Tema 10. O pecado e a misericórdia de Deus

A perda do sentido do pecado levou à perda da necessidade de salvação, e daí ao esquecimento de Deus por causa da indiferença. No entanto, o triunfo de Cristo é expressão de sua misericórdia para com o ser humano, uma expressão de que “o amor é mais forte do que o pecado”. A misericórdia é a lei fundamental que habita no coração de cada pessoa quando olha para o irmão que encontra no caminho da vida.

Sumário:



O mistério da misericórdia

Ao lado das grandes conquistas da nossa civilização, o panorama do mundo contemporâneo também apresenta sombras e vacilações nem sempre superficiais. Porque “os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno estão vinculados com aquele desequilíbrio fundamental radicado no coração do homem”[1].

A pessoa humana como criatura experimenta múltiplas limitações. Ao perceber a impossibilidade de responder ao mal, ao sofrimento e à injustiça, pode surgir em muitos uma atitude, não de súplica ao Deus misericordioso, mas uma espécie de acusação, resultado de uma indignação. A experiência do mal e do sofrimento torna-se assim uma forma justificada de se afastar de Deus, questionando a sua bondade misericordiosa. Alguns, inclusive, chegam a ver o sofrimento como um castigo divino que recai sobre o pecador, distorcendo ainda mais a misericórdia de Deus.

Isso cria um círculo vicioso. Nas palavras de São João Paulo II, o “coração do drama vivido pelo homem contemporâneo é o eclipse do sentido de Deus e do homem[2]. Parece que Deus não é relevante, e não é relevante porque não pode resolver nossos problemas. Por um lado, não nos parece claro que precisamos de uma salvação, mas certamente a salvação oferecida pela Igreja de Jesus Cristo não parece pertinente.

A consequência final desse eclipse de Deus seria a rejeição social da necessidade de recorrer ao perdão e à misericórdia de Deus. Deste modo, a perda do sentido do pecado leva à perda da necessidade de salvação, e como consequência, ao esquecimento de Deus, por causa da indiferença.

Portanto, quanto mais a consciência humana, rendendo-se à secularização, perde o sentido da palavra misericórdia, mais a Igreja sente o direito e dever imperativo de pregar o Deus da misericórdia. O mistério da fé cristã parece encontrar a sua síntese nesta palavra. A missão evangelizadora é o anúncio em voz alta de que em Cristo crucificado, morto e ressuscitado, se realiza a plena e autêntica libertação do mal, do pecado e da morte [3].

Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. “É como se Cristo quisesse revelar que o limite imposto ao mal, cuja causa e vítima acaba por ser o homem, é, em última análise, a Divina Misericórdia”[4].

O triunfo de Cristo é expressão da sua misericórdia para com o homem, expressão de que “o amor é mais forte que o pecado”, “mais forte que a morte e todo o mal”[5]. O mundo só alcançará a paz sobre a guerra, a violência, quando invocar a misericórdia: “Jesus, eu confio em Vós”[6].

Não é fácil responder à evidência do mal no mundo. Talvez porque o mal não seja um problema, mas um mistério. Um mistério no qual estamos pessoalmente envolvidos. Um mistério que não se resolve teoricamente, mas com atitudes vitais ou existenciais.

Devemos sempre contemplar o mistério da misericórdia: a relação entre sofrimento, injustiça, pecado, homens e Deus. Porque, como afirma o Papa Francisco[7], a misericórdia é a lei fundamental que habita no coração de cada pessoa quando olha para o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. A misericórdia é o último e supremo ato com o qual Deus vem ao nosso encontro. E, portanto, a misericórdia é o caminho que une Deus e o homem.

Na vida da Igreja, a misericórdia é uma realidade permanente. Mas há momentos em que somos chamados a fixar o olhar na misericórdia de forma mais intensa.

Compreendemos o pecado a partir da misericórdia

“Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. Todavia, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males existentes na natureza que aparecem ligados às limitações próprias das criaturas e, sobretudo, à questão do mal moral” (Catecismo, 385). “O pecado está presente na história do homem: seria inútil tentar ignorá-lo ou dar a esta realidade obscura outros nomes” (Catecismo, 386). Mas de onde vem o mal, especialmente o pecado?

