A descoberta da unidade de vida

Quarto artigo da série “Como as mãos de Deus”, com textos da pregação de São Josemaria sobre a família.

Procurar Deus em cada acontecimento da nossa vida: inclusive naquele momento em que temos pressa e perdemos o ônibus.

Na homilia "Amar o Mundo Apaixonadamente", cada frase tinha seu acento, cada afirmação trazia a inflexão precisa para fazer um chamado suave, mas decisivo, a cada um dos ouvintes, sem inquietações, mas com urgência cordial.

Era necessário derrubar os compartimentos estanques em nossa vida, porque cada existência não é um jogo composto de diferentes peças, engenhosamente montadas. Nem podíamos manter as partes soltas, isoladas à beira do nosso caminho para Deus.

Era precisamente nesses lugares que o próprio Deus estava esperando por nós, porque lhe interessam mais do que a cada um de nós. A textura total da tapeçaria onde a minha história se plasmava tinha que estar trançada com o fio do Amor de Deus. Ou fazia assim, ou ela ficaria permanentemente desconjuntada.

A voz do Padre fazia-se calidamente imperativa: Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como esquizofrênicos, se queremos ser cristãos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser — na alma e no corpo — santa e plena de Deus, desse Deus invisível, que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais[1].

Não era uma questão de montar uma ponte sobre os eventos humanos para encontrar Cristo. Justamente nesses atos e por meio deles é que o Espírito Santificador tinha previsto que encontraríamos a santidade. Precisávamos pedir luz para nossos olhos e saber como ver e encontrar, porque “algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir”[2].

O Padre transmitia-nos pedaços da sua própria vida, em que ele constantemente implorou ao Senhor pela luz – Domine, ut videam! – para transformar todos os momentos e circunstâncias da sua vida em ocasião de amá-lo. O Senhor o ouviu e falou com ele usando, às vezes, até os objetos mais materiais: uma colher de estanho nas mãos de um mendigo o ajudou a entender a verdadeira pobreza evangélica[3]; na batida dos cântaros de metal de um leiteiro chamado João, ele percebeu o que significava a simplicidade na oração[4]; e nos grampos de uma sopeira recomposta, nossa fragilidade restaurada pela misericórdia de Deus[5].

É a unidade objetiva de “algo”e a variedade de sujeitos receptores: que a cada um de nós compete descobrir. Essa vivacidade criativa da variedade chama-nos muito a atenção. São Josemaria mostra a direção a ser seguida, mas não dá receitas genéricas, como quem recorta padrões.

Foi sua maneira constante de agir, desde os inícios. Ao pregar um retiro espiritual para estudantes universitários do “Colégio Beato Juan de Ribera” em Burjasot, o Padre encontrou um cartaz com a legenda “Cada caminhante siga seu caminho”, e utilizou-o como um “refrão” em suas meditações. Com isso desejava esclarecer que o itinerário de cada homem e cada mulher é único, e nele deve-se colocar em jogo a peculiaridade enormemente variada de cada pessoa, a cada momento, para responder aos requerimentos divinos.

Não há moldes estereotipados ou possíveis substitutos: há apenas um modelo, Jesus Cristo. Assim, cada lar cristão, cada família, terá um “estilo”: aquele que imprimem os cônjuges e, mais tarde, os filhos. A única exigência comum é que seja santo, divino.

Nessa perspectiva, os acontecimentos da vida matrimonial adquirem um novo destaque, tudo encontra um significado.

Umas vezes, será a perspectiva favorável de uma nova carreira profissional ou a repercussão, no lar, de um momento particularmente difícil no trabalho. Em outro momento, pode aparecer o contratempo que interrompe as tão esperadas férias ou as notas brilhantes de um filho.

Sem mencionar a preocupação com as amizades de uma filha adolescente ou a festa de aniversário que estão preparando para a mãe. Cada situação favorável ou dolorosa, mesmo em seus menores detalhes, faz parte de um projeto divino que é sempre feliz – embora à primeira vista possa nos doer – e, acima de tudo, sempre espera uma resposta de nossa parte. Em [nossa] existência, não pode haver duas vidas paralelas: por um lado a chamada vida "espiritual", com seus valores e exigências; e, por outro lado, a chamada vida "secular", ou seja, vida familiar, trabalho, relações sociais, compromisso político e cultura (...) A separação entre a fé e o cotidiano de muitos deve ser considerada como um dos erros mais graves de nosso tempo[6].

Nunca poderíamos entender essa unidade da vida como um invólucro abstrato sobre as atividades mais díspares, sem afetar seu conteúdo. É a vontade determinada e concreta de colocar Deus em tudo. A vida cristã é – deve ser! –, toda a vida do cristão. Assim foi, no início, de acordo com o plano divino para os homens. Esta primeira situação é a mais genuinamente humana. Deus fez o homem, inteiro. É muito importante manter claro o conceito de unidade no homem tal como Deus o criou. De fato, quando João Paulo II quer desenvolver seus ensinamentos sobre o amor humano e a teologia do corpo, ele volta à leitura do Gênesis. Foi a desordem do pecado, que insinuou o dilema permanente entre o divino e o humano, e desconjuntou a nossa estrutura pessoal. É na Encarnação do Filho de Deus que o ser humano encontra novamente a força curativa para recompor as fraturas e luxações da natureza caída, e “adquire novamente o vínculo originário”[7]. Esse novo coração, que a graça do batismo nos conquistou, é o que nos torna capazes de Deus e renova a face da terra.

