É importante, porém, saber discernir o que é o perdão diante de um mal que sofremos, causado pelos outros — propositalmente ou não. Se alguém nos pisar no ônibus cheio, mas pedir desculpas com amabilidade, normalmente não teremos muita dificuldade em esboçar um sorriso, mesmo que o nosso pé esteja doendo. Somos conscientes de que o outro não nos causou o incômodo propositadamente, mas por descuido ou empurrado pela força da gravidade. Não é responsável por sua ação. Nesse caso, não será necessário exercitar o perdão, pois este se refere a um mal que alguém nos ocasionou voluntariamente.
Uma reflexão preliminar
Quando falamos do autêntico perdão movemo-nos num terreno muito mais profundo. Um pisão no pé por descuido não tem importância, mas uma ferida no coração humano causada pela livre atuação de outra pessoa tem. Todos nós sofremos, de vez em quando, injustiças, humilhações e rejeições; alguns têm de suportar diariamente torturas, não só na cadeia, mas também no trabalho ou na própria família. É verdade que ninguém pode nos fazer tanto mal como quem deveria nos amar. A única dor que destrói mais do que o ferro é a da injustiça que procede dos nossos familiares, dizem os árabes.
Não é só pela injustiça que o nosso coração sofre. Pode sofrer também pela infidelidade, pela corrupção, ou pelo desgaste. O amor pode esfriar pelo cansaço diário, pela desatenção e pelo estresse, pode desaparecer oculta e silenciosamente. Casais aparentemente muito unidos podem sofrer “divórcios interiores”, podem viver externamente juntos, porém, desunidos interiormente, na mente e no coração. Podem conviver apenas tolerando um ao outro, sem terem uma ligação esponsal plena.
É possível reagir de formas diferentes perante às feridas que recebemos por causa dos outros. Podemos bater naqueles que nos bateram, ou falar mal dos que falaram mal de nós. É uma pena gastar energias em aborrecimentos, receios, rancores ou desespero; e pior ainda é fechar-se para não sofrer mais. Só no perdão brota uma nova vida.
O perdão consiste em renunciar à vingança e querer, apesar de tudo, o melhor para quem nos ofendeu. A tradição cristã oferece testemunhos impressionantes dessa atitude. Temos o exemplo famoso de Santo Estevão, o primeiro mártir, que morreu rezando pelos que o apedrejavam. Em nossos dias, há ainda também muitos exemplos. Em 1994, um monge trapista chamado Christian foi morto na Argélia com outros monges que tinham permanecido no seu mosteiro, devido a uma perseguição religiosa. Christian deixou uma carta para a sua família ler depois da sua morte. Nela agradecia a todos os que tinha conhecido e dizia: “Neste agradecimento, certamente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje… E também você, amigo de última hora, que não terá consciência do que estiver fazendo. Sim, quero agradecer a você, digo este ‘obrigado’ e este ‘a-Deus’. Que Deus, nosso Pai, nos conceda voltar a ver-nos no paraíso, se for do seu agrado”.
Talvez pensemos que esses são casos reservados a alguns heróis; que são ideais belos, porém mais admiráveis do que imitáveis, e que estão muito longe das nossas experiências pessoais.
Uma mãe pode perdoar o assassino do seu filho? Podemos perdoar a uma pessoa que nos deixou numa situação completamente ridícula diante dos outros, que tirou a nossa liberdade ou dignidade, que nos enganou, difamou ou destruiu algo que era muito importante para nós? Estas são algumas das situações existenciais em que a pergunta deve ser feita.
I. Que quer dizer “perdoar”?
O que é o perdão? O que eu faço quando digo a uma pessoa “eu te perdoo”?
Perdoar é rejeitar a vingança e os rancores e dispor-se a ver o agressor como uma pessoa digna de compaixão. Não é esquecer a injustiça. Pressupõe um mal que alguém nos ocasiona, realizado com toda liberdade. Vamos considerar esses elementos com mais atenção.