Para responder a esta pergunta devemos olhar para o mistério de Deus, porque o pecado só pode ser entendido a partir da misericórdia de Jesus Cristo. “‘O mistério [...] da iniquidade’ (2Ts 2,7) só se explica à luz do ‘mistério da piedade’ (1 Tim 3,16). A revelação do amor divino em Cristo manifestou ao mesmo tempo a extensão do mal e a superabundância da graça (cf. Rm 5,20). Precisamos, pois, abordar a questão da origem do mal fixando o olhar de nossa fé naquele que, e só Ele, é o Vencedor do mal. (cf. Lc 11,21-22; Jo 16,11; 1 Jo 3,8)” (Catecismo, nº 385). Como afirma Pascal em seus Pensamentos, o conhecimento de Deus sem o conhecimento da necessidade de nossa redenção é enganoso, assim como o reconhecimento de nossa miséria sem conhecer o Redentor [8].

A partir deste vínculo profundo entre o homem e Deus, podemos compreender que o pecado é um abuso da liberdade que Deus concede às pessoas criadas para que possam amar a si e uns aos outros (cf. Catecismo, 386).

Para esclarecer a realidade do pecado, a luz da Revelação divina nos fala particularmente do pecado das origens. Mas o ponto de partida para compreendê-lo é a mensagem da misericórdia divina revelada por Jesus.

Pecado original: uma verdade essencial da fé

“A doutrina do pecado original é, por assim dizer, ‘o reverso’ da Boa Notícia de que Jesus é o Salvador de todos os homens, de que todos têm necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos graças a Cristo.

O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início da história do homem (cf. GS 13,1). A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente pelos nossos primeiros pais (cf. Concílio de Trento: DS 1513; Pio XII, Humani generis: ibid., 3897; Paulo VI, discurso 11/07/1966)” (Catecismo, n. 389-390).

“Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais há uma voz sedutora que se opõe a Deus (cf. Gen 3,1-5) que, por inveja, os faz cair na morte (cf. Sab 2,24). A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser um anjo destronado, chamado Satanás ou diabo (cf. Jo 8,44; Ap 12,9). A Igreja ensina que ele foi primeiro um anjo bom, criado por Deus” (Catecismo, n. 391).

“O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a confiança no seu Criador (cf. Gn 3,1-11) e, abusando da sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do homem (cf. Rom 5,19). Todo pecado, daí em diante, será uma desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua bondade” (Catecismo, 397).

“A Escritura mostra as consequências dramáticas desta primeira desobediência. Adão e Eva perdem de imediato a graça da santidade original (cf. Rm 3,23). Têm medo deste Deus (cf. Gn 3,9-10) do qual fizeram uma falsa imagem, a de um Deus enciumado de suas prerrogativas (cf. Gn 3,5)” (Catecismo, 399).

Como consequência, “a harmonia na qual estavam, estabelecida graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompido (cf. Gn 3,7); a união entre homem e a mulher é submetida a tensões (cf. Gn 3,11-13); suas relações serão marcadas pela cupidez e pelo domínio (cf. Gen 3,16)” (Catecismo, 400).

A harmonia com a criação também fica destruída; “a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil (cf. Gn 3,17.19). Por causa do homem, a criação está submetida ‘à servidão da corrupção’ (Rom 8,21). Finalmente, vai realizar-se a consequência explicitamente anunciada para o caso de desobediência (cf. Gn 2,17): o homem ‘voltará ao pó do qual é formado’ (Gn 3,19). A morte entra na história da humanidade (cf. Rom 5,12)” (Catecismo, 400).

“A partir do primeiro pecado, uma verdadeira ‘invasão’ do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel (cf. Gen 4,3-15); a corrupção universal em decorrência do pecado (cf. Gen 6,5.12; Rom 1,18-32); na história de Israel, o pecado se manifesta frequentemente e sobretudo como uma infidelidade ao Deus da Aliança e como transgressão da Lei de Moisés; e mesmo após a Redenção de Cristo, entre os cristãos, o pecado se manifesta de muitas maneiras (cf. 1 Cor 1-6; Ap 2-3)” (Catecismo, 401).

Consequências do pecado original para a humanidade

A existência humana mostra a evidência do pecado em nossas vidas, juntamente com a realidade de que o pecado não é o resultado de sermos maus por natureza, mas vem da livre escolha do mal. O mal moral não pertence, portanto, à estrutura humana, não provém nem da natureza social do homem nem de sua materialidade, nem obviamente de Deus ou de um destino imóvel. O realismo cristão coloca o homem diante da sua própria responsabilidade: ele pode fazer o mal por causa da sua liberdade, e o responsável por isso não é outro senão ele mesmo (cf. Catecismo, 387).

