Ao educar, quando os pais negam aos seus filhos algum desejo, é comum que estes perguntem porque não podem fazer o que todos fazem, porque devem comer algo de que não gostam, ou qual o motivo para deixar de passar horas navegando na internet ou brincando no computador. A primeira resposta que pode ocorrer é, simplesmente, “porque não podemos permitir-nos esse luxo”, ou “porque você ainda tem deveres para terminar”, ou, no melhor caso, “para que você não se torne um caprichoso”.
São respostas até certo ponto válidas, pelo menos para sair do aperto momentâneo. Mas, sem pretendê-lo, podem ocultar a beleza da virtude da temperança, fazendo os filhos pensarem que é uma simples negação daquilo que nos atrai.
Pelo contrário, como qualquer virtude, a temperança é fundamentalmente afirmativa. Capacita a pessoa a ser dona de si mesma, põe ordem na sensibilidade e na afetividade, nos gostos e desejos, nas tendências mais íntimas do eu: numa palavra, alcança-nos o equilíbrio no uso dos bens materiais, e ajuda-nos a aspirar ao bem superior[1]. Segundo São Tomás, a temperança situa-se na própria raiz da vida sensível e espiritual[2]. Se lemos com atenção as bem-aventuranças, notamos que não por acaso quase todas estão relacionadas com essa virtude, de um modo ou outro. Sem ela não se pode ver a Deus, nem ser consolados, nem herdar a terra e o Céu, nem suportar com paciência a injustiça[3]: a temperança dirige as energias humanas para mover o moinho de todas as virtudes.
Senhorio
O cristianismo não vê o prazer como algo “permitido”. Considera-o algo positivamente bom, que o próprio Deus pôs na natureza das coisas, para satisfação das nossas tendências. Mas isso é compatível com a consciência de que o pecado original existe, e desordenou as paixões. Todos compreendemos bem porque São Paulo diz: Faço o mal que não quero[4]; é como se o mal e o pecado tivessem sido enxertados no coração humano, que depois da queda original encontra-se na situação de ter que defender-se de si próprio. Revela-se assim a função da temperança, que protege e orienta a ordem interior das pessoas.
Um dos primeiros pontos de Caminho pode servir para situar o lugar da temperança na vida das mulheres e dos homens: Acostuma-te a dizer que não[5]. São Josemaria explicava ao seu confessor o sentido deste pensamento, acrescentando que é mais simples dizer que sim: à ambição, aos sentidos...[6] Numa tertúlia, comentava que, quando dizemos sim, tudo é mais fácil; mas quando temos que dizer não, então vem a luta e, às vezes, o resultado não é a vitória na luta, mas a derrota. Portanto, temos de acostumar-nos a dizer que não, para vencer nessa luta. Porque dessa vitória interna sai a paz para o nosso coração, e a paz que levamos aos nossos lares – cada um ao seu –, e a paz que levamos à sociedade e ao mundo[7]
Muitas vezes, dizer não traz consigo uma vitória interna que é fonte de paz. É negar-se àquilo que nos afasta de Deus – às ambições do eu, às paixões desordenadas –; é a via imprescindível para afirmar a própria liberdade; é o modo de colocar-se no mundo e frente ao mundo.
Quando alguém diz que sim a todos e a tudo o que o rodeia ou apetece, cai no anonimato. De alguma forma, se despersonaliza: é como um boneco movido pela vontade dos outros. Talvez tenhamos conhecido alguma pessoa assim, incapaz de dizer não aos impulsos do ambiente ou aos desejos dos que o rodeiam. São pessoas aduladoras, nas quais o aparente afã de serviço revela falta de caráter ou, inclusive, hipocrisia; são pessoas incapazes de complicar a própria vida com um “não”.
Porque quem diz sim a tudo, no fundo, demonstra que, além de si mesmo, pouco lhe importa o resto. Aquele que, pelo contrário, sabe que guarda um tesouro no seu coração[8], luta contra o que pode ameaçá-lo. Por isso, “dizer não” a algumas coisas é, sobretudo, comprometer-se com outras, situar-se no mundo, declarar ante os demais a própria escala de valores, a sua maneira de ser e de comportar-se. Supõe – pelo menos – querer forjar o caráter, comprometer-se com o que realmente estima, e assim dá-lo a conhecer com as suas ações.
A expressão “bem temperado”, quando aplicado a algo ou alguém, indica solidez, consistência: Temperança é espírito senhoril. Senhorio que se conquista quando temos consciência de que nem tudo que experimentamos no corpo e na alma deve ser deixado à rédea solta. Nem tudo o que se pode fazer se deve fazer. É mais cômodo deixar-se arrastar pelos impulsos que chamam de naturais; mas no fim deste caminho encontra-se a tristeza, o isolamento na miséria própria[9].