1. Reagir perante um mal
Em primeiro lugar, deve tratar-se realmente de um mal realizado contra nós. Se um cirurgião me extirpar um braço extremamente infeccionado, posso sentir dor e tristeza, até posso ficar furioso com o médico, mas não preciso perdoar-lhe nada, pois fez-me um grande bem: salvou a minha vida. Situações semelhantes podem ocorrer na educação. Os bons pais não concedem aos filhos todos os caprichos que eles pedem; formam-nos na fortaleza. Uma professora me disse numa ocasião: “Não me importa o que os meus alunos pensem hoje sobre mim. O que importa é o que pensem dentro de trinta anos”. O perdão só tem sentido, quando alguém recebeu um dano objetivo da parte de outra pessoa.
Por outro lado, perdoar não consiste, de modo algum, em não querer ver esse dano, em colori-lo ou suavizá-lo. Alguns passam pela vida sem dar importância às injúrias com que são tratados por seus colegas ou cônjuges, porque pretendem escapar de qualquer conflito buscando a paz a qualquer preço, ou porque desejam viver num ambiente harmonioso, ou porque tudo lhes dá na mesma. Não dão importância, se os outros não lhes dizem a verdade; não dão importância se os outros os utilizam como meros objetos para conseguir fins egoístas. Não dão importância à fraude, nem ao adultério. Essa atitude é perigosa porque pode levar a uma completa cegueira perante os valores. A indignação e a ira são reações normais e até necessárias em algumas ocasiões. Quem perdoa, não fecha os olhos ante o mal; não nega que existe objetivamente uma injustiça. Se o negasse, não teria nada a perdoar.
Se alguém se acostumasse a se calar sempre, talvez pudesse, por algum tempo, gozar de uma aparente paz, mas, no fim, pagaria um preço muito alto por renunciar à liberdade de ser ele mesmo. Esconderia e sepultaria as suas frustrações no mais profundo de seu coração, por trás de um grosso muro que ele próprio teria levantado para se proteger. E nem sequer repararia na sua falta de autenticidade, pois é normal que uma injustiça doa e deixe uma ferida. Se não se olha a ferida de frente, não se pode curá-la. Portanto, agindo assim, fugimos permanentemente da própria intimidade (isto é, de nós mesmos) e a dor corroerá lenta e irremediavelmente a nossa pessoa. As pessoas podem fazer uma viagem ao redor do mundo ou até mudar de cidade, mas ninguém pode fugir do sofrimento.
Toda dor ignorada retorna pela porta dos fundos. Permanece por longo tempo como experiência traumática e pode ser a causa de feridas perpétuas. Uma dor oculta pode levar, em alguns casos, a que uma pessoa se torne azeda, obsessiva, medrosa, nervosa ou insensível; que rejeite uma amizade, ou que tenha pesadelos. Mesmo sem querer, mais cedo ou mais tarde, reaparecerão as lembranças. Afinal das contas, muitos reparam que talvez tivesse sido melhor encarar direta e conscientemente a experiência da dor. Encarar um sofrimento de maneira adequada é a chave para conseguir a paz interior.
2. Atuar com liberdade
O ato de perdoar é livre. É a única reação que não se limita a “re-agir”, como o conhecido princípio “olho por olho, dente por dente”. O ódio provoca violência, e a violência justifica o ódio. Quando perdoo, coloco um ponto final nesse círculo vicioso; impeço que essa reação em cadeia continue indefinidamente. Quando perdoo, liberto o outro, que já não fica submetido ao processo iniciado. Mas, em primeiro lugar, liberto-me a mim mesmo. Começo a soltar-me dos aborrecimentos e rancores. Não estou “re-agindo” de modo automático, mas crio um novo começo, também em mim mesmo.
Superar as ofensas é uma tarefa muito importante, porque o ódio e a vingança envenenam a alma. O filósofo Max Scheler afirma que uma pessoa ressentida se intoxica. O outro o feriu, e não se consegue sair desse ponto. A pessoa ferida fecha-se nela, se instala e isola. Fica presa ao passado. Alimenta o seu rancor com repetições e repetições do mesmo acontecimento. E assim arruína a sua vida.
Os ressentimentos fazem com que as feridas infeccionem dentro de nós e exerçam uma influência pesada e devastadora, criando uma espécie de mal-estar e de insatisfação gerais. Consequentemente, quem se deixa levar por eles não se sentirá feliz consigo mesmo e nem se encontrará contente em nenhum lugar. As lembranças amargas podem acender sempre de novo a ira e a tristeza, podem levar a depressões. Um ditado chinês diz: “Aquele que procura vingança cava duas fossas”.