“O que a Revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da experiência. Quando o homem olha para dentro do próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal, e imerso em muitos males, que não podem provir de seu Criador, que é bom. Muitas vezes, recusando reconhecer Deus como seu princípio, perturbou também a devida orientação para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua ordenação quer para si mesmo, quer para os demais homens e para toda a criação” (GS 13.1).

Ao longo da história, a Igreja formulou o dogma do pecado original em contraste com o otimismo exagerado e o pessimismo existencial (cf. Catecismo, 406). Frente a Pelágio, que afirmou que o homem só pode fazer o bem com suas forças naturais, e que a graça é um mero auxílio externo, minimizando assim tanto o alcance do pecado de Adão quanto a redenção de Cristo — reduzida a um mero exemplo mau ou bom, respectivamente — o Concílio de Cartago (418), seguindo Santo Agostinho, ensinou a prioridade absoluta da graça, pois o homem depois do pecado foi prejudicado (cf. DH 223.227; cf. também o Concílio II de Orange, no ano 529: DH 371-372). Ao contrário de Lutero, que sustentava que depois do pecado o homem é essencialmente corrompido em sua natureza, que sua liberdade é anulada e que há pecado em tudo o que ele faz, o Concílio de Trento (1546) afirmou a relevância ontológica do batismo, que apaga o pecado original. Embora suas sequelas permaneçam — entre elas, a concupiscência, que não deve ser identificada, como fez Lutero, com o próprio pecado — o homem é livre em seus atos e pode merecer com boas obras, sustentado pela graça (cf. DH 1511-1515).

No fundo da posição luterana, e de algumas interpretações recentes de Gn 3, está em jogo uma compreensão adequada da relação entre 1) natureza e história, 2) o plano existencial-psicológico e o plano ontológico, 3) o individual e o coletivo.

1) Embora existam alguns elementos de natureza mítica no Gênesis (compreendendo o conceito de “mito” em seu melhor sentido, ou seja, como palavra-narração que dá origem e está, portanto, na base da história posterior), seria um erro interpretar a história da queda como uma explicação simbólica da original condição humana pecaminosa. Essa interpretação transforma um fato histórico em natureza, mitificando-o e tornando-o inevitável: paradoxalmente, o sentimento de culpa que leva a reconhecer-se “naturalmente” como pecador conduziria a atenuar ou eliminar a responsabilidade pessoal pelo pecado, pois o homem não poderia evitar aquilo a que ele tende espontaneamente. O correto, porém, é afirmar que a condição pecaminosa pertence à historicidade do homem, e não à sua natureza original.

2) Como após o batismo ficaram algumas sequelas do pecado, o cristão pode experimentar fortemente a tendência ao mal, sentindo-se profundamente pecador, como ocorre na vida dos santos. No entanto, esta perspectiva existencial não é a única, nem a mais fundamental, pois o batismo realmente apagou o pecado original e nos fez filhos de Deus (cf. Catecismo 405). Ontologicamente, o cristão em graça é justo diante de Deus. Lutero radicalizou a perspectiva existencial, compreendendo toda a realidade a partir dela, que se tornava, assim, marcada ontologicamente pelo pecado.

3) O terceiro ponto leva à questão da transmissão do pecado original, “um mistério que não somos capazes de compreender plenamente” (Catecismo, 404). A Bíblia ensina que nossos primeiros pais passaram o pecado para toda a humanidade. Os capítulos seguintes do Gênesis (cf. Gn 4-11; cf. Catecismo, 401) narram a progressiva corrupção do gênero humano. Estabelecendo um paralelismo entre Adão e Cristo, São Paulo afirma: “Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só [Cristo] todos se tornarão justos” (Rm 5,19). Este paralelismo ajuda a compreender corretamente a interpretação que se costuma dar ao termo adamáh como de um coletivo específico: como Cristo é um só ao mesmo tempo cabeça da Igreja, assim Adão é um e ao mesmo tempo cabeça da humanidade[9]. “Em virtude desta ‘unidade do gênero humano’, todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão implicados na justiça de Cristo” (Catecismo, 404).

