Alma sacerdotal

Este editorial ajuda a considerar uma realidade essencial da nossa vida: todos, sacerdotes e leigos, têm alma sacerdotal.

Se atuas - vives e trabalhas - de olhos postos em Deus, por razões de amor e de serviço, com alma sacerdotal, ainda que não sejas sacerdote, toda a tua ação cobra um genuíno sentido sobrenatural, que mantém a tua vida inteira unida à fonte de todas as graças[1]. Com as palavras “alma sacerdotal” São Josemaria Escrivá expressa uma realidade essencial do ser cristão e de sua existência: pelo santo batismo, o cristão está configurado com Cristo e recebe o sacerdócio comum, participação do único sacerdócio de Jesus Cristo.

A alma sacerdotal – como ressalta São Josemaria – se manifesta no desejo de agir com visão sobrenatural e por amor, com desejo de servir. O adjetivo “sacerdotal” expressa qual há de ser nossa atitude vital: oferecer sacrifícios a Deus em sua honra e para o bem de nossos semelhantes, pois a caridade é vida da alma.

“Alma sacerdotal” significa ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus

Pelo sacerdócio ministerial, os sacerdotes são configurados com Cristo e atuam nos sacramentos – de modo eminente, na celebração da Eucaristia – in persona Christi capitis Ecclesiae, na pessoa de Cristo cabeça da Igreja: em nome de Cristo e da sua Igreja. A ordem sagrada está a serviço do sacerdócio comum. Este último, essencialmente distinto do sacerdócio ministerial[2], permite que cada cristão se ofereça a si mesmo e toda a sua vida em sacrifícios espirituais[3], unindo-se ao sacrifício da Cruz atualizado no mistério eucarístico.

O cristão sabe-se enxertado em Cristo pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pela Confirmação; chamado a atuar no mundo pela participação na função real, profética e sacerdotal de Cristo[4]; se sabe chamado a servir a Deus com a sua ação no mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que lhe confere uma certa participação no sacerdócio de Cristo - embora essencialmente diferente daquela que constitui o sacerdócio ministerial - e o torna capaz de participar no culto da Igreja e de ajudar os homens a caminhar para Deus, mediante o testemunho da palavra e do exemplo, mediante a oração e a expiação[5].

A alma sacerdotal se manifesta no desejo de agir com visão sobrenatural e por amor, com desejo de servir

Ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus

Como o Bem-Aventurado Álvaro del Portillo explicou em várias ocasiões, destacando os ensinamentos de São Josemaria, “alma sacerdotal” significa ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus[6], sumo e eterno Sacerdote: preocupação pelas almas; um desejo ardente de unir todas as ações ao Sacrifício de Cristo para a salvação do mundo; buscar a mortificação e a penitência, sabendo que ter a Cruz, é ter a alegria: é ter-te a Ti, Senhor![7] A alma sacerdotal leva à entrega generosa, ao esmero que é intensidade no amor autêntico, a não dizer nunca basta aos pedidos de Deus.

Hoc sentite in vobis, quod et in Christo Iesu: Tende entre vós os mesmos sentimentos que teve Cristo Jesus[8]. Essas palavras, que talvez os primeiros cristãos rezassem e São Paulo retomou, formam parte de um hino de louvor à humilhação de Cristo, que alcançou a redenção para nós. Quando o Apóstolo convida os filipenses a ter os mesmos sentimentos de Cristo, se refere ao seu modo de pensar, de meditar, de se projetar no futuro.

No Evangelho de São Marcos encontramos a mesma que palavra que São Paulo usa para falar dos sentimentos de Cristo. A caminho de Jerusalém, Jesus anunciava a seus discípulos que devia padecer muito, ser rejeitado pelos anciãos e pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas, ser entregue à morte e ressuscitar depois de três dias.

O Evangelista acrescenta que Pedro, tomando-o à parte, pôs-se a repreendê-lo. Então Jesus se voltou e, olhando aos seus discípulos, disse a Pedro essas palavras duras: Vai para trás de mim, Satanás! Pois não tens em mente as coisas de Deus, e sim, as dos homens[9]. Ter os sentimentos de Jesus, sentir as coisas de Deus, é aceitar o mistério da Cruz e participar neste mistério.

Jesus Cristo, sacerdote eterno, se oferece a si mesmo por amor a seu Pai para nossa salvação. Cristo nos dá o maior exemplo do que é uma alma sacerdotal, completamente orientada a cumprir a vontade de seu Pai. Ter os sentimentos de Jesus é aspirar ao que deseja, compartilhar a sua vida, as suas intenções. Graças à vida sacramental, participamos na cruz e na ressurreição do Senhor, nossa vida se transforma porque chegamos à união com Deus, e somos protagonistas da Nova Evangelização[10].