No seu livro, “My First White Friend”, uma jornalista norte americana, negra, descreve como a opressão que o seu povo sofreu nos Estados Unidos a levou, em sua juventude, a odiar os brancos, “porque lincharam e mentiram, nos fizeram prisioneiros, nos envenenaram e eliminaram”.
A autora confessa que, depois de um tempo, chegou a reconhecer que o seu ódio, por muito compreensível que fosse, estava destruindo a sua identidade e a sua dignidade. Ficava completamente cega diante dos gestos de amizade de uma moça branca no colégio. Aos poucos descobriu que, em vez de esperar que os brancos pedissem perdão pelas suas injustiças, ela tinha que pedir perdão pelo seu próprio ódio e pela sua incapacidade de olhar para um branco como pessoa, e não como uma raça de opressores. Encontrou o inimigo dentro de si mesma, formado pelos preconceitos e rancores que a impediam de ser feliz.
Feridas não cicatrizadas podem reduzir muito a nossa liberdade. Podem causar reações desproporcionadas e violentas que surpreendam a nós mesmos. Uma pessoa ferida, fere os outros. E, como muitas vezes esconde o seu coração por trás de uma couraça, pode parecer dura, inacessível e intratável. Na realidade, não é assim. Só precisa se defender. Parece dura, mas é insegura, atormentada pelas experiências negativas.
Precisamos descobrir as chagas para poder limpá-las e curá-las. Colocar ordem no próprio interior pode ser um passo para tornar possível o perdão. Mas esse passo é extremamente difícil e, às vezes, não o conseguimos dar. Podemos renunciar à vingança, mas não à dor. Aqui se vê claramente que o perdão, embora ligado a experiências afetivas, não é um sentimento. É um ato da vontade que não corresponde ao nosso estado psíquico. Podemos perdoar chorando.
Quando uma pessoa realiza o ato de perdoar com liberdade, muitas vezes, o sofrimento perde a sua amargura e pode desaparecer, com o tempo. “As feridas transformam-se em pérolas”, diz Santa Hildegarda de Bingen.
3. Lembrar o passado
É natural que o tempo “cure” algumas chagas. Não as fecha totalmente, mas faz com que sejam esquecidas. Alguns falam da “validade das nossas emoções”. Chega um momento em que uma pessoa já não chora, nem se sente ferida. Isso não significa que tenha perdoado o seu agressor, mas que tem “vontade de viver”. Um determinado estado psíquico, por mais intenso que seja, não pode ser permanente. Esse estado é seguido por um lento processo de desprendimento, pois a vida continua. Não podemos ficar sempre ali, presos ao passado, perpetuando em nós a dor sofrida. Se permanecermos na dor, bloqueamos o ritmo da natureza.
A memória pode ser um canteiro de frustrações. A capacidade de se soltar e de esquecer é importante para o ser humano, mas não tem nada a ver com a atitude de perdoar. Essa atitude não consiste em esquecer tudo como se nada tivesse acontecido. Exige recuperar a verdade da ofensa e da justiça, que, muitas vezes, fica camuflada ou distorcida. O mal feito deve ser reconhecido e, na medida do possível, reparado. É necessário “purificar a memória”. Uma memória sadia pode ser mestra da vida. Se eu estiver em paz com o passado, posso aprender muito com os acontecimentos vividos. Lembro as injustiças passadas para que não se repitam e lembro-me delas como perdoadas.
4. Renunciar à vingança
Como o perdão exprime a nossa liberdade, também é possível negarmos esse dom a alguém. O judeu Simon Wiesenthal conta, em um de seus livros, suas experiências nos campos de concentração durante a segunda Guerra Mundial. Um dia, uma enfermeira aproximou-se dele e pediu-lhe que a seguisse. Levou-o a um quarto onde um jovem oficial das SS estava morrendo. Esse oficial contou a sua vida ao preso judeu Simon Wiesenthal. Falou-lhe da sua família, da sua formação, e como se tornou um colaborador de Hitler. Pesava-lhe especialmente um crime em que tinha participado: os soldados sob o seu comando prenderam em uma casa 300 judeus e depois os queimaram. Todos morreram.