A Igreja entende de forma analógica o pecado original dos primeiros pais e o pecado herdado pela humanidade. Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado “pecado” de maneira analógica: é um pecado “contraído” e não “cometido”, um estado e não um ato (Catecismo, 404). Assim, “embora próprio a cada um, o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão, um caráter de falta pessoal (Catecismo, 405)[10].

Para algumas pessoas é difícil aceitar a ideia de um pecado herdado[11] , principalmente se têm uma visão individualista da pessoa e da liberdade. O que eu tenho a ver com o pecado de Adão? Por que eu deveria pagar as consequências do pecado dos outros? Essas questões refletem uma ausência do sentimento de solidariedade real que existe entre todos os homens como criados por Deus. Paradoxalmente, essa ausência pode ser entendida como manifestação do pecado transmitido a cada um. Ou seja, o pecado original obscurece a compreensão daquela profunda fraternidade da raça humana que torna possível sua transmissão.

Diante das lamentáveis consequências do pecado e da sua difusão universal, vale perguntar: “Mas por que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? São Leão Magno responde: ‘A graça inefável de Cristo deu-nos bens melhores do que aqueles que a inveja do Demônio nos havia subtraído’ (sermão 73,4). ‘Nada obsta’ a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São Paulo: ‘Onde abundou o pecado superabundou a graça’ (Rm 5,20). E o canto do Exultet: ‘Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor’ (Summa Theologiae, III, 1, 3, ad 3)” (Catecismo, 412).

A vida como combate

Este olhar sobre o pecado a partir da Redenção de Cristo proporciona um realismo lúcido sobre a situação do homem e seu agir no mundo. O cristão deve estar consciente tanto da grandeza de ser filho de Deus quanto de ser pecador. Este realismo:

a) Adverte tanto contra o otimismo ingênuo quanto o pessimismo desesperado e “propicia um olhar de discernimento lúcido sobre a situação do homem e de sua ação no mundo [...]. Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes” (Catecismo, 407).

b) Dá uma serena confiança em Deus, Criador e Pai misericordioso, que não abandona a sua criatura, perdoa sempre e tudo conduz para o bem, mesmo nas adversidades. “Repete: ‘Omnia in bonum!’, tudo o que sucede, ‘tudo o que me sucede’, é para meu bem... Por conseguinte - e esta é a conclusão acertada-, aceita isso, que te parece custoso, como uma doce realidade”[12].

c) Desperta uma atitude de profunda humildade, que leva a reconhecer sem surpresa os próprios pecados e a entristecer-se por eles serem uma ofensa a Deus e não tanto porque supõem ser frutos de um defeito pessoal.

d) Ajuda a distinguir o que é próprio da natureza humana enquanto tal do que é consequência da ferida do pecado na natureza humana. Depois do pecado, nem tudo que experimentamos como espontâneo é bom. A vida humana tem, portanto, o caráter de um combate: é preciso lutar para se comportar de maneira humana e cristã (cf. Catecismo, 409). “Ao longo de toda a tradição da Igreja, retratam-se os cristãos como milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más inclinações pessoais”[13]. O cristão que se esforça para evitar o pecado não perde nada daquilo que torna a vida boa e bela. Perante a ideia de que é necessário que o homem pratique o mal para experimentar a sua liberdade autônoma, pois no fundo uma vida sem pecado seria aborrecida, ergue-se a figura de Maria, concebida imaculada, mostrando que uma vida totalmente entregue a Deus, longe de produzir tédio, torna-se uma aventura cheia de luz e infinitas surpresas[14].

A Ternura de Deus: Pecado, Salvação, Misericórdia

Diante da realidade do pecado, levanta-se imponente a misericórdia de Deus. Jesus Cristo é o rosto desta misericórdia, como podemos ver na sua atitude para com os pecadores (“não vim chamar os justos, mas os pecadores”) como Zaqueu, o paralítico, a mulher adúltera, a samaritana, Maria Madalena, o bom ladrão, Pedro, e inúmeros outros personagens.

De maneira especialmente relevante, vemos nas parábolas de misericórdia, como a do filho pródigo, que realmente completam todo o ensino do Antigo Testamento sobre o Deus “compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade” (Ex 34,6). Os salmos referem-se a isso repetidamente: o Senhor é “bondoso e compassivo; lento para a ira, cheio de clemência e fidelidade” (Sl 85,15); “bom e misericordioso, lento para a cólera e cheio de clemência” (Sl 102,8); “clemente e justo, o nosso Deus é compassivo” (Sl 116,5); “clemente e compassivo, generoso e cheio de bondade” (Sl 145, 8).

