A luz da fé (9): Um dos nossos: a Encarnação

A diferença entre crer ou não em Jesus Cristo não consiste apenas em compreender cada uma das suas palavras, mas em reconhecer a sua divindade e a sua humanidade, encontrar-se verdadeiramente com Ele e reconhecê-lo como o nosso caminho, verdade e vida (cf. Jo 14, 6).

As nações alegram-se com os seus heróis, e os povos recordam os seus êxitos, seja qual for a sua índole: artística, bélica ou qualquer outra. Os mausoléus evocam primeiros-ministros, reis ou descobridores engenhosos, e as ruas, avenidas e praças ostentam o nome de pintores, músicos, artistas...

Ao olhar a história, surgem figuras luminosas que enaltecem o coração humano. Homens extraordinários que anteciparam, por exemplo, um avanço sem possibilidade de retrocesso para a ciência, como Copérnico ou Newton; escrutinadores da consciência que nos deixaram testemunhos perenes da profundidade do coração humano, como Agostinho de Hipona ou Fiodor Dostoievski; ou pensadores religiosos que sondaram o relacionamento do homem com Deus e com seu ambiente: na moral, no culto, na sociedade. Encontram-se também figuras que causaram assombro e que foram perseguidas pelos seus ensinamentos, como alguns profetas do Antigo Testamento ou mesmo como Sócrates na antiga Atenas. Mas a fé cristã tem a audácia de dizer que o seu fundador é infinitamente mais do que um simples génio religioso: como se compreende isso?

Porque se fez igual a Deus?

CRISTO É INFINITAMENTE MAIS DO QUE UM SIMPLES GÉNIO RELIGIOSO

Se quisermos entender a figura de Jesus Cristo, pelo menos como Ele se apresentou e como os cristãos o entendem, em nenhum caso se pode interpretar apenas como a de um génio religioso que, ancorado no passado, continua a exortar da sua cátedra da história, às verdades universais como o amor ao próximo ou a misericórdia para com os débeis. Cristo é algo mais, é alguém mais, e para penetrarmos nesse mistério pode ajudar-nos uma história concreta que ocorreu há menos de cem anos e cujos protagonistas são duas mulheres: mãe e filha.

Edith Stein foi uma filósofa judia alemã do início do século XX. De extraordinária inteligência, desde muito cedo colaborou nas tarefas da Universidade e chegou a trabalhar com um dos filósofos mais importantes do século: Edmund Husserl. Diversos acontecimentos na sua vida, narrados admiravelmente por ela própria [1], conduziram-na à fé cristã, e em seguida à clausura no Carmelo. Morreu no campo de concentração de Auschwitz em agosto de 1942, dando a sua vida pelo povo judeu e pela sua fé cristã.

No dia antes de entrar no Carmelo, foi despedir-se da família. A mãe era uma mulher extraordinária, de raça e religião judaica, que com uma força surpreendente tinha levado avante o negócio madeireiro e a família após a morte prematura do seu marido. Nunca chegou a ser cristã, como o foram as suas filhas Rosa e Edith. Mas, mesmo não acreditando em Jesus Cristo, chegou a compreender a centralidade do seu mistério e sua inaudita pretensão.

«12 de outubro foi o último dia que ela passou em casa, dia do seu aniversário e, ao mesmo tempo, festa hebraica dos Tabernáculos. Edith acompanhou a mãe à sinagoga. Foi um dia difícil para as duas. "Porque é que a conheceste [a fé cristã]? Eu não quero dizer nada contra Ele. Ele terá sido um homem bom, mas porque se fez Deus?" A sua mãe chorou »[2].Ele terá sido um homem bom, mas... porque se fez Deus? Blasfémia ou verdade absoluta: assim se apresentava a figura de Jesus à mãe de Edith Stein. Se ele tivesse sido um homem bom, um sábio antigo, um professor de verdades universais... mas fez-se igual a Deus. Esta afirmação não pode nem deve deixar indiferente quem decida abordar, usando apenas a razão, a figura de Cristo. Como pode um homem fazer-se igual a Deus?

Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

Esta declaração sublinha a continuidade de todo o Novo Testamento. O Evangelho de S. Mateus apresenta no seu início a árvore genealógica de Jesus, indicando a sua origem judaica o seu nascimento virginal e o cumprimento n´Ele de todas as promessas: Ele irá restaurar a nossa relação com Deus. Por Ele podemos dirigir-nos a Deus com confiança. O Evangelho de Lucas também é explícito a este respeito, e reconhece não só a origem judaica de Jesus, mas também a sua condição de filho de Adão, Jesus apresenta-se assim como o salvador de todos os homens. Esta é a sua pretensão, e essa é a maravilha que temos de comunicar aos nossos familiares, colegas de trabalho e vizinhos: Jesus é para todos, e tem uma resposta muito pessoal para cada um.

Por seu turno, o Evangelho de Marcos apresenta logo nos primeiros versículos a revolução da irrupção de Jesus Cristo na história. Chegou a boa nova, que não é apenas palavra (doutrina), mas também obras: curas e gestos, em última análise, é a história de Deus com os homens e dos homens com Deus. Finalmente, o Evangelho de João esclarece este "desdobramento" da divindade de Jesus na sua humanidade, indicando tanto a sua origem eterna, como a sua encarnação no tempo.

A SUA RESSURREIÇÃO É A PROVA MAIS ELOQUENTE DA SUA DIVINDADE

Todos os Evangelhos concluem de forma idêntica: narram a injusta morte de Jesus na cruz e a dolorosa paixão vivida com amor e espírito de redenção; descrevem de forma muito semelhante os mínimos detalhes da sua sepultura, e apresentam, de formas diferentes, um facto inaudito e jamais visto: a sua ressurreição, a prova mais eloquente da sua divindade.

A consciência cristã crê, e assim o afirmam explicitamente tanto os Evangelhos como a

Tradição da Igreja, que o corpo de Jesus não jaz no sepulcro, mas ressuscitou para uma nova vida [3]. Daí que o autor da Carta aos Hebreus afirme categoricamente que Jesus é "o mesmo ontem, hoje e sempre" (Hb 13,8), porque Ele vive para sempre e espera encontrar-se com cada homem, até ao fim dos tempos.

As Cartas de São Paulo, com outras Cartas e o Apocalipse, completam o Novo Testamento. Paulo não conheceu a vida de Jesus na Galileia, nem esteve no Calvário ou no Cenáculo depois da Sua ressurreição. É por isso que S. Paulo é de certa forma o modelo de seguimento de Jesus para todos aqueles que, como nós, não caminharam com Cristo pela Galileia e pela Judeia.

Quem é Jesus para S. Paulo? Que significou na sua vida? A chave para toda a existência de S. Paulo é o encontro com Cristo vivo; a partir desse acontecimento passa a existir um antes -Saulo- e um depois -Paulo-. Encontrar-se com Jesus é encontrar-se com alguém vivo, não com um elenco de doutrinas, um conjunto de normas morais ou uma ideologia sociopolítica. Paulo não encontrou um sábio religioso, mas encontrou aquele por quem ele considera tudo o mais como lixo (cf. Fl 3, 8), aquele que "me amou e se entregou por mim" (Gal 2,20). Aquele que permaneceu intimamente connosco para ser alimento da nossa vida (1 Co 11: 23-27).A diferença entre crer ou não em Jesus Cristo não consiste apenas em compreender cada uma das suas palavras, mas em reconhecer a sua divindade e a sua humanidade, encontrar-se verdadeiramente com Ele e reconhecê-lo como o nosso caminho, verdade e vida (cf. Jo 14, 6).

O centro da minha vida

"O normal agora é referir-se ao Salvador do mundo de forma irreverente e irreal", pregava o Beato John Henry Newman, "como se fosse uma ideia ou uma visão; falar d´Ele com tanta estreiteza e pouco proveito como se somente conhecêssemos o Seu nome, embora na Escritura tenhamos abundantes detalhes da sua presença entre nós, dos seus gestos, palavras, ações, onde fixar os nossos olhos ”[4]. O pregador chamava a atenção dos seus ouvintes do primeiro quartel do século XIX sobre algo que é particularmente atual: a consideração de um Cristo longínquo, morto, também para os próprios cristãos. No melhor dos casos, como um conjunto de normas perenes.

Portanto, é lógico querer entender como cristãos e ajudar a entender aqueles que não creem - mas querem entender - a centralidade de Jesus em cada cabeça e coração crentes.