“Sei que é horrível — disse o oficial. Durante as longas noites que estou esperando a minha morte, sinto uma grande urgência de falar com um judeu sobre isso e pedir-lhe perdão de todo coração”. Wiesenthal conclui seu relato dizendo: “De repente compreendi e, sem dizer uma única palavra, saí do quarto”. Outro judeu, que também estava por ali, disse: “Não, não perdoei nenhum dos culpados, não estou disposto agora nem nunca a perdoar nenhum deles”.
Existem, por outro lado, pessoas que nunca se consideram feridas. Não porque não queiram ver o mal e reprimam a dor, mas o contrário: percebem as injustiças com objetividade, muito claramente, mas não se deixam incomodar por elas. “Mesmo que eles nos matem, eles não podem fazer-nos nenhum mal”, é um dos seus lemas. Conseguiram um domínio inabalável de si mesmos, parecer ter uma ironia insensível. Sentem-se superiores aos outros e mantém interiormente uma distância tão grande para com eles que ninguém pode tocar em seu coração. Como nada lhes afeta, não recriminam nada de seus opressores.
A Lua se importa com o latir de um cachorro? É a atitude dos estoicos e talvez também de alguns “gurus” asiáticos que vivem solitários em sua “magnanimidade”. Nem sequer se dignam olhar para aqueles que absolvem sem nenhum esforço. Não percebem a existência do “parasita”. O problema consiste em que, nesse caso, não existe nenhuma relação interpessoal. Não se quer sofrer e, portanto, se renuncia ao amor. Uma pessoa que ama torna-se sempre pequena e vulnerável. Fica perto dos outros. É mais humano amar e sofrer muito ao longo da vida do que adotar uma atitude distante e superior aos outros. Quando alguém nunca se sente ferido pela atuação do outro, o perdão é supérfluo. Não existe a ofensa e o ofendido.
5. Olhar para o agressor em sua dignidade pessoal
O perdão começa quando, graças a uma força nova, uma pessoa renuncia a qualquer vingança. Não se refere às outras pessoas com base em suas experiências dolorosas. Evita julgá-las e desvalorizá-las, e está disposta a ouvi-las com o coração aberto.
O segredo é não identificar o agressor com a sua obra. Todo ser humano é maior do que a sua culpa. Um exemplo eloquente nos dá Albert Camus quando se dirige numa carta pública aos nazistas e fala dos crimes cometidos na França: “E apesar vocês, continuarei a chamando-os de homens… Esforçamo-nos em respeitar em vocês o que vocês não souberam respeitar nos outros”. Cada pessoa está acima dos seus piores erros.
A história de um general do século XIX pode levar-nos a pensar. Quando estava no leito de morte, um sacerdote perguntou-lhe se perdoava os seus inimigos. “Não é possível, respondeu o general. Mandei executar todos”.
O perdão de que se fala aqui não consiste em saldar uma pena, mas é acima de tudo, uma atitude interior. Significa viver em paz com as lembranças e não perder a estima por ninguém. Também é possível considerar uma pessoa falecida tendo em conta a sua dignidade. Ninguém está completamente corrompido; em todos brilha uma luz.
Ao perdoar, dizemos a uma pessoa: “Não, você não é assim. Sei quem você é! Na realidade, você é muito melhor”. Queremos todo o bem possível para o outro, o seu desenvolvimento pleno, a sua alegria mais profunda e nos esforçamos por amá-lo do fundo do coração, com grande sinceridade.
II. Atitudes que nos preparam para perdoar
Depois de esclarecer, em termos gerais, em que consiste o perdão, vamos considerar algumas atitudes que nos dispõem a realizar este ato que nos liberta e também liberta aos outros.
1. Amor
Perdoar é amar intensamente. O verbo latino “per-donare” (literalmente, “para doar”) o exprime claramente: o prefixo “per” intensifica o verbo “donare”. É dar abundantemente, entregar-se até o extremo. O poeta Werner Bergengruen diz que o amor se prova na fidelidade e se completa no perdão. Porém, é muito difícil amar quando alguém nos ofendeu seriamente. É necessário, em um primeiro passo, separarmo-nos de algum modo do agressor, mesmo que seja só interiormente. Enquanto a faca estiver na ferida, ela nunca se cicatrizará. É preciso retirar a faca, adquirir distância, e só então poderemos ver o seu rosto. Certo desprendimento é condição prévia para poder perdoar com todo o coração, e dar ao outro o amor que precisa.