Além da dimensão de futuro que implica esse ter os mesmos sentimentos de Jesus, há uma dimensão de comunhão. Cada um, na Igreja, compartilha o que Cristo leva no coração com os outros batizados. Na Carta aos filipenses, o hino à humilhação de Cristo convida à unidade com Ele, condição necessária para compartilhar suas intenções, para querer como Ele quer e o que Ele quer. Essa orientação fundamental do batizado é possível porque forma parte do Corpo de Cristo.

O coração, perto do Senhor

O Santo Cura d’Ars dizia que o “sacerdócio é o amor do coração de Jesus”[11]. Poder-se-ia aplicar essa expressão à alma sacerdotal. Quando amamos o Senhor, compartilhamos os seus sentimentos, os anseios do seu coração, a sua preocupação pelas almas, o desejo de que muitos corações batam em uníssono com o coração de Cristo. Não se trata de algo externo, mas de um amor autêntico.

A fidelidade de Jesus Cristo, que cumpre sua missão salvadora, pede a nossa resposta de fidelidade: o nome do amor no tempo é “fidelidade”. Jesus dá testemunho do amor irreversível de Deus Pai, que espera a nossa livre entrega pessoal.

A Antiga Lei prescrevia determinadas práticas que significavam a pureza necessária para se aproximar de Deus[12]; a tradição judaica ampliou-as a outros âmbitos, como as refeições, para dar uma dimensão religiosa a todas as ocasiões. No Evangelho vemos a fariseus zelosos das coisas de Deus. Talvez muitos deles não se cansassem de responder que “sim” a Deus, de não dizer nunca “basta”: desejavam cumprir a vontade divina. Jesus confirmou o seu “costume de se dirigir a Deus como Pai, caráter central do mandamento do amor a Deus e ao próximo (cfr. Mc 12,28-34)”[13].

No entanto, a atitude dos fariseus nem sempre era reta. Assim, por exemplo, um dia alguns perguntaram a Jesus: Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas tomam a refeição com as mãos impuras?[14]. A pureza exterior teria que ser sinal da pureza interior. Mas, nos tempos de Cristo, o legalismo das normas rituais estabelecidas pela tradição humana havia afogado o verdadeiro sentido do culto a Deus.

Nosso Senhor denuncia essa atitude: O profeta Isaías bem profetizou a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. É inútil o culto que me prestam, as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos”[15]. E Jesus acrescenta: Vós abandonais o mandamento de Deus e vos apegais à tradição humana”[16]. Que duras são essas palavras do Senhor! Seu coração está longe de mim[17]. Então, referindo-se ao quarto mandamento do Decálogo, sobre o amor aos pais, Jesus explica no que têm o coração longe de Deus: “Sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus apegando-vos à vossa tradição[18]. Aqueles que justamente teriam que amar mais a Deus, cumprindo a sua lei, derrogam o mandamento e anulam a Palavra.

A alma sacerdotal é a alma que se entrega de verdade aos outros em Deus. É “alma de critério”, como São Josemaria desejava para o leitor de Caminho[19]. Ser uma pessoa que reflete sobre as coisas na presença de Deus; que discerne, complica a sua vida para compreender e servir aos outros; em uma palavra, que sabe amar: se dá e nesse dom de si encontra a felicidade e a paz. Os outros precisam de nós!

O ser humano, desde sua mais tenra idade – quando, por exemplo, aprende a falar – precisa do outro para chegar a ser o que na realidade é, para crescer pouco a pouco, formar a sua consciência[20]; e acontece a mesma coisa na vida sobrenatural, até chegar à plenitude de Cristo e comportar-se como filho ou filha de Deus em tudo.

Jesus enviará o Espírito Santo para vivificar a multidão, não por fora, mas porque assumiu a nossa condição de escravos[21]. Tomando sobre si nossa morte, pode nos comunicar o seu próprio Espírito de vida. Faz isso de modo eminente na Cruz, como ensina o Evangelho de São João ao contar a morte de Jesus: entregou o espírito e seu coração foi traspassado por nossos pecados.

Razões de amor

São Josemaria abre de algum modo a sua alma quando o ouvimos se dirigir a Jesus Cristo cravado na cruz dizendo: Sou teu, e entrego-me a Ti, e prego-me na Cruz de bom grado, sendo nas encruzilhadas do mundo uma alma que se entregou a Ti, à tua glória, à Redenção, à corredenção da humanidade inteira[22]. A alma sacerdotal vem dessa cruz, da qual não se afastaram Santa Maria nem as santas mulheres. Precisamos de valentia, uma virtude especialmente necessária hoje, para ver e amar a Vontade de Deus, deixar-nos levar pelo peso do seu Amor, que no fundo é a sua glória e a nossa verdadeira vida nEle.