Na Paixão de Jesus, toda a sujeira do mundo entra em contato com o Puríssimo, com o Filho de Deus[15]. Se o normal é que o impuro contagie e contamine em contato com o Puro, aqui temos o contrário: pois onde o mundo, com toda sua injustiça e com suas crueldades que o contaminam, entra em contato com o imensamente Puro, nesse contato, a sujeira do mundo é realmente absorvida, anulada, transformada pelo amor infinito.

A realidade do mal, da injustiça que deteriora o mundo e ao mesmo tempo contamina a imagem de Deus, é uma realidade que existe, e por nossa culpa. Não pode simplesmente ser ignorada, tem que ser eliminada. Mas não é que um Deus cruel exija algo infinito. É justamente o contrário: o próprio Deus se coloca como lugar de reconciliação e, em seu Filho, assume o sofrimento. O próprio Deus introduz sua pureza infinita no mundo como um dom. O próprio Deus “bebe o cálice” de tudo o que é terrível, e assim restaura a lei pela grandeza do seu amor, que através do sofrimento transforma as trevas.

Jesus na Paixão clama ao Pai com todas as suas forças. De alguma forma, “todas as misérias da humanidade de todos os tempos, escrava do pecado e da morte, todos os pedidos e intercessões história da salvação estão recolhidos neste Grito do Verbo encarnado. Eis que o Pai os acolhe e, indo além de todas as esperanças, ouve-os, ressuscitando seu Filho”[16] . Este sofrimento concentra a miséria, o pecado e a morte dos homens, todo o mal da história. E o supera, o redime, o salva.

A Cruz é a última palavra do amor de Cristo por nós. Mas não é a última palavra do Deus da aliança. Esta última palavra será pronunciada na madrugada de domingo: “Ele ressuscitou”. Deus ressuscita seu Filho Jesus Cristo, e em Cristo nos dá a vida cristã para sempre.

Pablo Martí del Moral


Bibliografia

Catecismo da Igreja Católica, nn. 374-421.

— São João Paulo II, Creio em Deus Pai. Catequese sobre o Credo (I), Paulus, São Paulo.

— Francisco, Misericordiae Vultus, 11-IV-2015.


[1] Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, n. 10.

[2] São João Paulo II, Evangelium vitae, n. 21

[3] Cf. São João Paulo II, Redemptoris missio, n. 44.

[4] São João Paulo II, Memória e Identidade, Sextante, São Paulo.

[5] Estas expressões aparecem repetidas vezes em São João Paulo II, Dives in Misericordia.

[6] Santa Faustina, Diário de Santa Faustina. A Misericórdia Divina na minha alma. Apostolado da Divina Misericórdia.

[7] Cfr. Francisco, Misericordiae Vultus, n. 2.

[8] Blaise Pascal, Pensamentos, n. 556 e n. 449, Martins Fontes, São Paulo.

[9] Esta é a principal razão pela qual a Igreja sempre tenha lido a história da queda em uma perspectiva de monogenismo (origem do gênero humano de um único casal). A hipótese oposta, o poligenismo, pareceu se impor como dado científico (e até exegético) por alguns anos, mas hoje em dia, em nível científico, a descendência biológica de um único casal é considerada mais plausível (monofiletismo). Do ponto de vista da fé, o poligenismo é problemático, pois não se vê como possa se conciliar com a Revelação sobre o pecado original (cf. Pio XII, Humani Generis, DH 3897), embora seja uma questão que ainda precisa ser investigada e refletida.

[10] Nesse sentido, tem-se tradicionalmente feito uma distinção entre o pecado original originário (o pecado pessoal cometido por nossos primeiros pais) e pecado original originado (o estado de pecado em que nascemos seus descendentes).

[11] Cf. São João Paulo II, Audiência Geral, 24/09/1986, n. 1.

[12] São Josemaria, Sulco, 127.

[13] São Josemaria, É Cristo que passa, 74.

[14] Cf. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005

[15] Este comentário sobre a pureza de Cristo e a imundície do pecado encontra-se em Bento XVI, Jesus de Nazaré, v. 2, Planeta, São Paulo.