Sendo o amor a argamassa da nossa vida, é esse desígnio unitivo e amoroso que leva São Josemaria Escrivá a proclamar com admirável precisão e plasticidade: Preguei em milhares de ocasiões que nós não possuímos um coração para amar a Deus e outro para querer bem às criaturas: este nosso pobre coração, de carne, ama com um carinho humano que, se estiver unido ao amor de Cristo, é também sobrenatural[8].

Uma consideração semelhante, em um tom mais coloquial, é aquela que oferece a uma pergunta, numa manhã de outubro de 1972 na escola Tajamar, em Madri, em uma reunião com casais, sobre como combinar a dedicação à família e a dedicação ao Senhor. Para fazer ver que não há contradição entre esses dois deveres, usou a imagem de uma corda bem grossa, em que os diferentes fios estão entrelaçados, intimamente juntos, tornando-a ainda mais consistente.

Porque essa “corda”, o amor a nosso cônjuge, é uma faísca do Amor de Deus. Como aponta o ritual do Sacramento do Casamento, foi Deus quem fez nascer o amor entre nós. O lugar em que nos conhecemos, as possibilidades de relacionamento, a atração física mútua, a harmonia de nossos sonhos e as discrepâncias lógicas inerentes à nossa singularidade, não são o resultado de um processo químico ou complicadas combinações de características temperamentais.

Deus assumiu como matéria nossos corpos e nossos espíritos, com as potencialidades e limitações de cada um, conhecendo-nos melhor do que nós mesmos; e respeitando irrevogavelmente a nossa liberdade, uniu nossas vidas a algo que só d’Ele procede: o amor. Um amor que, tendo em Deus sua origem e seu fim, é uma fonte segura de felicidade.

Quando São Josemaria, com insistência ardente, nos descobre a necessidade da unidade da vida, como a estrutura de toda vocação cristã, abre-nos um horizonte sem limites. Nosso lar, com nosso cônjuge e nossos filhos, não é um teto que aloja um grupo de pessoas.

O Catecismo da Igreja Católica afirma categoricamente: A família cristã é uma comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do Pai e do Filho, no Espírito Santo[9]. Essa é a pauta, a transparência, o paralelo. Nessa união está a Santíssima Trindade que se deixa ver nesse espelho iluminado pela fé. Nesse nível se situa a nossa tarefa. Nunca pode ocorrer a uma mente humana estabelecer um objetivo de voos mais altos para sinalizar o início e o fim do amor entre um homem e uma mulher.

A medida da intensidade dessa unidade está no coração. Ou seja, “no mais profundo do seu ser”, “onde a pessoa se decide ou não por Deus”[10]. Com ressonâncias poéticas, assim o expressa São Josemaria: Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária...[11]Não são fantasias inatingíveis: a linha do horizonte, onde o céu e a terra apertam as mãos, pode estar entre as peças de um brinquedo quebrado. Isso é confirmado por aquele pai de família que comenta sua experiência da seguinte forma: “Não irá rir, Padre, se lhe disser que – faz uns dias – me surpreendi oferecendo ao Senhor, de uma maneira espontânea, o sacrifício de tempo que supunha para mim ter de consertar um brinquedo estragado de um dos meus filhos?”. A resposta do Padre não se fez esperar. – Não sorrio, fico feliz! Porque, com esse mesmo Amor, Deus se ocupa de recompor os nossos estragos[12].

Do profundo conteúdo dessas verdades nasce a nossa esperança. É verdade que encontraremos dificuldades e obstáculos em nossa vida familiar, causados pelas fraquezas de cada um de seus membros, mas contamos com a força salvadora de Cristo. Não estamos sozinhos. Realizaremos a tarefa que temos nas mãos se a dividimos com Deus. A condição para não nos distrairmos é procurá-lo na frente, atrás e dentro de cada acontecimento da nossa vida: inclusive naquele momento em que temos pressa e perdemos o ônibus.


[1] Entrevistas, n.114

[2] Ibid.

[3] Cfr. Salvador Bernal, Perfil.

[4] Cfr. Ibid.

[5] Cfr. Amigos de Deus, 95.

[6] Cfr. Christifideles laici, 59.

[7] Cfr. João Paulo II, Carta Encíclica, Redemptor hominis, 4-3-1979, n.8.

[8] Amigos de Deus, 229

[9] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2205.

[10] Cfr. Ibid. n. 368.

[11] Entrevistas, n. 116.

[12] Sulco, 986.