Deus fala conosco. Constantemente. Fala com palavras e também com obras. A sua linguagem é muito mais rica do que a nossa. É capaz de suscitar moções se servindo, por exemplo, das pessoas e dos acontecimentos que nos rodeiam. Deus fala conosco nas Escrituras, na Liturgia, por meio do Magistério da Igreja... Como olha para nós sempre com amor, procura o diálogo conosco em cada acontecimento, chamando-nos sempre a ser santos. Por isso, para poder ouvir essa misteriosa linguagem divina, procuramos sempre começar a nossa oração com um ato de fé.
De dentro...
Deus fala atuando em nossas próprias potências, que pode mover de dentro: move a nossa inteligência, por meio das inspirações; os nossos sentimentos, por meio dos afetos; a nossa vontade, por meio dos propósitos. Por isso, como são Josemaria nos ensinou, ao finalizar a nossa oração podemos dizer: “dou-te graças, meu Deus, pelos bons propósitos, afetos e inspirações que me comunicaste nesta meditação”.
Podemos reconhecer que algo vem de Deus quando nos leva a amá-lo mais e a amar mais os outros
Mas, ao considerar esta realidade, podemos ter uma dúvida: “Como saber se é Ele quem está falando? Como saber se esses propósitos, afetos e inspirações não são simplesmente ideias, desejos e sentimentos meus?” A resposta não é fácil. Orar é uma arte que aprendemos com o tempo e com a ajuda da direção espiritual. Mas podemos dizer que tudo o que nos leva a amá-lo mais e a amar mais os outros, a cumprir a sua vontade, inclusive quando traz consigo sacrifício e generosidade, vem de Deus. Há muitas pessoas acostumadas a fazer oração que podem dizer: “na minha oração, penso as mesmas coisas que penso ao longo do dia, mas com uma diferença: ao terminar, sempre digo ‘mas não se faça a minha vontade e sim a tua’ no coração, e isso não acontece em outros momentos”.
Muitas vezes Deus fala diretamente ao coração, cuja linguagem conhece como ninguém, através de desejos profundos que Ele mesmo semeia. Por isso, ouvi-Lo muitas vezes consiste em mergulhar no próprio coração e ter a valentia de colocar diante d’Ele os nossos desejos, com a intenção de discernir o que nos leva a cumprir a sua vontade e o que não. O que eu desejo realmente? Por quê? De onde vêm esses impulsos? Para onde me levam? Estou me enganando, fingindo que não existem? Diante destas perguntas, que são normais para quem quer viver uma vida de oração, o Papa Francisco nos recomenda: “Para não se enganar, é preciso perguntar: Conheço-me a mim mesmo, para além das aparências ou das minhas sensações? Sei o que alegra ou entristece o meu coração?”[1].
Além de falar no nosso coração e na nossa inteligência, Deus também fala por meio dos nossos sentidos internos: fala na nossa imaginação, suscitando uma cena ou imagem; na nossa memória, trazendo uma lembrança ou palavras que podem ser uma resposta para a nossa oração ou uma indicação dos seus desejos. Aconteceu isso com são Josemaria, por exemplo, no dia 8 de setembro de 1931. Estava rezando na Igreja do Patronato dos Enfermos, sem muita empolgação – como ele mesmo diz – com a imaginação solta “quando reparei que, sem querer, repetia umas palavras latinas em que nunca me detivera e que não tinha motivo para conservar na memória. Ainda agora, para me recordar delas, preciso lê-las na ficha que sempre trago no bolso para anotar o que Deus quer. (...) (instintivamente, levado pelo hábito, anotei a frase ali mesmo, no presbitério, sem lhe dar importância): dizem assim as palavras da Escritura que encontrei nos meus lábios: et fui tecum in omnibus ubicumque ambulasti, firmans regnum tuum in aeternum. Apliquei a minha inteligência ao sentido da frase, repetindo-a devagar. E depois, ontem à tarde, hoje mesmo, quando voltei a ler essas palavras (porque – repito – como se Deus estivesse empenhado em ratificar que foram suas, não me lembro delas de uma vez para outra), compreendi bem que Cristo Jesus me deu a entender, para nossa consolação, que ‘a Obra de Deus estará com Ele em toda a parte, afirmando o reinado de Jesus Cristo para sempre’”[2].
Deus também pode se servir das anotações que fazemos num retiro espiritual ou um meio de formação para falar conosco, especialmente ao relê-las na oração tentado captar o seu sentido. Ali, talvez, possamos descobrir um fio condutor ou repetições que nos dão uma pista do que o Senhor quer nos dizer.
Um sussurro incessante
É verdade que às vezes o Senhor fala claramente e de maneira sobrenatural, mas não costuma ser o comum. Geralmente, Deus fala baixinho e por isso, às vezes, não percebemos os pequenos presentes – propósitos, afetos, inspirações – que Ele nos dá em alguma oração. Pode nos acontecer como com o general sírio Naamã; quando o profeta Eliseu o animou a mergulhar sete vezes no rio para ficar curado da sua lepra, lamentava-se dizendo: “Eu pensava que ele sairia para me receber, levantando-se para invocar o nome do Senhor, seu Deus; e que tocaria com sua mão o lugar da lepra e me curaria” (2 Rs 5,11). Naamã dirigiu-se ao Deus de Israel, mas ele esperava algo extraordinário, até mesmo sonoro. Felizmente, os seus servos o chamaram à razão. “Senhor, se o profeta te mandasse fazer uma coisa difícil, não a terias feito? Quanto mais agora que ele te disse: ‘Lava-te e ficarás limpo’” (2 Rs 5,13). O general voltou para cumprir o conselho, aparentemente simples demais, e deste modo entrou em contato com o poder salvador de Deus. Na oração, convém valorizar essas pequenas luzes sobre o já sabido, as moções do Espírito Santo sobre as coisas de sempre, os afetos de pouca intensidade, os propósitos fáceis, sem desprezá-los por serem prosaicos, já que tudo isso pode ser Deus.