O homem acaba dependendo das sensações que o ambiente desperta nele, procurando a felicidade em sensações fugazes, falsas, que – precisamente por serem passageiras – nunca satisfazem. O destemperado não pode encontrar a paz, vai mudando de um lado para outro, e acaba por apequenar-se numa busca sem fim, que se converte numa autêntica fuga de si mesmo. É um eterno insatisfeito, que vive como se não pudesse conformar-se com a sua situação, como se fosse necessário procurar sempre uma nova sensação.
Além da temperança, em poucos vícios vê-se melhor a servidão que produz o pecado. Como diz o Apóstolo, na sua desesperação entregaram-se à libertinagem[10]. O destemperado parece ter perdido o controle de si próprio, tão voltado está à busca de sensações. Pelo contrário, a temperança conta entre os seus frutos com a serenidade e o repouso. Não afoga nem nega os desejos e paixões, mas faz o homem verdadeiramente dono, senhor. A paz, “tranquilidade na ordem”[11], só se encontra em um coração seguro de si mesmo e disposto a dar-se.
Temperança e sobriedade
Como ensinar a virtude da temperança? São Josemaria abordou essa questão em numerosas ocasiões, insistindo em duas ideias fundamentais: para educar, são necessárias a fortaleza e o exemplo, e promover a liberdade. Assim, comentava que os pais devem ensinar os seus filhos a viver com sobriedade, a levar uma vida um pouco espartana, isto é, cristã. É difícil, mas temos de ser valentes: tenham a coragem de educar na austeridade; senão, não farão nada[12].
Dessas ideias concluímos a importância dessa virtude, mas pode parecer surpreendente que São Josemaria considere que uma vida “espartana” seja sinônimo de algo “cristão”, ou, ao contrário, que o “cristão” se explique pelo “espartano”. Parece que a solução desse paradoxo está em relacionar a “vida espartana” com a importância que tem a “valentia” – parte da virtude da fortaleza – para educar a temperança.
Além disso, aqui é necessário distinguir dois sentidos da valentia: em primeiro lugar, é preciso ser valente para assumir pessoalmente esse modo de vida espartano – quer dizer, cristão. Ninguém dá o que não tem, e mais ainda se consideramos que para ensinar a virtude da temperança são essenciais o exemplo e a experiência própria. Precisamente por tratar-se de uma virtude cujas ações se dirigem ao desprendimento, é fundamental que os educandos vejam diante de si os seus efeitos.
O modo mais simples e natural de transmitir esta virtude é criando um ambiente familiar adequado. Se os filhos veem que os pais renunciam com elegância ao que consideram um capricho, ou sacrificam o seu descanso para atender a família – por exemplo, ajudando-os nas tarefas escolares, ou banhando ou dando a comida aos menores ou brincando com eles –, assimilarão o sentido dessas ações e relacioná-las-ão com a atmosfera que se respira no lar.
Em segundo lugar, é preciso valentia também para propor a virtude da temperança como um estilo de vida bom e desejável. É verdade que quando os pais vivem de modo sóbrio, será mais fácil sugeri-la por meio de comportamentos concretos. Mas, às vezes, podem ficar em dúvida se não estarão interferindo na legítima liberdade dos filhos, ou impondo-lhes, sem direito, o próprio modo de viver. É possível que cheguem a perguntar-se se é eficaz impor ou mandar algo que os filhos, ao que parece, não podem ou não querem assumir. Ainda que lhes neguemos um capricho, o desejo não permanece, principalmente quando os amigos têm isso? Não estamos fazendo com que se sintam “discriminados” nas suas relações sociais? Ou, pior ainda, não é uma ocasião para que se distanciem dos pais?
No fundo, se somos realistas, percebemos que nenhum desses motivos é convincente. Quando uma pessoa se comporta com sobriedade, descobre que a temperança é um bem, e que não se trata de carregar os filhos com um fardo insuportável, mas de prepará-los para a vida. A sobriedade não é simplesmente um modelo de conduta que uma pessoa “escolhe” e que não pode ser imposta aos outros, mas uma virtude necessária para pôr ordem no caos que o pecado original introduziu na natureza humana.
Trata-se de tomar consciência de que toda pessoa humana deve lutar por adquiri-la, se quiser ser dona e senhora de si mesma. É preciso convencer-se de que não é suficiente o bom exemplo para educar. Faz falta saber explicar, saber fomentar situações nas quais podem exercitar a virtude e, se for o caso, saber opor-se – e pedir ao Senhor as forças para fazê-lo – aos caprichos que o ambiente e os apetites da criança – certamente naturais, mas impregnados por uma concupiscência incipiente – reclamam.
Liberdade e temperança
Enfim, trata-se de educar na temperança e na liberdade simultaneamente: são dois âmbitos que se podem distinguir, mas não separar; sobretudo porque a liberdade “atravessa” todo o ser da pessoa, e está na base da própria educação. A educação visa que cada um se capacite para tomar livremente as decisões acertadas que configurarão a sua vida.