Uma pessoa só pode viver e desenvolver-se de forma saudável quando é aceita tal como é, quando alguém a ama de verdade e lhe diz: “É bom que você exista”. É necessário não só “estar aqui” na terra, mas também a confirmação do ser, para uma pessoa se sentir feliz no mundo, para que seja possível adquirir autoestima e ser capaz de relacionar-se com os outros através da amizade. Nesse sentido, foi dito que o amor continua e aperfeiçoa a obra da criação. Amar uma pessoa significa torná-la consciente do seu próprio valor, de sua própria beleza.
Uma pessoa amada é uma pessoa aprovada, que pode responder ao outro com toda a verdade: “preciso de você para ser eu mesmo”. Se eu não perdoar ao outro, de alguma maneira tiro o seu espaço para viver e desenvolver-se de modo saudável. Como resultado, ele está se afastando cada vez mais de seu ideal e auto realização. Em outras palavras, e falando num sentido espiritual, conduzo-o à morte. Podemos matar uma pessoa com palavras injustas e duras, com maus pensamentos ou, simplesmente, negando-lhe o perdão. O outro pode então tornar-se triste, passivo e amargo. Kierkegaard fala do “desespero daquele que quer desesperadamente ser ele mesmo”, mas não consegue porque os outros o impedem.
Quando, por outro lado, concedemos o perdão, ajudamos o outro a voltar à sua própria identidade, a viver com uma nova liberdade e com uma felicidade mais profunda.
2. Compreensão
É preciso compreender que cada pessoa precisa de mais amor do que “merece”. Cada pessoa é mais frágil do que parece, que todos somos frágeis e podemos nos cansar. Perdoar é ter a firme convicção de que, em cada pessoa, por trás de todo mal, existe um ser humano frágil e capaz de mudar. Perdoar significa acreditar na possibilidade de transformação e de evolução dos outros.
Se uma pessoa não perdoa, pode ser que leve os outros a sério demais, que exija demais deles. Porém, “levar um homem completamente a sério significa destruí-lo” adverte o filósofo Robert Spaemann. Todos somos frágeis e falhamos com frequência. E muitas vezes não conhecemos as consequências das nossas ações: “Não sabemos o que estamos fazendo”. Quando, por exemplo, uma pessoa está chateada, diz coisas que, no fundo, não pensa nem quer dizer. Se eu a levar completamente a sério em cada minuto do dia e começar a “analisar” o que ela diz quando está com raiva, poderei causar conflitos sem fim. Se levarmos em conta todas as falhas dessa pessoa, acabaríamos transformando até a pessoa mais encantadora num monstro.
Temos que acreditar nas capacidades dos outros e mostrar que acreditamos. É impressionante ver como uma pessoa pode se transformar quando é tratada com confiança, como ela muda, se for tratada de acordo com o melhor conceito que se tenha dela. Há muitas pessoas que sabem animar os outros a serem melhores. Comunicam-lhes a segurança de que há muitas coisas boas e belas dentro delas, apesar de todos os seus erros e quedas. Comportam-se de acordo com o que diz a sabedoria popular: “se quiseres que os outros sejam bons, trata-os como se já o fossem”.
3. Generosidade
Perdoar exige um coração misericordioso e generoso. Significa ir além da justiça. Há situações tão complexas nas quais a simples justiça se torna impossível. Quando algo foi roubado, devolve-se e pronto. Quando algo foi quebrado, conserta-se ou substitui-se o quebrado. Mas, e se alguém perder algo mais sério: um órgão, um parente ou um bom amigo? É impossível restituí-lo com justiça. Justamente aí, onde o castigo nunca salda a perda, que o perdão tem espaço.
O perdão não anula o direito, mas o excede infinitamente. Às vezes, não existe solução justa no mundo exterior. Mas pelo menos o dano interior pode ser mitigado, acompanhando-o de carinho, de ânimo ou de consolo. “Convencei-vos de que só com a justiça não resolvereis nunca os grandes problemas da humanidade — afirma São Josemaria Escrivá. A caridade tem que ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica”. E São Tomás resume: “A justiça sem misericórdia é crueldade”.
