Em março de 2018, Eloísa estava saindo da missa quando ouviu uma voz muito fraca chamando-a: “Elitooo”. Ao se virar, viu o marido Manolo, que estava muito mal.... Levou-o para o hospital, onde lhe deram três dias de vida. Ele tinha câncer de próstata, DPOC e metástase óssea progressiva.
Os filhos começaram a se organizar em turnos para acompanhá-lo, mas ela assumiu a responsabilidade de cuidar dele. “Os outros têm família, trabalham ...”. Em junho Manolo teve alta e Eloísa o levou para casa.
Eles não viviam juntos há trinta e cinco anos, embora nunca tivessem perdido completamente o contato. Em todas as celebrações familiares, ela pedia ao resto da família que o convidasse. Cinco filhos, oito netos e dois bisnetos formavam uma corrente forte demais para ser quebrada.
Um casamento em jogo
Em 1991, Eloísa sofreu uma forte depressão devido ao vício de seu marido pelo jogo. Mentiras, ausências e muito sofrimento. O casal morava no centro de Cádiz e seus filhos já eram maiores de idade, então um dia ela o deixou e voltou para o bairro natal, La Viña. Um bairro com uma luz espetacular e cortiços, onde o banheiro era compartilhado com outros moradores.
Eloísa só foi à escola até os doze anos, mas nunca lhe faltou trabalho, mesmo quando os filhos eram pequenos. Dedicou-se primeiro à venda de cosméticos e depois a cuidar de doentes, o que lhe abriu um panorama totalmente novo, também em sua casa.
Ao problema de seu marido com o jogo uniu-se o vício de um dos filhos em drogas. Sérgio era o quarto. Desde pequeno foi muito especial. Sofria com terrores noturnos de forma desproporcional, mas os médicos não davam importância a isso pois era um tempo em que as doenças psíquicas não eram tratadas como são agora. Com o tempo, os problemas se agravaram. Era a época da “rota do bacalhau” (um movimento da contracultura dos anos 80-90 na Espanha) e do auge das pílulas de ecstasy que fisgaram Sérgio.
Eloísa sempre se interessou em entender melhor o que acontecia com o seu filho e estudou muito o tema. “Fui me formando – e continuo fazendo isso – em patologia dupla – quando o paciente sofre de um vício e um transtorno psiquiátrico ao mesmo tempo. Esses pacientes sofrem muito. Eles são uma batata quente e não têm acesso a tratamentos integrais. As pessoas acham que são os vícios que levam você a um transtorno mental, mas nem sempre é nessa ordem”.
Luta contra o estigma
Era 1993 e ela continuava arrasada. Um dia encontrou uma amiga de infância que a convidou para umas aulas de doutrina católica na paróquia de Rosário. “Parecia chinês para mim, mas eu fui”. Isso lhe deu forças. Eloísa começou a ter um motivo para se levantar de manhã: encontrar-se com um grupo de catequistas.
No início não sabia rezar, nem nada. “Falavam-me do 'Senhor' e eu não sabia quem era, pois eu sempre o tinha chamado de Deus! E quando eu era pequena me falavam sobre Ele como ‘aquele que vê tudo, menina, e vai castigar você…’”.
Algo começou a despertar por dentro ... para rezar. Tanto que passaram a chamá-la de “a louca do sacrário”. Procurava, perguntava tudo, não se envergonhava: “Aprendi e continuo a aprender, embora logo vá cumprir 70 anos”. Confessou-se. Tinha perdido a conta de há quanto tempo não fazia isso. Começou a ir a um movimento de famílias anônimas, formado por pessoas que tinham parentes com algum tipo de transtorno, e acabou sendo a coordenadora. Em 2007, fundou a associação Mulheres de Aço para ajudar as pessoas de bairro com situações semelhantes à sua. “Lamento muito que as pessoas se acostumem a ver pessoas viciadas jogadas por aí. São doentes e temos que aprender a compreendê-los. Sem julgá-los ou estigmatizá-los”.
“Sei que Deus me deu o carisma de cuidar dos doentes que ninguém quer, mas esse é o carisma de Jesus Cristo. Em minha casa, faleceram oito pessoas da minha família que foram cuidadas por mim. Fui aprendendo a cuidar de uma necrose, a colocar uma sonda... As pessoas do ambulatório já me conhecem e às vezes me chamam para conversar com os familiares de outros pacientes”.
Em 2015, o seu encontro com Deus deu mais um passo. “Conheci Mari Toni, supernumerária do Opus Dei, que foi o meu anjo da guarda”. Com ela, Eloísa foi ao seu primeiro retiro. No caminho, no carro, ia com duas amigas que não paravam de contar desgraças e começou a sentir-se mal... Ainda bem que o marido de uma delas, que estava dirigindo, deu uma mão e falou: “assim vocês vão assustá-la”. Na verdade, era isso mesmo. “Não podemos ser profetas de calamidades! Temos que contagiar a nossa alegria, pois o Espírito Santo sabe o que precisamos em todos os momentos. Sempre peço essa alegria a Deus”.