Para ouvir a Deus é necessário ter momentos em que pausamos a movimentação do dia a dia...Precisamos de silêncio.
O cardeal Ratzinger respondeu a uma pergunta sobre a oração assim: “Geralmente Deus não fala de forma ruidosa, mas sempre se está manifestando. É claro que o receptor tem de estar, por assim dizer, sintonizado para captar o emissor. Na nossa maneira de viver e de pensar, há tantas interferências perturbadoras que não somos capazes de captar o som... É claro que Ele não fala de forma ruidosa, mas sim através de sinais e dos acontecimentos da vida, e através das outras pessoas. É necessário, pois, ter uma certa vigilância, e perseverança para não ser dominado pelas coisas que ocupam o primeiro plano”[3]. Esta capacidade de atenção tem muito a ver com o recolhimento interior – às vezes também exterior – e é algo que temos que treinar. Para ouvir a Deus é necessário ter momentos em que pausamos a movimentação do dia a dia e enfrentamos a força da solidão com Ele. Precisamos de silêncio.
A verdade é que Deus nos fala de mil maneiras. Pode ser que estejamos tão acostumados com os seus dons, que já não reparamos, que não o reconheçamos, como aconteceu com os conterrâneos de Jesus: “Não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos não são Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não estão todas conosco? De onde, então, lhe vem tudo isso?” (Mt 13,55-56). Temos que pedir ao Espírito Santo que dilate as nossas pupilas, abra os nossos ouvidos, purifique o nosso coração e ilumine a nossa consciência para sabermos reconhecer o seu sussurro incessante, esse rumor imortal dentro de nós.
Deus já falou conosco
Quando Jesus respondeu aos discípulos de João Batista enumerando os seus sinais – “cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa-Nova” (Mt 11,5) – está anunciando o cumprimento das antigas profecias da Sagrada Escritura sobre o Messias. E Deus nos falou e nos fala a cada um, de maneira eminente, por meio da Sagrada Escritura: “nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles”[4]. Por isso, “a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem; porque a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos”[5]. As palavras da Bíblia não só são inspiradas por Deus, como também inspiradoras de Deus.
De maneira especial ouvimos a Deus nos Evangelhos, que recolhem as palavras e atos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim enfatiza o autor da Carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2). Santo Agostinho considerava que o Evangelho era “a boca de Cristo: está sentado no Céu, mas não deixa de falar na terra”[6]. Por isso a nossa oração vive da meditação do Evangelho; lendo, meditando, relendo, gravando na memória, considerando uma e outra vez as suas palavras, Deus nos fala ao coração.
São Josemaria, seguindo a tradição da Igreja, recomendava continuamente escutar a Deus por meio da meditação dos evangelhos
São Josemaria, seguindo a tradição da Igreja, recomendava continuamente escutar a Deus por meio da meditação dos evangelhos: “Meu conselho é que, na oração, cada um intervenha nas passagens do Evangelho, como mais um personagem. Primeiro, imaginamos a cena ou o mistério, que servirá para nos recolhermos e meditar. Depois, empregamos o entendimento para considerar este ou aquele traço da vida do Mestre: seu Coração enternecido, sua humildade, sua pureza, seu cumprimento da Vontade do Pai. Depois, contamos-lhe o que nos costuma ocorrer nessas matérias, o que sentimos, o que nos está acontecendo. É preciso permanecermos atentos, porque talvez Ele nos queira indicar alguma coisa: e surgirão essas moções interiores, o cair em si, essas reconvenções”[7]. Nosso esforço se expressa em ações concretas: imaginar a cena, intervir nas passagens, considerar uma característica do Mestre, contar-lhe o que acontece conosco... E depois vem essa possível resposta de Deus: indicar-nos tal coisa, suscitar moções interiores em nossa alma, fazer-nos perceber algo. Assim se constrói o diálogo com Ele.
Em outro momento, são Josemaria também nos animava a contemplar e imitar Jesus Cristo com estas palavras: “Sê um personagem mais naquele divino enredo, e reage. Contempla os milagres de Cristo, ouve o fluxo e refluxo da multidão à sua volta, troca palavras de amizade com os primeiros Doze... Olha o Senhor nos olhos e enamora-te d’Ele, para seres outro Cristo”[8]. Contemplar, ouvir, trocar palavras de amizade, olhar... são ações que requerem despertar e fazer funcionar as nossas faculdades e sentidos, a nossa imaginação e a nossa inteligência. Porque cada um de nós está ali, em cada página do evangelho. Cada cena, cada ato de Jesus, está dando sentido e ilumina a minha vida. Suas palavras se dirigem a mim e sustentam a minha existência.
José Brage
Foto: Benjamin Davies, disponível em Unsplash.
[1] Francisco, Ex. ap. Christus vivit, 25/03/2019, n. 285.
[2] São Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 273; em Andrés Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. I, pp. 352-353.
[3] Joseph Ratzinger, O sal da terra, p. 26.
[4] Concilio Vaticano II, Const. dog. Dei Verbum, n. 21. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2700.
[5] Concilio Vaticano II, Const. dog. Dei Verbum, n. 25. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2653.
[6] Santo Agostinho, Sermão 85, 1.
[7] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 253.
[8] São Josemaria, anotações de uma meditação, 12-X-1947; em Enquanto nos falava pelo caminho, pg. 38.