Hoje em dia nos vemos facilmente induzidos a pensar que só existe o que podemos experimentar, que o mundo verdadeiramente real é constituído pelo que se vê e se toca, seja diretamente ou virtualmente, através da tela de um dispositivo. Ao mesmo tempo, percebemos que é muito difícil que algumas coisas que acontecem neste mundo se devam unicamente a causas visíveis e experimentais, dada sua entidade fora do comum. Ou seja, acontecem coisas visíveis e tangíveis que têm sua origem em algo que não se vê e nem se toca. E isso acontece tanto para coisas boas quanto para coisas ruins. No primeiro caso, comentamos: isso não é humano, é divino, é bom demais para ser humano (um milagre, por exemplo); no outro caso, dizemos: isso é diabólico, é muito ruim para se dever exclusivamente ao poder de um indivíduo (um assassinato brutal, por exemplo). Em ambos os casos, pensamos que sem uma força sobre-humana determinadas ações não poderiam acontecer.
Seres puramente espirituais
A crença na existência de forças invisíveis sempre supôs, desde antigamente, um desafio para a razão humana. Em nossa sociedade avançada, quando parece que se trata de uma crença destinada a desaparecer por seu caráter mítico e simbólico, misteriosamente reaparece na cultura de diversos modos (no cinema ou literatura), e inclusive nos testemunhos de pessoas que narram fatos portentosos que atribuem a seres que estão além da nossa percepção sensível (que pode se aplicar tanto à oração de intercessão como às práticas esotéricas ou ao espiritismo).
Um conhecido exegeta do século passado afirmava, na sua tentativa de desmitificar o Novo Testamento para torná-lo “mais razoável” para o homem contemporâneo, que não podia acender a luz ou escutar o rádio e continuar acreditando no mundo dos anjos e dos demônios. O que será que ele diria, se tivesse conhecido a internet, as redes sociais e os smartphones? O avanço tecnológico, que nos permite dominar cada vez mais os nossos limites espaço-temporais, é algo que nos afasta ou quem sabe nos aproxima do mundo espiritual? O que a fé cristã diz sobre tudo isso?
o Novo Testamento os mostra acompanhando os momentos mais importantes da vida de Cristo e da Igreja nascente
Diante dessa questão, a primeira coisa é dizer com clareza que é necessário afirmar a existência de Deus para explicar a existência do mundo, já que Ele o criou, mas não se pode dizer o mesmo de outros seres, mesmo que sejam superiores a nós. Baseado em que só Deus é Criador, o cristianismo descartou desde o princípio a ideia de divindades intermediárias como se Deus, que é puro espírito, não pudesse ter nenhuma relação com o que está distante dele, ou seja, o material.
De qualquer forma, embora só Deus seja necessário, o cristianismo, que compartilhava elementos de outras cosmovisões, conseguiu, pouco a pouco, encontrar uma explicação racional para a existência dos seres puramente espirituais. Neste ponto, a reflexão de São Tomás de Aquino foi de grande ajuda, pois na época patrística se suscitaram numerosas controvérsias. Graças à sua metafísica do ser, o Aquinate conseguiu explicar que é possível que existam seres criados puramente espirituais[1]. Alguém poderia pensar que isso acontece plenamente na alma humana, mas o homem tem uma natureza que também é corpórea. Assim como na criação de Deus há seres puramente materiais, e outros compostos de matéria e espírito, é muito conveniente, segundo o princípio da ordem do universo e da perfeição da própria criação, que haja seres puramente espirituais[2].
