. E além disso, temos um carinho verdadeiro uns pelos outros (...). Temos uns pelos outros um carinho verdadeiro! Não quero que ninguém se sinta só na Obra”[9]. Ele mesmo foi à frente com o seu exemplo, com a sua oração e com o seu carinho.
A fraternidade que se vive no Opus Dei é simplesmente a fraternidade cristã com a consciência de viver o mesmo espírito e participar de um mesmo projeto apostólico. Ela leva, pois, a compartilhar entusiasmos e anseios; pesares e alegrias; a respeitar a liberdade de todos nas questões profissionais, sociais e políticas, a não fazer acepção de pessoas, a querer bem a todos, adiantando-se para servir aos outros, procurando, como ensinava São Josemaria com uma imagem plástica, “ser tapete para que os outros pisem no macio” (Forja, 562). No meio das dificuldades da Guerra Civil espanhola ele afirmava que não o preocupavam as possíveis dificuldades exteriores, mas atribuía grande importância à possível falta de filiação e de fraternidade, uma vez que isso poderia romper a unidade da Obra (cfr. Caminho,955).
Um meio de formação no Opus Dei, que mostra a verdadeira fraternidade sobrenatural e o carinho, é a correção fraterna. Ela foi sempre ensinada por São Josemaria: “A prática da correção fraterna – que tem tradição evangélica – é uma manifestação de carinho sobrenatural e de confiança. Agradece-a quando a receberes, e não deixes de praticá-la com quem convives” (Forja, 566; cfr. Mt. 18, 15-18). São Josemaria aconselhava assim a um filho seu: “Tendes que estar atentos às coisas de Deus, às coisas da Obra e às coisas dos vossos irmãos... No dia em que viverdes como estranhos ou indiferentes, tereis matado o Opus Dei! Procura uma ocasião oportuna, fala com esse teu irmão e, com todo o afeto mas com toda a clareza, faz-lhe a correção fraterna sobre esse ponto”[10].
Forma parte da fraternidade a compreensão e o respeito mútuo, a atenção a quem se percebe que está sofrendo, o cuidado com os doentes, sobre os quais, em diferentes ocasiões São Josemaria comentava que eram o ”tesouro da Obra”, que ajudassem oferecendo as doenças e incomodidades e tudo o que a doença traz consigo (cfr. Caminho, 98).
E também, ocupando um lugar muito importante, a naturalidade e a simplicidade no modo de se relacionar. Neste contexto, situa-se o costume que tem raízes na experiência cotidiana das famílias e no relacionamento com os amigos e também na personalidade de São Josemaria: as tertúlias. Desde os primeiros tempos ele gostava de reunir-se em encontros informais com os jovens que conhecia, dando origem a conversas nas quais contavam os acontecimentos e falavam de diversos temas, passando com espontaneidade do humano ao divino. Recomendou posteriormente que em todos os Centros do Opus Dei, e nas convivências e cursos de formação para fiéis da Obra, houvesse, normalmente depois das refeições, um tempo de reunião ou tertúlia.
Aplicou também esse aspecto familiar e simples a suas viagens de catequese, que se realizaram na Europa e na América, de 1972 a 1975. Foram reuniões com milhares de pessoas, mas não tinham um tom formal, e sim de diálogo. Costumavam começar com palavras pronunciadas por ele (dez ou quinze minutos) e logo passavam às intervenções e perguntas. Embora os assistentes fossem centenas, tinham sabor de encontro de família, de tertúlia, como o próprio São Josemaria gostava de frisar.
[1] RATZINGER, 2007, p. 176.
[2] Caritas in veritate, 34.
[3] cfr. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 40.
[4] cfr. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 43
[5] Nostra aetate, 1.
[6] Cfr. RODRÍGUEZ, “O Opus Dei como realidade eclesiológica”, em O Opus Dei na Igreja, p.22
[7] cfr. ibidem
[8] DEL PORTILLO, 1995.
[9] URBANO, 1995.
[10] URBANO, 1995.