O perdão procura vencer o mal com abundância de bem. É incondicional por natureza, pois é um dom gratuito de amor, um dom sempre imerecido. Isso significa que aquele que perdoa não exige nada de seu agressor, nem sequer que sinta pena pelo que fez. Antes, muito antes de o agressor buscar a reconciliação, quem ama já perdoou.
O arrependimento do outro não é condição necessária para o perdão, embora seja conveniente. É, com certeza, muito mais fácil perdoar quando o outro pede perdão. Mas, às vezes, é necessário compreender que naqueles que agem mal podem existir bloqueios que os impedem de admitir a sua culpa.
Há um modo “impuro” de perdoar: quando se faz com cálculos, especulações e metas. “Eu perdoo você para você perceber a barbaridade que fez. Perdoo-o, para que melhore”. Podem ser fins educativos louváveis, mas, nesse caso, não seria o verdadeiro perdão, pois ele deve ser concedido sem nenhuma condição, como o amor autêntico. “Perdoo porque, apesar de tudo, o amo.”
Posso perdoar o próximo inclusive sem que o saiba, quando o outro não irá entender o perdão. É um presente que dou, mesmo que não se fique sabendo, ou que não saiba por quê.
4. Humildade
É necessária prudência e delicadeza para descobrir como mostrar ao próximo o perdão. Às vezes, não é aconselhável fazê-lo logo, se a outra pessoa ainda estiver sensível. Pode parecer uma vingança oculta, talvez se sinta mais humilhada e chateada. De fato, oferecer a reconciliação pode parecer uma acusação. Pode esconder uma atitude farisaica: quero mostrar que tenho razão e que sou generoso. Neste caso, o que impede de chegar à harmonia, não é a obstinação do outro, mas a minha própria arrogância.
Por outro lado, oferecer o perdão é sempre um risco, pois esse gesto não garante a boa recepção e pode irritar o agressor em qualquer momento. “Quando alguém perdoa, abandona-se no outro, em seu poder, e fica exposto ao que o outro pode fazer e dá-lhe a liberdade de ofender e de ferir (de novo)”. Aqui vemos que é preciso humildade para buscar a reconciliação.
Quando for oportuno, talvez depois de muito tempo, convém ter uma conversa com o outro. Nela podemos dar a conhecer os nossos motivos e razões, o nosso ponto de vista; e devemos ouvir atentamente os argumentos do outro. É importante ouvir até o fim e fazer um esforço para captar também as palavras não ditas. De vez em quando, é necessário “trocar de posição”, pelo menos mentalmente, e tratar de ver o mundo a partir da perspectiva dos outros.
O perdão é um ato de força interior e não de vontade inflexível. É um ato humilde e respeitoso para com o próximo e não de domínio e humilhação. Para que seja verdadeiro e “puro”, quem perdoa deve evitar até o menor sinal de uma “superioridade moral” que, em princípio, não existe. Não somos capazes de julgar o que se esconde no coração dos outros. Nas conversas devemos evitar acusar de novo ao agressor. Quem demonstra a própria indefectibilidade, não oferece realmente o perdão. Enfurecer-se pela culpa do outro pode conduzir com facilidade ao obscurecimento da própria culpa, se houver. Devemos perdoar como pecadores que somos, não como justos, já que o perdão é mais para compartilhar (estando no mesmo nível) do que para conceder (estando num nível superior).
Todos nós precisamos do perdão, porque todos nós machucamos uns aos outros, mesmo que, às vezes, não percebamos isso. Precisamos do perdão para desfazer os nós do passado e recomeçar. É importante que cada pessoa reconheça a própria fraqueza, as próprias falhas, que talvez levaram os outros a um comportamento ruim. Não hesite em pedir perdão aos outros.
5. Abrir-se à graça de Deus
Não podemos negar que, em certos casos, a exigência de perdão pode parecer além de nossas forças. É possível perdoar quando o opressor não se arrepende, insulta a sua vítima e acredita que fez a coisa certa? Talvez nunca seja possível perdoar com todo o coração, pelo menos se contarmos apenas com as forças humanas.
