Realizar-se na vida: encontrar o essencial, apreciar o que vale a pena, ver o mal chegando, saber passar por cima do que é irrelevante. “Se a riqueza é um bem desejável na vida, há maior riqueza do que a sabedoria, que realiza tudo?” (Sab 8,5). A sabedoria não tem preço, todos a querem para si. É um conhecimento que não tem nada a ver com as letras, mas com o sabor, com a capacidade de perceber qual é o sabor do bem. Ele é bem expressado pelo termo sapientia que é a tradução do grego sophia nos livros sapienciais. Em seu significado original, sapientia denota bom gosto, bom olfato. O homem sábio tem um paladar para saborear o bom. Da nobis recta sapere, pedimos a Deus, com uma antiga oração[1]: faz-nos saborear o que é bom.
Quando passarem trinta anos, vocês olharão para trás e ficarão admirados. E vocês não terão nada mais que fazer do que terminar a vida agradecendo, agradecendo
A Escritura apresenta essa sabedoria como um conhecimento natural, que brota com facilidade: “é facilmente vista por aqueles que a amam e aqueles que a procuram a encontram. Ela se adianta em manifestar-se para aqueles que a desejam. Quem madruga por ela não se cansa, pois a encontra sentada à sua porta” (Sab 6,12-14). No entanto, para adquirir esta conaturalidade é necessário procurá-la, desejá-la, madrugar por ela. Com paciência, com a insistência do salmo: “Oh, Deus, Tu és meu Deus, de madrugada te busco, minha alma anseia por ti. Por ti a minha carne desfalece, em deserto e em terra seca, sem água” (Sl 63,2). E essa busca é uma tarefa para a vida toda. Dessa forma, a sabedoria também chega com os anos. A Sabedoria, disse-nos tantas vezes o Papa, repetindo o Eclesiástico (cf. Ecc 8,9), é característica dos anciãos: eles são “a reserva da sabedoria do nosso povo”[2]. É verdade que a idade também pode trazer inconvenientes como o enraizamento de alguns defeitos de caráter, alguma resistência a aceitar as próprias limitações ou dificuldades para compreender os jovens. Mas, acima de tudo, costuma brilhar a capacidade de apreciar, de saborear o verdadeiramente importante. E isso é, no fim das contas, a verdadeira sabedoria.
São Josemaria referia-se a esta sabedoria numa ocasião, falando a um grupo de fiéis da Obra: “Quando passarem trinta anos, vocês olharão para trás e ficarão admirados. E vocês não terão nada mais que fazer do que terminar a vida agradecendo, agradecendo...”[3]. O que fica realmente, ao longo dos anos, são os motivos de agradecimento. Os problemas e dificuldades que, em algum momento, podem nos ter abalado fortemente, perdem a nitidez, e passamos a vê-los com olhos diferentes, até mesmo com um certo humor. Adquire-se a perspectiva que permite ver como Deus vai nos levando, como nos leva a dar a volta por cima de nossos erros, como se serve dos nossos esforços… Aqueles que viveram com o bem-aventurado Álvaro recordam a frequência e a simplicidade com que ele dizia: “graças a Deus”. Essa convicção de que só temos motivos de agradecimento, portanto, recolhe um elemento essencial da verdadeira sabedoria. Essa sabedoria que Deus faz crescer na alma daqueles que O procuram, e podem dizer, mesmo antes de chegar à velhice: “Tenho mais discernimento do que os anciãos, porque guardo os teus mandamentos” (Sl 119,100).
Tudo é bom
Em meios aos apertos e angústias do seu esconderijo na Legação de Honduras, são Josemaria escreveu em 1937 aos fiéis da Obra que se encontravam dispersos em Madri: "Muito ânimo, sim? Procurai que todos estejam contentes: tudo é para bem: tudo é bom”[4]. Outra carta, escrita um mês depois para aqueles que estavam em Valência, apresenta a mesma insistência: “Animai-vos. Alegrai-vos se, por algum motivo natural, vos entristecestes. Tudo é para bem”[5].
"As misericórdias de Deus nos acompanham dia a dia. Basta ter um coração vigilante para poder percebê-las." (Bento XVI)
Tudo é bom, tudo é para bem. Estas palavras transparecem em dois textos da Escritura. Por um lado, o crescendo da alegria de Deus durante a criação, que desemboca na conclusão de que “tudo o que Ele fez (….) era muito bom” (Gen 1,31). Por outro lado, aquela máxima de São Paulo — “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom 8,28) – que São Josemaria condensou numa exclamação: “omnia in bonum!” Anos antes, no Natal de 1931, essas duas fibras da Escritura se entrelaçaram em uma anotação que, mais tarde, daria lugar a um ponto de Caminho. Tudo é bom, tudo é para bem. É o reconhecimento pelas coisas boas e a esperança de que Deus saberá como tirar um bem daquilo que parece mal.
