A SAGRADA Escritura apresenta Jesus de Nazaré como um semeador de paz. A aliança estabelecida por Deus no Antigo Testamento é um pacto de paz (cf. Is 54, 10), e o Messias que Israel espera é o «Príncipe da paz» (Is 9, 5). O Senhor deseja a paz para aqueles que entram em contacto com Ele (cf. Mc 5, 34) e espera que os Seus discípulos sejam também construtores de paz (cf. Mc 9, 50). Esse desejo pode, porém, contrastar com as palavras do Senhor contidas no Evangelho deste domingo: «Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir de agora estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra» (Lc 12, 49-53). Como é possível que o Príncipe da Paz se apresente como um causador de divisão?
O próprio Jesus diz que a paz que Ele estabelece não é como a que o mundo entende (cf. Jo 14, 27). Por vezes, podemos conceber a paz como mera ausência de problemas, como uma espécie de tranquilidade que nos afasta de tudo o que possa perturbar o nosso comodismo. No entanto, essa abordagem dificilmente pode conduzir a uma existência plena, pois que «na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais»[1].
A paz que o Senhor propõe é fruto da descoberta de quem Ele é, e isso implica complicar a nossa vida, aventurar-se por territórios talvez desconhecidos, mas com a certeza de que é o próprio Deus que caminha connosco. Essa é a paz que Cristo nos dá, a certeza de que Ele está sempre connosco, aconteça o que acontecer. «Tive oportunidade de observar, em algumas ocasiões, como reluziam os olhos de um desportista, perante os obstáculos que tinha de saltar. Que vitória! Observai como domina as dificuldades! Assim nos contempla Deus, que ama a nossa luta: seremos sempre vencedores, porque nunca nos nega a omnipotência da sua graça. E não importa então que haja luta, porque Ele não nos abandona»[2].
«EU VIM trazer o fogo à terra – diz o Senhor –, e que quero Eu senão que ele se acenda?» (Lc 12, 49). Embora seja verdade que a imagem de um fogo descontrolado evoca, talvez, em nós imagens de destruição, o fogo pode ser também uma força de purificação, de transformação e até de embelezamento da realidade. As conquistas da ourivesaria, do artesanato, da alimentação e da medicina muito devem à eficácia do fogo. Não é estranho, por isso, que Jesus empregue essa imagem para falar de renovação que Ele deseja dar à nossa vida e ao mundo. Uma renovação que consiste precisamente em tomar o Seu partido, em O reconhecer como Senhor, fazendo-O crescer dentro de nós, com a ajuda do Espírito Santo, pois Ele «mostrou-nos, assim, um modelo de humanidade santa que todos podemos imitar, juntamente com a promessa de um destino eterno que ultrapassa todos os nossos limites e capacidades»[3].
É bom desejar que esse fogo se ateie e cresça em nós, implorando com o salmista: «Sois o meu protetor e o meu libertador: ó meu Deus, não tardeis» (Sl 40, 18). A oração oferece-nos a oportunidade de esse fogo se poder atear. Na oração perseverante e confiada, o Senhor vai-nos moldando a Ele. Assim o expressava São Josemaria: «E, na minha meditação ateia-se o fogo. – Para isso mesmo é que fazes oração, para te tornares uma fogueira, lume vivo que dê calor e luz. Por isso, quando não souberes ir mais longe, quando sentires que te apagas, se não puderes lançar ao fogo troncos olorosos, lança os ramos e a folhagem de pequenas orações vocais, de jaculatórias, que continuem a alimentar a fogueira. – E terás aproveitado o tempo»[4]. Talvez desejássemos que esse fogo se propagasse em nós de modo impetuoso, e talvez a oração nos possa desencorajar quando nos parece que não brota dali o fogo que esperávamos. Mas, que é mais útil, o incêndio ou a pequena chama? Às vezes, é a chama pequena e discreta, de aparência débil e vacilante, que se pode aplicar num instrumento que, desse modo, se converte em cautério para curar e sarar.
DEIXAR que esse fogo nos modifique e que transforme o mundo em que vivemos nem sempre é pacífico. Sim, o fogo purifica, mas também queima. Para fazer a vida florescer, o cautério aniquila os sedimentos de morte. É natural que experimentemos uma certa vertigem ou temor, e é natural que às vezes os outros possam ver o fogo como uma ameaça. A primeira leitura da Missa, em que se narra a prisão de Jeremias, oferece-nos um testemunho disso: «Esse Jeremias deve morrer, porque semeia o desânimo entre os combatentes que ficaram na cidade e também todo o povo com as palavras que diz. Este homem não procura o bem do povo, mas a sua perdição» (Jr 38, 4). Jeremias nada mais faz do que comunicar a embaixada de Deus, transmitindo aquilo que poderá proporcionar a cada um e ao próprio povo o seu verdadeiro bem: a vida autêntica. No entanto, o profeta é acusado de procurar o contrário, de desejar o mal do povo. A nós, homens, custa-nos, por vezes, compreender que o fogo do Espírito Santo é de vida e purificação, e não de morte e destruição.
A história da salvação está balizada por tantas vidas de filhas e filhos de Deus que, tal como Jeremias, tiveram consciência das suas limitações, mas preservaram fielmente o tesouro da fé, disponibilizando-o a tantas pessoas. Os santos demonstram esse empenho de Deus em embelezar, curar e elevar as vidas de Seus filhos e em renovar a paz na terra: «Demonstram-no o testemunho dos mártires, a coragem dos confessores da fé, o impulso intrépido dos missionários, a sinceridade dos pregadores e o exemplo dos missionários, alguns dos quais são inclusive adolescentes e crianças. Demonstra-o a própria existência da Igreja que, não obstante os limites e as culpas dos homens, continua a atravessar o oceano da história, impelida pelo sopro do Espírito e animada pelo seu fogo purificador»[5]. A Virgem Maria, que também recebeu o fogo do Espírito Santo, poderá ajudar-nos a ter um coração ardente que espalhe a paz de seu Filho à nossa volta.
[1] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29/ 6/2007), 360; citado por Francisco, Evangelii Gaudium, n. 10.
[2] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 182.
[3] Leão XIV, Homilia, 09/05/2025.
[4] São Josemaria, Caminho, n. 92.
[5] Bento XVI, Homilia, 31/05/2009.