Mas um cristão nunca está só. Sempre pode contar com a ajuda poderosa de Deus e experimentar a alegria de ser amado. O próprio Deus nos declara seu grande amor: “Não tenhas medo que fui eu quem te resgatou, chamei-te pelo próprio nome, tu és meu! Se tiveres de atravessar pela água, contigo estarei e a inundação não te vai submergir! Pois és muito precioso para mim e, mesmo que seja alto o teu preço, é a ti que eu quero”.
Um cristão também pode experimentar a alegria de ser perdoado por Deus. A culpa toca a raiz do nosso ser: afeta a nossa relação com Deus. Enquanto nos estados totalitários as pessoas que — na opinião das autoridades — se “desviavam”, eram colocadas em prisões ou internadas em clínicas psiquiátricas, no Evangelho de Jesus Cristo, pelo contrário, são convidadas a uma grande festa: a festa do perdão. Deus sempre aceita o nosso arrependimento e convida-nos a mudar. A sua graça opera uma profunda transformação em nós: liberta-nos da corrupção interior e cura as nossas feridas.
É sempre Deus que ama primeiro, e é Ele que nos perdoa primeiro. É Deus que nos dá as forças para cumprir este mandamento cristão que é, provavelmente, o mais difícil de todos: amar os inimigos e perdoar os que nos fazem mal. Mas, no fundo, não se trata tanto de uma exigência moral — como Deus o perdoou, você deve perdoar os outros — mas de um imperativo existencial. Se você realmente entende o que aconteceu com você, não pode deixar de perdoar ao outro. Se não o fizer, não sabe o que Deus lhe deu.
O perdão faz parte da identidade do cristão, a sua ausência significaria, portanto, a perda da identidade cristã. Por isso, os seguidores de Cristo de todos os séculos olharam para o seu Mestre, que perdoou os seus próprios verdugos. Eles souberam transformar tragédias em vitórias.
Com a graça de Deus, nós também podemos encontrar o sentido das ofensas e injustiças da nossa vida. Nenhuma experiência que adquirimos é supérflua. Pelo contrário, podemos sempre aprender alguma coisa. Também quando uma tempestade nos surpreende ou devemos suportar o frio ou o calor.
Sempre podemos aprender algo que nos ajude a compreender melhor o mundo, os outros e nós mesmos. Gertrud von Le Fort diz que não só o dia claro, mas também a noite escura tem seus milagres. “Existem certas flores que só florescem nos desertos. Há estrelas que só podem ser vistas em lugares desabitados. Há algumas experiências do amor de Deus que só se vivem quando nos encontramos no mais completo abandono quase à beira do desespero”.
Reflexão final
Perdoar é um ato de fortaleza espiritual, um ato libertador. É um mandamento cristão e é muito mais que um grande alívio. Significa escolher a vida e agir com criatividade.
Contudo, não parece adequado sugerir comportamentos às vítimas. É compreensível que uma mãe não possa perdoar imediatamente o assassino do seu filho. Ela deve ter todo o tempo que precisa até conseguir perdoar. Se alguém a acusasse de rancorosa ou vingativa, aumentaria sua ferida. São Tomás de Aquino, o grande teólogo da Idade Média, aconselha àqueles que sofrem, entre outras coisas, que não quebrem a cabeça com argumentos racionais, nem leiam ou escrevam. Antes devem tomar um banho, dormir e conversar com um amigo. No início, geralmente, não somos capazes de aceitar uma grande dor. Necessitamos tranquilizar-nos. Pode ajudar-nos muito seguir o ritmo da natureza. Só uma pessoa de alma muito pequena poderia se escandalizar com estes conselhos.
Perdoar pode ser um trabalho interior autêntico e duro. Mas, com a ajuda de bons amigos e, sobretudo, com a ajuda da graça divina, é possível fazer isso. “Com meu Deus salto os muros”, canta o salmista.
Se conseguirmos criar uma cultura do perdão, poderemos construir juntos um mundo habitável, onde haverá mais vitalidade e fecundidade. Poderemos projetar juntos um futuro realmente novo. Para terminar estas linhas, podem nos ajudar estas sábias palavras: “Quer ser feliz por um momento? Procure a vingança. Quer ser feliz para sempre? Perdoe”.