A mediação para chegar a Deus
Na realidade, estas reflexões têm o seu ponto de partida e de chegada na narração bíblica da História da Salvação, na qual aparecem junto a Deus, único Senhor e Criador, outros seres cuja força e influência, positiva ou negativa, são percebidas neste mundo. Os anjos aparecem como “espíritos servidores” (Hb 1,14) e esses serviços podem ser resumidos em duas ações: cantar e voar[3]. Eles cantam, ou seja, louvam incessantemente a Deus, constituindo os coros celestiais aos que a liturgia da Igreja se une de muitos modos. Por isso não é de se estranhar que, quando se desvaloriza a dimensão litúrgico-sacramental da fé, a doutrina dos anjos fique de lado. Por outro lado, os anjos voam, ou seja, são enviados por Deus para cuidar dos homens, exercendo assim uma participação na providência salvífica de Deus. Assim, o Novo Testamento os mostra acompanhando os momentos mais importantes da vida de Cristo e da Igreja nascente. De maneira análoga, custodiam a vida de cada pessoa e instituição, por isso a tradição cristã fala da existência de um anjo da guarda[4]. Portanto, a visão cristã está caracterizada pela mediação: a grandeza do Criador se mostra precisamente em que seu projeto está pensado para se cumprir com a cooperação de suas criaturas livres. E, quanto mais elevadas, mais partícipes serão de seu governo sobre a criação. Nós também percebemos que às vezes é mais fácil fazer as coisas diretamente do que conseguir que outros as façam livremente, mas esta última possibilidade é sinal de maior perfeição, como mostra, por exemplo, a experiência de governo em uma família ou de vários tipos de instituições.
Por tudo isso se entende que os anjos, como seres pessoais e livres, tiveram, por assim dizer, a sua própria história, da qual a Bíblia nos fala de modo sucinto que alguns se rebelaram contra Deus para sempre[5]. Na realidade, a existência do diabo e dos seus aliados, afirmada pela Igreja desde o princípio e confirmada em nossos dias em diversas ocasiões pelo Papa Francisco[6], constitui a face oculta de uma mensagem de esperança: o mal que todos nós vemos no mundo, e não só o que é produzido pelos outros, mas também o que nós mesmos cometemos, é algo que nos supera, que em certo sentido provém de um princípio que está além (“não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”) e, ao mesmo tempo, que não é divino e, por tanto, não é originário, não é necessário. Como se sabe, os relatos de muitas tradições culturais tentam explicar a origem do bem e do mal que existe no mundo – e dentro de nós – e, para isso, recorrem a uma oposição originária de princípios contrários. Isto significaria que o mal é tão radical quanto o bem, que sempre existiu, existe e existirá por aí, e que, em suma, não pode ser sanado. Isto leva inexoravelmente a uma visão desesperada do ser humano[7].
só o bem é originário, enquanto que a existência do mal é o resultado do mau uso da liberdade das criaturas
O cristianismo diz, no entanto, que só o bem é originário, e que a existência do mal, que ninguém pode negar, foi resultado do mau uso da liberdade das criaturas, em primeiro lugar, das angelicais. Por isso sentimos com força o poder do mal no mundo e na história, de forma que às vezes parece invencível. O anúncio cristão, cheio de esperança, é a afirmação de que Deus colocou um remédio, que Ele mesmo assumiu esse mal em seu Filho, encarnado e morto numa cruz, para que todos aqueles que se unirem a Ele possam vencê-lo, associando-se ao triunfo pascal da sua ressurreição. Este triunfo, depois da Ascenção de Jesus Cristo aos céus, muitas vezes mostra-se pequeno e vulnerável na história, inclusive invisível, mas é real, cresce misteriosamente e só no fim se mostrará com todo o seu esplendor. O próprio Deus não deixa de oferecer manifestações visíveis do seu poder em sua providência salvífica na história, mediante os sacramentos, a efusão de múltiplas graças que atuam de modo mais ou menos escondido, mas real, na vida das pessoas, servindo-se da cooperação dos anjos, dos santos e de tantas pessoas.
Misericórdia e inferno
Se Deus é tão bom e misericordioso que toma a iniciativa para curar as suas criaturas, por que não faz a mesma coisa com os anjos caídos? Parece que a existência do inferno como castigo perpétuo para os demônios e todos aqueles homens que morrem afastados de Deus contradiz a noção de cura e sustento, que a Igreja ensina. Parece que o inferno implica eternizar precisamente o que a fé a cristã diz que não é eterno, mas que tem origem na história. Se o mal teve um início, supõe-se que também terá fim, para que ao final, como diz são Paulo, “Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). De fato, desde Orígenes, não faltaram dentro da Igreja em épocas diferentes, também em nossos dias, vozes que se levantaram, inspirando-se nessas palavras de são Paulo, para sugerir uma reconciliação universal no final dos tempos. Se Deus é misericordioso, como pode permitir que haja pessoas que sejam condenadas para sempre longe d’Ele?