A entrega que o Senhor pede é uma entrega autêntica, não puramente formal, e vem da Cruz, da Eucaristia. É total pelo amor, não pela acumulação de preceitos e regras. Os fariseus já se haviam escandalizado porque em um sábado os discípulos iam com o Senhor passando entre uns campos, e enquanto caminhavam começaram a arrancar espigas[23]. Iam com Jesus, livres, com confiança. Sabiam que, se tivessem errado, o Mestre teria dito as coisas claramente a eles, seriam corrigidos. Uma profunda compreensão de nossa fé e do seguimento de Jesus, longe de qualquer rigidez, significa sintonizar com a substância do Evangelho, do Cristianismo: com o amor. “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem”[24]: Bento XVI vê nessas palavras de São João “uma fórmula sintética da existência cristã”[25]. O Amor é a própria identidade de Deus. Assim se consegue uma percepção cada vez mais penetrante do que são as obras de Deus: são obras de Amor. No tempo da Igreja, tempo do Espírito Santo, são as maravilhas de Deus: o Espírito Santo, como diz a Oração Eucarística IV, leva à plenitude a obras de Cristo no mundo.

Precisamos de valentia, uma virtude especialmente necessária hoje, para ver e amar a Vontade de Deus, deixar-nos levar pelo peso do seu Amor, que no fundo é a sua glória e a nossa verdadeira vida nEle.

O próprio nome de “Obra de Deus” ajuda a prevenir contra um zelo mal entendido. “Opus Dei”: Deus é quem atua em sua Igreja. Temos de “deixar Deus atuar”[26]. É preciso lutar, muito, mas essa luta se apoia sempre com a ajuda do Senhor. A vida cristã está bem longe de qualquer tentativa de chegar a Deus, de cumprir os seus mandamentos, sem a sua graça, como se o importante fosse o produto de nosso coração: talvez aqui se encontre a explicação de possíveis derrotas ou fracassos na vida cristã. Se de verdade não queremos pôr obstáculos a Deus, deixaremos os nossos propósitos em suas mãos, assim como os nossos pensamentos e sentimentos: o que há no mais profundo de nosso coração.

Afirmas que vais compreendendo pouco a pouco o que quer dizer “alma sacerdotal”... Não te zangues se te respondo que os fatos demonstram que só o entendes em teoria. – Cada dia te acontece o mesmo: ao anoitecer, no exame, tudo são desejos e propósitos; de manhã e à tarde, no trabalho, tudo são objeções e desculpas. É assim que vives o “sacerdócio santo, para oferecer vítimas espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo”? [27]. Nessas palavras, São Josemaria menciona o trabalho: é o eixo da nossa santificação, como as relações familiares e de amizade, ou a participação na vida da sociedade, chegando a que tudo seja apostolado.

Nos ensinamentos do santo fundador do Opus Dei, a alma sacerdotal vai sempre unida à mentalidade laical, que deixa a verdade iluminar nossa consciência e nos impulsiona a exercitar a nossa liberdade como cidadãos da cidade de Deus e da cidade dos homens. Existe uma justa autonomia das realidades temporais que São Josemaria proclamou contra vento e maré e que o Concílio Vaticano II recordou claramente[28]. Com a proteção de Santa Maria, corredentora, a alma sacerdotal do cristão se manifesta em uma grande compaixão com o próximo, como Deus ensina, pois a misericórdia de Deus abarca a toda carne[29].

G. Derville


[1] São Josemaria, Forja, n. 369.

[2] Cfr. Conc. Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 10.

[3] Cfr. 1 Pe 2, 5.

[4] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 106.

[5] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 120.

[6] Flp 2, 5.

[7] São Josemaria, Forja, n. 766.

[8] Flp 2, 5.

[9] Mc 8, 33.

[10] Cfr. Joseph Ratzinger – Bento XVI, L’elogio della coscienza, pp. 135-136.

[11]São João Maria Vianney, cit. em Catecismo da Igreja Católica, n. 1589.

[12] Cfr. Ex 30, 17.

[13] Catecismo da Igreja Católica, n. 575.

[14] Mc 7, 1-5.

[15] Mc 7, 6-7; cfr. Is 29, 13.

[16] Mc 7, 8.

[17] Mt 15, 8.

[18] Mc 7, 9.

[19] Guillaume Derville, Une connaissance d’amour. Note de théologie sur l’édition critico-historique de «Chemin» (II), «Studia et Documenta» 3 (2009) pp. 294-296.

[20] Cfr. Joseph Ratzinger - Bento XVI, L’elogio della coscienza, p. 157

[21] Cfr. Flp 2, 7.

[22] São Josemaria, Via Sacra, XI estação.

[23] Mc 2, 23.

[24] 1 Jo 4, 16.

[25] Bento XVI, Enc. Deus caritas est, n. 1.

[26] Cfr. Joseph Ratzinger – Bento XVI, Deixar Deus atuar, «L’Osservatore Romano», 6-X-2002.

[27] São Josemaria, Sulco, n. 499.

[28] Cfr. Conc. Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 36.

[29] Sir 18, 12-13.