Não se educa com uma atitude protetora, em que na prática são os pais quem acabam tomando o lugar da vontade da criança e controlando cada um dos seus movimentos. Tampouco se educa com uma ação tão excessivamente autoritária que não deixe espaço ao crescimento da personalidade e do próprio critério. Em ambos os casos, o resultado final será parecido com um sucedâneo de nós mesmos, ou uma caricatura de pessoa sem caráter.
O certo é ir deixando que o filho tome as suas decisões de acordo com a sua idade; e que aprenda a escolher fazendo-o ver as consequências dos seus atos, ao mesmo tempo que percebe o apoio dos seus pais – e daqueles que intervêm na sua educação – para acertar no que escolhe ou, eventualmente, para retificar uma decisão errada.
Um episódio da infância de São Josemaria, narrado por ele em diversas ocasiões, ilustra bem esse aspecto: os seus pais não transigiam com os seus caprichos; quando não queria comer algo de que não gostava, a sua mãe – em vez de preparar outra coisa para ele – comentava que já comeria do segundo prato... Um dia, o menino laçou a comida contra a parede... e os seus pais deixaram-na manchada por vários meses, de modo que tivesse bem presente as consequências da sua ação[13].
A atitude dos pais de São Josemaria reflete como conjugar o respeito à liberdade com a necessária fortaleza para não transigir no que é um simples capricho. Naturalmente, variará o modo de lidar com cada situação. Na educação não há regras gerais; o importante é procurar o melhor para o educando e ter claras – por tê-las experimentado – quais são as coisas boas que queremos ensinar-lhe, e quais as coisas que podem fazer-lhe mal. Em qualquer caso, convém manter e promover o princípio do respeito à liberdade: é preferível errar em algumas situações do que impor sempre o próprio juízo; principalmente se os filhos o percebem como algo pouco razoável ou mesmo arbitrário.
A pequena história do “prato quebrado contra a parede” oferece-nos, além disso, a ocasião de perceber um dos primeiros campos em que convém educar a virtude da temperança: as refeições. Quanto for feito para fomentar as boas maneiras, a moderação e a sobriedade à mesa, ajuda a adquirir essa virtude.
Certamente cada idade apresenta circunstâncias específicas, que requerem defrontar a formação de maneiras diversas. A adolescência exigirá a moderação nas relações sociais, mais que na infância, ao mesmo tempo que permitirá racionalizar melhor os motivos que levam a viver de um modo ou de outro; mas a temperança nas refeições pode ser cultivada nas crianças com relativa facilidade, dotando-as de uns recursos – fortaleza na vontade e autodomínio – que serão muito úteis quando chegar o momento de lutar com temperança na adolescência.
Assim, por exemplo, preparar menus variados, saber cortar caprichos ou coisas estranhas, animar a comer toda a comida de que não gosta, a não deixar no prato nada do que serviram, ensinar a usar os talheres ou a esperar que todos se sirvam antes de começar a comer, são modos concretos de fortalecer a vontade da criança. Além disso, durante a infância o clima familiar de sobriedade que procuram viver os pais – valentemente sóbrios! – transmite-se como por osmose, sem que tenham de fazer nada especial.
Se não se joga fora a comida que sobra, mas se utiliza para completar outros pratos; se os pais não comem fora de hora, ou deixam que os outros repitam primeiro a sobremesa que fez sucesso, as crianças crescem considerando natural esse modo de proceder. No momento adequado, os pais darão as explicações do porquê atuar dessa maneira, de modo que possam entendê-las: relacionando-as com o bem da própria saúde, ou para ser generoso e demonstrar o carinho que têm ao irmão, ou como forma de oferecer um pequeno sacrifício a Jesus... motivos que, muitas vezes, as crianças entendem melhor do que pensamos.
J. De la Vega, J.M. Martín
[1] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1809.
[2] Cf. Santo Tomás, S. Th. II-II, q. 141, aa. 4, 6, e S. Th. I, q. 76, a. 5.
[3] Cf. Mt 5, 3-11.
[4] Rm 7, 19.
[5] São Josemaria, Caminho, n. 5.
[6] São Josemaria, Autógrafo, em P. Rodríguez (ed.), Camino. Edición crítico-histórica, Rialp, Madri 2002 p. 219.
[7] São Josemaria, Tertúlia, 28-X-1972, em P. Rodríguez (ed.), Camino. Edición crítico-histórica, Rialp, Madri 2002, p. 219.
[8] Cf. Mt 6, 21.
[9] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 84.
[10] Ef 4, 19.
[11] Santo Agostinho, De civitate Dei, 19, 13.
[12] São Josemaria, Tertúlia em Castelldaura (Barcelona), 28-11-1972.
[13] Cf. A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei (I), Quadrante, São Paulo, p. 31