No entanto, algo dentro de nós diz que a vida das pessoas, humanas ou angelicais, têm um dom inestimável, que é a liberdade, um dom que o próprio Deus nos deu e que não pode tirá-lo sem violentar a natureza que Ele mesmo criou. Não é possível que Deus não leve a sério a liberdade de suas criaturas. E, ao mesmo tempo, dentro de nós existe um forte sentido de justiça, que clama para que o impertinente mal cometido não fique impune[8]; algo nos diz que não é possível que a imoralidade triunfe, como infelizmente acontece tantas vezes na história do nosso mundo, onde nem sempre se faz justiça, pior ainda, são cometidas autênticas injustiças que fazem parte desse mal de que estamos falando. Se Deus é realmente Deus, onipotente e bom, não pode tratar do mesmo modo os que se comportaram bem e os que se obstinaram em cometer males terríveis sem se arrepender[9]. Esta é uma convicção das grandes tradições religiosas da humanidade: que Deus é remunerador. Claramente, nesta terra, o castigo tem uma finalidade terapêutica, mas quando acaba o tempo para entrar na dimensão definitiva da existência, o tempo do arrependimento também termina, pois de algum modo a decisão tornou-se eterna: eis aqui o enorme poder da liberdade.
O cristianismo, um dualismo de liberdades
Com efeito, encontramo-nos, no fim das contas, diante do mistério da liberdade, tanto de Deus quanto das suas criaturas. Deus criou livremente, sem coerções, de modo que a existência das criaturas é fruto de uma livre vontade divina de amar e ser amado. Um filósofo moderno explica como a onipotência se manifesta de modo mais pleno na criação de seres livres[10]. Trata-se de um risco que Deus quis correr, como dizia São Josemaria[11], pois a liberdade das suas criaturas é real e a prova disso é que podem escolher não só não amar, como inclusive odiar o seu Criador. E não só por um espaço de tempo, mas também para sempre. Por isso, Bento XVI falava da nossa liberdade como uma “onipotência invertida”[12]. O homem realmente é dono da sua liberdade, e pode decidir usá-la para o ódio e a destruição.
a existência dos anjos é fruto de uma livre vontade divina de amar e ser amado
Por isso, é verdade que o cristianismo, em certo sentido, é um dualismo, pois sustenta que a História é o cenário de um drama, de uma luta entre o bem e o mal, entre a graça e o pecado. No entanto, não diz que os dois poderes tenham a mesma categoria, e sim que um deles permite a existência do outro sem aniquilá-lo. Trata-se, como diz Ratzinger, de um dualismo de liberdades ou existencial, mas não de um dualismo ontológico[13]. Apenas o bem é originário.
Começamos afirmando que para muitos só existe o que pode ser experimentado por meio dos sentidos. Sugerimos também que talvez nossos avanços tecnológicos expressem de alguma forma uma proximidade a uma condição de vida que supera os limites espaço-temporais da nossa condição neste mundo. Como mostramos, a existência de forças invisíveis nos leva a considerar que, em virtude da nossa espiritualidade, que inclui o grande dom da liberdade, não estamos necessariamente fadados a um mundo de experiência visível mas caduca, mas que possuímos um ser aberto a um mundo real e mais amplo, o mundo da esperança. Esta realidade se manifesta aos olhos da fé, misturada com este mundo, onde o bem e o mal convivem e crescem juntos – como o trigo e o joio da parábola de Jesus (cfr. Mt 13,24-30) – e que se manifestará plenamente no final da História, quando chegar o tempo da colheita e o Senhor do mundo julgar com misericórdia as suas criaturas livres.
Santiago Sanz
Leituras recomendadas
E. Peterson, El libro de los ángeles, Rialp, Madrid 1957.
São João Paulo II, Creo en Dios Padre, Palabra, Madrid 1990, pp. 157-170.
Bento XVI, Enc. Spe salvi, 30-X-2007.