“Habitua-te a elevar o coração a Deus em ação de graças, muitas vezes ao dia. — Porque te dá isto e aquilo.— Porque te desprezaram.– Porque não tens o que precisas, ou porque o tens.
Porque fez tão formosa a sua Mãe, que é também tua Mãe.– Porque criou o Sol e a Lua e este animal e aquela planta.— Porque fez aquele homem eloquente e a ti te fez difícil de palavra….
Dá-Lhe graças por tudo, porque tudo é bom”.[6]
Como se pode perceber logo de entrada, a sequência das razões de gratidão não segue uma ordem particular: se tudo é bom, é boa a primeira coisa que vemos, e a próxima, e a outra… todas são motivos de gratidão. “Porque criou o Sol e a Lua e este animal e aquela planta”. Olhe para onde quiser, diz são Josemaria: e você só encontrará motivos de agradecimento. Reflete-se nestas linhas, enfim, uma admiração que transborda diante da bondade de Deus. Um assombro que recorda o canto das criaturas de São Francisco, em que tudo é também motivo de gratidão: “Seja louvado, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas (….). Seja louvado, meu Senhor, pelo irmão vento e pela brisa, e a nuvem e o céu sereno, e todo o tempo, para todos eles dás sustento às Suas criaturas (…). Louvado seja, meu Senhor, por aqueles que perdoam por Seu amor”[7].
“Porque te dá isto e aquilo”. Quantas coisas Deus nos dá e com que facilidade nos acostumamos a elas. A saúde, que é também chamada de “o silêncio dos órgãos”, talvez seja um exemplo paradigmático: normalmente costuma acontecer que a consideramos garantida, até que o corpo começa a se fazer notar. E talvez só então valorizemos, por sua ausência, o que já tivemos. O agradecimento consiste aqui, em parte, em seguir em frente. Em afinar o ouvido para perceber o silêncio, a discrição com que Deus nos dá tantas coisas. “As misericórdias de Deus nos acompanham dia a dia. Basta ter um coração vigilante para poder percebê-las. Estamos muito propensos a notar apenas a fadiga diária (…). Mas se abrimos nossos corações, então, embora estejamos submersos, podemos ver continuamente como Deus é bom conosco, como Ele pensa em nós, precisamente nas pequenas coisas, ajudando-nos assim a alcançar as grandes”[8].
Agradecer a Deus é aproveitar com Ele as boas coisas que Ele nos dá, porque na companhia das pessoas amadas, sempre se aproveita mais.
Pensar que se trata simplesmente da resposta a uma dívida de gratidão seria tornar pequeno esse agradecimento. É muito mais: precisamente porque consiste em saborear o bom, agradecer a Deus é aproveitar com Ele as boas coisas que Ele nos dá, porque na companhia das pessoas amadas, sempre se aproveita mais. Até mesmo as coisas mais prosaicas podem ser uma razão para passarmos bons momentos, para a diversão. Descobrir a alegria de viver “no meio das pequenas coisas da vida cotidiana, em resposta ao carinhoso convite de nosso Pai Deus: “Filho, na medida do possível, cuide-se bem (…). Não se prive de passar um bom dia” (Si 14,11,14). Quanta ternura paterna se depreende dessas palavras!”[9]
Tudo é para bem
Lembrar-se de agradecer as boas coisas que Deus nos dá já é um desafio em si mesmo. O que dizer sobre as coisas menos agradáveis? “Porque te desprezaram”: porque nos trataram com frieza, com indiferença; porque nos humilharam, porque não valorizaram nossos esforços… “Porque você não tem o que precisa ou porque você tem”. É no mínimo surpreendente a tranquilidade com a qual ter e não ter aparecem aqui sob o mesmo aspecto. É realmente possível agradecer a Deus pela falta de saúde, trabalho, tranquilidade? Agradecer porque não temos tempo — quantas vezes isso nos faz sofrer — porque estamos sem vontade, sem forças, sem ideias, porque isto ou aquilo não deu certo … Bem, sim: também — diz São Josemaria —, agradeça a Deus. Esta atitude leva-nos de novo às contrariedades pelas que São Josemaria passou quando escreveu aquelas cartas da Legação de Honduras e ao contexto de sofrimento do qual emergiu a anotação que deu origem a este ponto de Caminho[10].
