A primavera da fé

Para ele foi uma graça muito grande que aconteceu de improviso. Era o dia 21 de setembro e, como muitos jovens, Jorge Bergoglio – que rondava os dezessete anos – preparava-se para sair e festejar o Dia do Estudante com os seus colegas.

Foto: Gaby Arevalo (Cathopic)

O Papa Francisco sempre considerou que a sua vocação teve início após um encontro com a misericórdia de Deus: uma confissão no dia de São Mateus, quando ele tinha 17 anos.

Apresentamos a seguir uma parte de uma série de entrevistas, publicada no livro “Papa Francisco. Conversas com Jorge Bergoglio”, em que conta aos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sérgio Rubi as suas lembranças desta data.


Decidiu iniciar a jornada visitando a sua paróquia. Era um católico praticante, que frequentava a igreja portenha de San José de Flores.

Quando chegou, encontrou um sacerdote que ele não conhecia e que lhe transmitiu uma grande espiritualidade, pelo que decidiu confessar-se com ele. Grande foi a sua surpresa ao verificar que não tinha sido apenas mais uma confissão, mas sim a confissão que despertou a sua fé. Que lhe permitiu descobrir a sua vocação religiosa, ao ponto de decidir não ir à estação de trem, para se encontrar com os seus amigos, e voltar para casa com uma firme convicção: queria... tinha de ser sacerdote.

“Nessa confissão aconteceu-me qualquer coisa estranha, não sei o que foi, mas mudou-me a vida; eu diria que me surpreenderam com a guarda em baixo [desprevenido]”, evoca mais de meio século depois. Na verdade, Bergoglio tem hoje uma interpretação para aquela perplexidade:

“Foi a surpresa, o assombro de um encontro; percebi – diz ele – que estavam à minha espera. É isso a experiência religiosa: a surpresa de nos encontrarmos com alguém que está à nossa espera. A partir desse momento, para mim, Deus é Aquele que chega primeiro. A pessoa anda à procura dele, mas é Ele que tem a iniciativa. Uma pessoa quer encontrá-lo, mas é Ele que nos encontra primeiro”, e acrescenta que não foi só a “surpresa do encontro” a desvendar a sua vocação religiosa, mas sim o modo misericordioso com que Deus o interpelou, modo esse que se transformaria, com o correr do tempo, em fonte de inspiração do seu ministério.


- Como é que a sua família reagiu, quando lhes disse que queria ser sacerdote?

- Primeiro, disse ao meu pai e ele achou muito bem. Mais ainda: sentiu-se feliz. Só me perguntou se eu estava realmente seguro da decisão. Foi ele que depois disse à minha mãe que, como boa mãe, tinha começado já a pressentir. Mas a reação dela foi diferente. “Não sei, eu não o vejo... Você tem que esperar um pouco... É o mais velho... Continua a trabalhar... Termina a faculdade”, disse ela. A verdade é que reagiu mal.

- É preciso reconhecer que o senhor não se enganou, ao escolher a qual dos dois daria a notícia em primeiro lugar.

- Certamente percebi que o meu pai ia compreender melhor. A verdade é que a mãe dele era uma referência religiosa muito forte e ele tinha herdado essa religiosidade, essa fortaleza, juntamente com a dor grande pelo desenraizamento.

Então, ele pôde viver isso com alegria. Em compensação, a minha mãe viveu-o como um despojamento.

- O que é que aconteceu depois?

- Quando entrei no seminário, a minha mãe não me acompanhou, não quis ir. Durante anos não aceitou a minha decisão. Não estávamos brigados. Só que eu ia a casa, mas ela não ia ao seminário. Quando finalmente aceitou, fê-lo pondo uma certa distância. No noviciado, em Córdoba, vinha visitar-me. Atenção! Ela era uma mulher religiosa, praticante, mas considerava que tudo tinha acontecido demasiado depressa, que era uma decisão que requeria muito tempo de maturação. Mas era coerente: lembro-me de a ver de joelhos diante de mim, ao finalizar a cerimônia da ordenação sacerdotal, pedindo-me a bênção.

- Talvez tenha pensado que não era uma coisa para o senhor... que não ia chegar longe...

- Não sei. Do que me lembro bem foi de quando o disse à minha avó, que já sabia e se fez de desentendida, e de ela me ter respondido: “Bom, se Ele te chama, bendito seja Deus”. E acrescentou imediatamente: “Por favor, não te esqueças de que as portas da casa estão sempre abertas e que ninguém te irá censurar nada se decidires voltar”. Essa atitude, que hoje diríamos de contenção perante alguém que se prepara para passar por uma prova muito importante, acabou por ser um grande ensinamento para mim para saber como me comportar perante pessoas que estão para dar um passo transcendente nas suas vidas.


- Quanto acredita ter havido de decisão sua e quanto de “escolha de Deus”?

- A vocação religiosa é um chamamento de Deus a um coração que está à espera dele, consciente ou inconscientemente. Sempre me impressionou uma leitura do Breviário que diz que Jesus olhou para Mateus numa atitude que, traduzida, seria algo assim como “olhou-o com misericórdia e escolheu-o”. Essa foi, precisamente, a maneira como eu senti que Deus olhou para mim durante aquela confissão. E essa é a maneira com que Ele me pede que olhe sempre para os outros: com muita misericórdia, e como se estivesse escolhendo-os para Ele; não excluindo ninguém, porque todos são eleitos para o amor de Deus. “Olhando-o com misericórdia e escolhendo-o” foi o lema da minha consagração como bispo e é um dos pivôs da minha experiência religiosa: o serviço para a misericórdia e a escolha das pessoas com base numa proposta. Proposta que poderia sintetizar-se coloquialmente assim: “Olha, você é amado pelo seu nome, você foi escolhido e a única coisa que lhe pedem é que se deixe amar”. Foi essa a proposta que eu recebi.

- Por isso é que o senhor diz que Deus chega sempre primeiro?

- Claro. Deus define-se perante o profeta Jeremias com estas palavras: “Sou o ramo da amendoeira”. E a amendoeira é a primeira flor a florescer na primavera. Chega sempre primeiro. João diz: “Deus amou-nos primeiro, nisto consiste o amor, em Deus ter-nos amado primeiro”. Para mim, toda a experiência religiosa, se não tiver essa dose de assombro, de surpresa, de que se nos antecipam no amor, na misericórdia, é fria, não nos envolve totalmente; é uma experiência distante que não nos leva ao plano transcendente. Embora, convenhamos, viver hoje essa transcendência é difícil pelo ritmo vertiginoso da vida, pela rapidez das mudanças e pela falta de um olhar de longo prazo. Não obstante, na experiência religiosa, são importantes os remansos. Sempre me impressionou o que Ricardo Guiraldes comenta em Dom Segundo Sombra: que a sua vida foi marcada pela água. Quando era pequeno, parecia um ribeirinho saltitante entre as pedras; quando era um homem, um rio impetuoso; e de velho, um remanso.

PAPA FRANCISCO

CONVERSAS COM JORGE BERGOGLIO

Francesca Ambrogetti e Sérgio Rubi