S.-T. Bonino, Angels and Demons. A Catholic Introduction, The Catholic University of America Press, Washington D.C. 2016.
[1] “Embora, no anjo não haja composição de forma e de matéria, há, todavia, nele ato e potência. E isto pode ser manifestado considerando as coisas materiais, nas quais se descobre uma dupla composição. A primeira, de matéria e forma, pelas quais uma natureza é constituída. Mas a natureza assim composta não é o seu ser, senão o do seu ato; por onde, tal natureza está para o seu ser como a potência para o ato. Logo, eliminada a matéria, e posto que a forma mesma subsista sem a matéria, contudo ainda permanece a relação da forma com o seu ser, como a da potência com o ato. E tal composição é a que se deve admitir nos anjos. (...) Mas, em Deus, não difere a essência, da existência, como antes se demonstrou. Por onde, só Deus é ato puro” (São Tomás de Aquino, STh, I, q. 50, a.2, ad 3).
[2] Cfr. Santo Tomás de Aquino, STh, I, q. 50, a. 1; q. 51, a. 1.
[3] Estas expressões podem ser encontradas em J. Ratzinger, Allgemeine Schöpfungslehre, Regensburg 1976, pp. 61-64.
[4] “Ninguém poderá negar que cada fiel tem a seu lado um anjo como protetor e pastor para conduzir a sua vida” (São Basílio, Contra Eunomio, 3,1).
[5] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, nn. 391-392.
[6] “Não admitiremos a existência do demônio, se nos obstinarmos a olhar a vida apenas com critérios empíricos e sem uma perspectiva sobrenatural. A convicção de que este poder maligno está no meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender por que, às vezes, o mal tem uma força destruidora tão grande. É verdade que os autores bíblicos tinham uma bagagem conceitual limitada para expressar algumas realidades e que, nos tempos de Jesus, podia-se confundir, por exemplo, uma epilepsia com a possessão do demônio. Mas isto não deve levar-nos a simplificar demasiado a realidade afirmando que todos os casos narrados nos Evangelhos eram doenças psíquicas e que, em última análise, o demônio não existe ou não intervém. A sua presença consta nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, que termina com a vitória de Deus sobre o demônio. De fato, quando Jesus nos deixou a oração do Pai-Nosso, quis que a concluíssemos pedindo ao Pai que nos livrasse do Maligno. A expressão usada não se refere ao mal em abstrato; a sua tradução mais precisa é “o Maligno”. Indica um ser pessoal que nos atormenta. Jesus ensinou-nos a pedir cada dia esta libertação para que o seu poder não nos domine”. (Papa Francisco, Exort. Ap., Gaudete et exsultate, 19/03/2018, n. 160).
[7] Cfr. Bento XVI, Audiência geral, 3/12/2008.
[8] “Há algo na própria consciência moral do homem que reage diante da perda de tal perspectiva: o Deus que é amor não é também justiça definitiva? Pode aceitar estes crimes terríveis, podem eles passar impunes? A pena definitiva não é de algum modo necessária para alcançar o equilíbrio moral na história tão intrincada da humanidade? Um inferno não é de alguma forma ‘a última tábua de salvação’ para a consciência moral do homem?” (são João Paulo II, Cruzando o limiar da esperança, Francisco Alves, São Paulo 1994, pg. 174)
[9] “Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste gênero. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra inferno” (Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 3/10/2007, n. 45)
[10] Cfr. S. Kierkegaard, Diário, vol. 1, VII A 181 (edição de C. Fabro, Morcelliana, Brescia 1962, pp. 512-513).
[11] “Deus quis que fôssemos seus cooperadores, quis correr o risco da nossa liberdade” (são Josemaria, É Cristo que passa, n.113); cfr. Idem, “As riquezas da fé”, em Os domingos de ABC, 2/11/1969, pp. 4-7.
[12] Bento XVI, Mensagem Urbi et Orbi, 25/12/2012.
[13] Cfr. S. Sanz, Joseph Ratzinger y la doctrina de la creación. Los apuntes de Münster de 1964 (II). Algunos temas fundamentales, “Revista Española de Teología” 74 (2014), pp. 201-248 [231].