Um ano depois, Eloísa pedia a admissão à Obra. “Estou muito contente. O Opus Dei tem sido um elo muito forte para mim. É uma grande família, não biológica, mas da alma, onde rezamos uns pelos outros. Quando alguém próximo a mim tem dificuldade por causa de alguma coisa, também o povo da missa diária, eu os levo para dar uma voltinha, porque todos precisamos de ajuda”.
Quando as amigas do bairro ficaram sabendo que ela era da Obra, não conseguiam acreditar. Até pouco tempo atrás, ela frequentemente falava mal do Opus Dei e agora o estava divulgando. “A ignorância é muito ousada, sei disso porque também critiquei muito”.
Cuidar até o final
O retorno de Manolo para casa foi difícil. Além disso, alguns meses depois, Eloísa teve que chamar uma ambulância porque Sérgio, o seu filho, chegou em casa consumido pelas drogas. Ele conseguiu sobreviver, mas não foi o único momento em que passou por uma crise deste tipo. Em várias ocasiões lhe telefonavam para avisá-la “seu filho está mal em tal lugar”, e ela ia procurá-lo. “Ele mentia mais que piscava, mas eu o amava tanto que não conseguia parar de cuidar dele. Ele sofreu muito: estava deprimido, tinha fobias...”.
Todos os dias, após a missa, Eloisa ficava algum tempo rezando e pedindo a Deus que desse um jeito no problema do seu filho para frente. Em meio ao seu desespero, veio-lhe à mente o nome de um psiquiatra que havia sido seu vizinho de infância no bairro. Ela levou Sérgio a ele e foi diagnosticado com distúrbio bipolar.
Como pode-se supor, Eloísa acabou cuidando de ambos. Como sua casa é um apartamento muito pequeno e não havia espaço para os três, ela alugou um quarto muito barato em uma rua próxima. Quando o seu marido piorava, ficava com ela e o filho ia para o quarto alugado; e quando era o contrário, eles trocavam de casa. O que morava no quarto ia todos os dias à casa de Eloísa para comer, tomar banho.... Ficaram assim durante um ano e meio.
Com os cuidados e o carinho, o seu filho melhorou e pôde continuar desenvolvendo a sua profissão: compor, tocar.... A música de confraria – um estilo de marcha, normalmente tocada nas procissões religiosas – era a sua paixão e não lhe faltava talento. Na verdade, em outubro de 2020, C. Tangana, um conhecido cantor de trap[1] escolheu uma marcha composta por Sérgio para um de seus videoclipes. A música se chama “El Amor” e serve para introduzir a canção Demasiadas mujeres. É comovente ouvir Eloisa falar sobre o cantor, alheia ao sucesso de C. Tangana, como ela o chama, porque mais do que o sucesso, o que a comove é o trabalho de seu filho e o carinho de sua banda que, como lembrança após sua morte, emoldurou a sua partitura da marcha.
Cuidar de ambos foi uma luta constante, porque Sérgio tinha surtos e Manolo ia se deteriorando pouco a pouco. Um dia, a sua pressão também subiu e tiveram que levá-la ao hospital. “Eu disse a Deus: Se minha hora chegou, que seja a sua vontade, mas você sabe muito bem que não posso deixar este panorama para meus filhos...”. E se recuperou.
Em fevereiro deste ano, Sérgio faleceu repentinamente. Tinha 45 anos de idade. Enquanto realizavam a autópsia, Eloísa voltou para casa. Não podia contar nada ao seu marido, que já estava muito doente. Ela fingia que estava tudo bem e chorava muito quando ficava sozinha.
[1] Trap – música que utiliza elementos de outros ritmos, carregando em suas letras versos sobre desigualdade social e violência e aborda experiências pessoais, familiares, consumo de drogas e a famosa ostentação.
Marcha El amor, composta por Sergio
Eloisa acompanhou Manolo dia e noite. Ela contratou uma cuidadora para ficar com seu marido em uma hora que ela aproveitava para ir à missa: “porque isso sim eu não podia deixar, é de onde tiro minhas forças”. Manolo morreu alguns dias depois. Em casa, cercado pelo amor de sua família e depois de receber a Unção dos Enfermos.
Os outros filhos são muito gratos à mãe, pois viram nela o que significa perdoar e o que o amor pode conseguir: encontrar a felicidade mesmo em meio ao sofrimento. “Podemos perdoar, podemos acolher...podemos fazer qualquer coisa! Deus nos dá as graças necessárias. Deus nos dá tudo. Estou quebrada porque tudo o que aconteceu foi muito forte, mas tenho a segurança de saber onde eles estão e essa segurança é meu consolo e minha esperança. Ambos morreram rodeados de carinho, de um amor quase infinito, e com os olhos fixos no Céu”.
Certamente, quando Sergio escreveu sua marcha El amor, pensou em sua mãe. O amor nunca é demais, mas, nesta ocasião, beirou o excesso.