"Enquanto não captarmos isto", concluía o Bem-aventurado Newman, "enquanto não abandonarmos afirmações vagas sobre o seu amor, o seu desejo de receber os pecadores, de oferecer arrependimento e ajuda espiritual, e coisas deste estilo, e começarmos a vê-l´O, em concreto, com as suas palavras reais, as que constam na Escritura, não teremos tirado do Evangelho o benefício que nos oferece. Além disso, talvez a nossa fé corra um certo perigo, porque se o entendimento de Cristo não é mais é do que uma criação da nossa mente, é de temer que, pouco a pouco, essa fé se vá extinguindo, se perverta ou fique incompleta "[5].

Cristo presente para cada cristão. Cristo vivo. Neste mesmo sentido, se expressava S. Josemaria com palavras vibrantes ao referir-se à formação dos jovens: «Metamos Cristo nos nossos corações e no coração daqueles com quem nos damos. Que pena! Frequentam os sacramentos, têm uma vida limpa, estudam, mas... a Fé é morta. Jesus - eles não o dizem com a boca, dizem-no com a falta de vibração do seu comportamento - Jesus viveu há vinte séculos... - Viveu? Iesus Christus heri, et hodie: ipse et in saecula; Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje; e será também por todos os séculos (Heb XIII, 8). Jesus Cristo vive com carne como a minha, mas gloriosa; com um coração de carne como o meu. Scio enim quod Redemptor meus vivit, sei que o meu Redentor vive (Jb XIX, 25). O meu Redentor, meu Amigo, meu Pai, meu Rei, meu Deus, meu amor, vive! Ele preocupa-se comigo Ele ama-me mais do que a mulher abençoada - minha mãe - que me trouxe a este mundo (...) ». [6]

Cristo nasceu em Belém, cresceu em Nazaré, pregou na Galileia e na Judeia e viu a morte em Jerusalém. Cristo ressuscitou dos mortos e vive para sempre. Por isso, os primeiros cristãos mudaram o dia de culto para o domingo, distanciaram-se do templo e dos costumes judaicos que tanto amavam e comprometeram a sua vida até ao fim; para muitos deles, um fim violento e doloroso. Cristo estava sempre com eles, tornando a sua existência numa vida baseada no amor.

Cristo presente em cada homem

Elie Wiesel, Prémio Nobel da Paz em 1986, foi prisioneiro - ainda adolescente - num campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Aí viveu uma experiência que o marcou para toda a vida: uma criança foi enforcada no campo. Enquanto lutava entre a vida e a morte, uma voz exclamou: Onde está Deus? Elie ouviu naquele momento dentro de si: «Onde está? Aqui está. Enforcado neste patíbulo!

DEUS ESTÁ COM CADA ALMA QUE PADECE

Elie Wiesel não era católico nem cristão. No entanto, soube escutar a voz de Deus dentro de si. Quando há pureza de vida, é possível entender a solidariedade de Deus com cada homem. Talvez hoje e sempre haja a tendência de culpar Deus pelos nossos males - porque permitiu que me acontecesse isto? - mas as almas inocentes entendem que, de algum modo, Deus sofre com cada homem. Deus está com cada alma que padece.

Os crentes conhecem também a palavra do Evangelho. Em S. Mateus, Jesus afirma expressamente o que Wiesel e tantos outros intuíram. Jesus Cristo identifica-se com sedentos e famintos, com peregrinos e estrangeiros, com aqueles que têm dificuldades (cf. Mt 25). Afirma que quando vestimos um nu, é a Ele que vestimos; quando alimentamos quem tem fome, é a Ele que o fazemos; quando damos um copo de água a quem tem sede, tornamo-nos dignos da vida eterna, porque a Ele mesmo servimos.

Jesus Cristo permanece na história como verdadeiro Deus, mas também como verdadeiro homem; ele não deixa nem nunca deixará a humanidade que assumiu em Maria. Por esta razão, Jesus permanece misteriosamente unido aos seus irmãos os homens, especialmente àqueles que sofrem no corpo e na alma.

Desta convicção nasce e flui todo o espírito de caridade que os cristãos gozosamente tentam viver: reconhecer Cristo no outro e tratá-lo como se fosse o próprio Cristo. Desta certeza surge a preocupação dos crentes pelos mais necessitados, que ocuparão sempre e necessariamente um lugar privilegiado no coração da Igreja.