O convite para agradecer o que é ruim, que aparece de forma mais explícita, tem a sua origem em uma anotação de cinco dias antes: “Paradoxos de uma pequena alma.— Quando Jesus te enviar acontecimentos que o mundo chama bons, chora em teu coração, considerando a bondade d’Ele e a tua malícia; quando Jesus te enviar acontecimentos que o mundo qualifica de ruins, alegra-te em teu coração, porque Ele te dá sempre o que convém, e então é o belo momento de amar a Cruz”[11].
Apesar da sua proximidade no tempo, essa consideração foi colocada outro capítulo de Caminho, um dos dois que abordam o tema da infância espiritual. Assim aparece uma chave a partir da qual se pode entender o clima espiritual dessa disposição para dar graças a Deus “por tudo, porque tudo é bom”. Sendo a gratidão um sinal da sabedoria que acompanha a idade e a proximidade de Deus, ela só aparece onde há uma atitude de “abandono esperançoso”[12] nas mãos de Deus. Uma atitude que São Josemaria descobriu através do caminho da infância espiritual: “Já viste como agradecem as crianças? — Imita-as dizendo, como elas, a Jesus, diante do favorável e diante do adverso: ‘Que bom que és! Que bom!...’” [13]
Agradecer o que é mau não é, naturalmente, algo que aconteça espontaneamente. De fato, a princípio pode parecer até mesmo teatral ou ingênuo: como se estivéssemos negando a realidade, como se estivéssemos procurando consolo em ... uma história infantil. No entanto, agradecer nessas situações não é deixar de ver, mas ver além. Resistimo-nos a agradecer porque percebemos a perda, a contrariedade, a ruptura. Nossos olhos ainda estão muito próximos da terra, como acontece com a criança a quem parece que o mundo está afundando porque tropeçou e o seu brinquedo quebrou ou porque quer continuar brincando. Naquele momento, é um pequeno drama, mas logo depois passa. “Na vida interior, a todos nos convém ser (…) como esses pequeninos que parecem de borracha, que até se divertem com os seus tombos, porque logo se põem de pé e continuam com as suas correrias; e porque também não lhes falta — quando é necessário - o consolo de seus pais”.[14]
Agradecer o que é mau não é deixar de ver, mas ver além
O agradecimento de que São Josemaria nos fala não é um tipo de manto que cobre o desagradável, como uma mágica, mas um gesto pelo qual olhamos para o nosso Deus Pai, que sorri para nós. Isso abre o caminho para a confiança, um abandono que coloca a contrariedade em segundo plano, embora continue pesando. Ser grato quando algo nos fere significa aceitar: “A melhor maneira de expressar gratidão a Deus e às pessoas é aceitar tudo com alegria”[15]. Certamente não será um grito de alegria que virá em primeiro lugar, talvez bem o contrário. Mesmo assim, mesmo que a alma se revolte, deve agradecer: “Senhor, não é possível... não pode ser... mas obrigado”. Aceitar: “Eu gostaria de ter mais tempo, mais forças... Gostaria que essa pessoa me tratasse melhor... Eu gostaria de não ter essa dificuldade, esse defeito. Mas Você sabe mais”. Pediremos a Deus que conserte as coisas como achamos que deveriam ser, mas com a serenidade de que Ele sabe o que está fazendo, e que tira bens de onde só podemos ver o mal.
Agradecer o que é mau, sempre com as palavras daquela época "obrigado por tudo", supõe “crer como creem as crianças, amar como amam as crianças, abandonar-se como se abandonam as crianças...”[16]. Além da forma particular que esse abandono assume na vida interior de cada um, essa atitude delineia a convicção de que diante de Deus somos muito pequenos e que as nossas coisas são assim. E, apesar disso, são mais importantes para Deus do que para qualquer outra pessoa no mundo. Daí aparece, na realidade, o agradecimento de saber-se amado: obrigado por estar aqui do meu lado, obrigado porque isto é importante para você. No meio da aparente distância de Deus, percebemos a sua proximidade: contemplamo-Lo no meio da vida cotidiana, porque os problemas fazem parte da vida cotidiana. Sob as cordas da adversidade, surge a razão mais profunda pela qual agradecemos o que é bom e o que é mau: obrigado, porque encontro o Amor em todos os lugares. A verdadeira razão da ação de graças, a sua raiz, é que Deus me ama e que tudo na minha vida são ocasiões de amar e de saber-me amado.
No sofrimento pelo que nos falta, na frieza, nas carências, nas consequências dos nossos erros... estão escondidas oportunidades de lembrar, de acordar para o Amor de Deus. Embora nos custe renunciar a alguma coisa, embora nos custe aceitar a dor ou a limitação: afinal de contas, o que perdemos com isso se temos o Amor de Deus? “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo ou a espada?” (Rom 8,35).