Maria, Virgem e Mãe

Intimamente unido ao mistério de Cristo - Deus e homem - está o mistério de Maria - Virgem e Mãe. Talvez hoje seja especialmente difícil entender Maria, porque ela é definida por dois atributos que atualmente são menosprezados em muitos ambientes: a virgindade e a maternidade.

A fé dos cristãos confessa que Maria concebeu Jesus virginalmente. Obviamente, é uma afirmação de fé com fundamento nos textos evangélicos. S. Mateus diz expressamente que a conceção de Jesus foi obra do Espírito Santo no seio de Maria; S. Lucas confirma este mistério no relato da Anunciação de Gabriel, e S. João conclui que o Verbo se fez carne não através da geração humana. Por outro lado, a Igreja afirma incessantemente o nascimento virginal de Jesus.

Maria é também mãe, mãe de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A união íntima de Jesus com cada homem, assim como o encargo explícito que transmitiu a sua Mãe no momento da Cruz, liga a Virgem a cada crente como mãe. No transe da morte, Jesus confia a sua mãe ao apóstolo João e confia João à sua mãe (cf. Jo 19, 26-27). Deste modo, assim a Igreja o entendeu, Jesus declarava Maria como mãe de todos os homens e confiava aos homens o cuidado de velar para que a figura central de Maria alimentasse a fé dos povos. A devoção a Maria não é opcional ou acessória, porque encontrar Jesus é recebê-la como mãe, e encontrar-se com Maria é ser conduzido sempre à infinita misericórdia do coração de Jesus, porque «a Jesus sempre se vai e se “torna a ir” por Maria» [7].

Fulgencio Espa


Bibliografia

- Catecismo da Igreja Católica, 484-570, 720-726 e 963-975

- Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, nn. 85-94

- Tema 9. A Encarnação, em Resumos da Fé Cristã

- Concílio Vaticano II, Const. Lumen Gentium, nn. 55-66

- João Paulo II, Enc. Redemptoris Mater, (25-III-1987), n. 8


- Bento XVI-Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré, Esfera dos Livros, Lisboa 2007, (Introdução e cap. 10).

- Newman J. H., Sermones Parroquiales/3, Encuentro, Madrid 2009.

- Santa Teresa Benedicta de la Cruz–Edith Stein, Estrellas amarillas, Editorial Espiritualidad, Madrid 1973.

- Bastero de Elizalde J.L., María, Madre del Redentor, 2ª ed., Eunsa, Pamplona 2004.

- Ocáriz F. – L.F. Mateo Seco – J.A. Riestra, El misterio de Jesucristo, 3ª ed., EUNSA, Pamplona 2004.

- Ponce Cuéllar M., María, Madre del redentor y Madre de la Iglesia, 2ª ed., Herder, Barcelona 2001.

[1] Cf. Santa Teresa Benedicta de la Cruz - Edith Stein, Estrellas amarillas, Editorial Espiritualidad, Madrid 1973.

[2] Cf. Biografia de Santa Teresa Benedita de la Cruz–Edith Stein, redigida por ocasião da sua canonização em 11 de outubro de 1998, publicada em www.vatican.va.

[3] Cf. Catecismo de la Iglesia Católica, nn. 638 y ss.

[4] J. H. Newman, Sermones Parroquiales/3, Encuentro, Madrid 2009, p. 137.

[5]Ibid., p. 137. A seguir, acrescenta: «Se contemplarmos Cristo como está revelado nos Evangelhos –o Cristo que lá existe, exterior à nossa imaginação– e virmos que é um ser que vive realmente, que passou realmente pela terra como qualquer de nós, creremos por fim n´Ele com uma convicção, uma confiança e uma integridade, tão indestrutível como a crença nos nossos próprios sentidos. Para um cristão, não é possível meditar no Evangelho sem sentir, sem sombra de dúvida, que o sujeito de todo o Evangelho é Deus».

[6] S. Josemaria, Instrucción 9-I-1935, n. 248, citado em Camino. Edición crítico-histórica, Rialp, Madrid 2002, p. 732.

[7] S. Josemaria, Caminho, n. 495.