É possível, assim, “agradecer por tudo, porque tudo é bom”. A loucura cristã de agradecer por tudo tem origem na filiação divina. Quem percebeu que tem um pai que o ama realmente, não precisa de mais nada. Um bom pai, acima de tudo, se agradece. Este é o amor de Jesus pelo seu Pai: Jesus é todo agradecimento, porque ele recebeu tudo de seu Pai. E ser cristão é entrar nesse amor, nessa gratidão: agradeço-Lhe, Pai, porque sempre me escuta (cf. Jo 11, 41-42).
“A melhor maneira de expressar gratidão a Deus e às pessoas é aceitar tudo com alegria” (Madre Teresa de Calcutá)
Não se esqueça de agradecer
“Bendiz, minha alma, ao Senhor, não esqueça nenhum dos seus benefícios” (Sl 103,2). Nas Escrituras, Deus frequentemente nos convida a nos lembrarmos disso, porque ele sabe que habitualmente vivemos no esquecimento, como crianças que andam por aí com seus brinquedos e não se lembram de seu pai. Deus sabe e entende isso. Mas Ele gentilmente nos atrai para os seus braços e sussurra de mil maneiras: lembra-nos. Agradecer também é, então, uma questão de memória. É por isso que o Papa fala frequentemente da “memória agradecida”.[17]
A disposição de agradecer pelo que nos contraria, por incrível que pareça, facilita a que nos lembremos de agradecer a Deus pelas coisas agradáveis. Na realidade, a vida cotidiana nos dá muitas ocasiões para recordar: um momento para rezar antes das refeições, agradecendo a Deus por nos dar algo para comer. Também, dedicar um tempo da ação de graças da Missa ou de nossa oração pessoal para agradecer coisas comuns da vida, para descobrir o que elas têm de extraordinárias: um emprego, um teto, pessoas que nos amam. Agradecer as alegrias dos outros, ver um dom de Deus, e outro, e outro, nas pessoas que nos prestam um serviço... Há também momentos em que a vida nos oferece uma centelha de beleza: um lindo pôr do sol, uma atenção inesperada para conosco, uma agradável surpresa... São ocasiões de ver, entre as fibras, às vezes um pouco cinzentas da vida cotidiana, a cor do Amor de Deus.
Há muitos séculos as culturas do mundo veem no avanço do dia para a noite uma imagem da vida. A vida é como um dia e um dia é como a vida. Por essa razão, se a gratidão é típica da sabedoria daqueles que viveram muito, como é bom terminar o dia agradecendo. Ao parar na presença de Deus para avaliar a nossa jornada, Deus agradecerá que lhe agradeçamos tantas coisas, “etiam ignotis”[18]: também aquelas que não conhecemos. E, inclusive, que lhe peçamos perdão, com a confiança das crianças, por não termos agradecido o suficiente.
Por: Carlos Ayxelà
Tradução: Mônica Diez
[1] Oração “Veni Sancte Spiritus”, recolhida no Missal Romano, Missa votiva do Espírito Santo (A), oração coleta.
[2] Francisco, Audiência, 4-III-2015.
[3] São Josemaria, anotações de uma reunião familiar, 21/01/1955, citado em Crónica, VII-55, p. 28 (AGP, biblioteca, P01).
[4] São Josemaria, Carta, 17/05/1937, citada em Caminho, ed. comentada, comentário ao n. 268.
[5] São Josemaria, Carta, 15/06/1937; citada em Ibid.
[6] São Josemaria, Caminho, n. 268. A anotação original corresponde ao dia 28 de dezembro de 1931.
[7] São Francisco, Cântico das criaturas, em Fontes Franciscanas, n. 263.
[8] Bento XVI, Homilia, 15-IV-2007.
[9] Francisco, Ex. Ap. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 4.
[10] Cf. Caminho, edição comentada, comentário aos nºs. 267 e 268.
[11] Caminho, n. 873. A anotação original é de 23 de dezembro de 1931.
[12] F. Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017, n. 8.
[13] Caminho, n. 894. O texto parte também de uma anotação de 23 de dezembro de 1931.
[14] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 146.
[15] Santa Teresa de Calcutá,El amor más grande, Urano, Barcelona 1997, p. 51.
[16] Santo Rosário, Ao Leitor. Este texto pertence ao manuscrito original que são Josemaria redigiu “de un tirón” (de uma vez) durante a novena à Imaculada de 1931; cfr. edição crítico-histórica, fac-símiles e fotografias, n. 4.
[17] Cfr. p. ex. Francisco, Evangelii gaudium, n. 13; Homilia, 18/06/2017; Homilia, 12/12/2017.
[18] São Josemaria, “En las manos de Dios” (2/10/1971), En diálogo con el Señor, edição crítico-histórica, Rialp, 2017, p. 307.