Agradar a Deus (2): O normal, discreto e divino. Os sacramentos quotidianos

Alguns conterrâneos de Jesus duvidaram de que o poder de Deus pudesse manifestar-se em alguém "tão normal". O Senhor quer encontrar-nos no quotidiano, tecido por simples normas de piedade que procuramos viver.

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É sábado. Jesus está na sinagoga de Nazaré. Talvez venham à sua mente muitas ternas recordações da infância e da juventude. Quantas vezes terá escutado ali a Palavra de Deus! Aos seus conterrâneos, que o conhecem há muito tempo, foram chegando várias notícias sobre os milagres que ele fez nas cidades vizinhas. E isso leva a algo estranho: a familiaridade com Jesus torna-se um obstáculo para eles. «De onde lhe vem essa sabedoria e esse poder? Não é ele o filho do artesão?» (Mt 13, 54-55), perguntam. Surpreende-os que a salvação possa vir de alguém que eles viram crescer dia após dia. Não acreditam que o Messias possa ter vivido entre eles de forma tão discreta e despercebida.

Como os conterrâneos de Jesus

Os habitantes de Nazaré acreditam conhecer bem Jesus. Eles têm a certeza de que as coisas que se contam sobre ele não podem ser verdade. «Não se chama a sua mãe Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs, não vivem todas entre nós? Pois, de onde lhe vem tudo isto?» (Mt 13, 56). Num povo que não faz representações de Deus, que nem sequer pronuncia o seu nome, um dos seus compatriotas afirma que ele é o Messias...Impossível. Além do mais, eles conhecem a sua origem, conhecem os seus pais, conhecem a sua casa: «Era uma família simples, próxima de todos, integrada com normalidade no povo»[1].Não entendem como alguém tão semelhantes a eles pode fazer milagres. «A normalidade de Jesus, um trabalhador da região, parece não ter mistério algum. A sua proveniência mostra-o como um igual a todos os outros»[2]. Não entendem como alguém tão semelhantes a eles pode fazer milagres. «A normalidade de Jesus, um trabalhador da região, parece não ter mistério algum. A sua proveniência mostra-o como um igual a todos os outros»[3].Por que razão a normalidade da vida de Jesus poderia ser uma razão para não acreditar na sua divindade?

Embora possa parecer algo muito estranho, reservado apenas aqueles que conviveram com Cristo, na verdade também nós muitas vezes suspeitamos da normalidade. Somos atraídos pelo singular, pelo chamativo, pelo extraordinário; encanta-nos o que é diferente. Acontece muitas vezes que a nossa capacidade de assombro fica entorpecida, partimos do princípio de que as coisas simplesmente acontecem, fechamo-nos em certas rotinas, passando por alto os milagres que estão por trás do normal. Sem ir mais longe, muitas vezes acostumamo-nos até com o maior de todos eles, a presença do Filho de Deus na Eucaristia. Mas o mesmo pode acontecer com o nosso encontro pessoal com Cristo na oração, com aquela serenata de jaculatórias à Virgem que é a oração do santo rosário ou com aqueles momentos em que queremos preencher as nossas mentes e os nossos afetos com a doutrina cristã através da leitura espiritual. Talvez nos tenhamos habituado a ter o nosso Criador tão perto. O dispensador de todas as graças, o amor que satisfaz qualquer desejo, está encerrado numa infinidade de sacrários espalhados pelo globo. Deus quis tornar presente toda a sua omnipotência nos espaços que lhe oferece a normalidade. Trabalha a partir daí. Assim, muitas vezes sem brilho, surgem inúmeros milagres à nossa volta.

Nos bastidores do quotidiano

Podemos ficar confusos com essa normalidade de Deus porque a contrapomos a uma espontaneidade que talvez julguemos como elemento essencial de uma relação. O normal pode parecer demasiado previsível porque aparentemente falta a criatividade, o fator surpresa, a paixão do amor verdadeiro. Talvez sintamos que falta algo que torne a nossa relação com Deus uma aventura inigualável, única e irrepetível, um testemunho espetacular que pode até afastar outras pessoas. Podemos pensar que a normalidade uniformiza e dispensa a contribuição que cada um pode dar. É verdade que, diante do que é sempre igual, a reação compreensível é a habituação.

No entanto, sabemos que Deus nos convida a encontrá-lo no mais normal, no dia a dia. Assim é também o amor humano, que cresce e se aprofunda não só nos grandes momentos especiais, mas também nos silêncios, no cansaço e nas incompreensões dos dias partilhados; simplesmente por estarem juntos. “Há algo santo, divino, escondido nas situações mais comuns»[4] que gostaríamos muito de descobrir. Acontece que, embora o nosso relacionamento com Deus ocorra em plena normalidade, o encontro é interior. O seu amor apaixonado pode mover-se muito confortavelmente nos bastidores da normalidade, no hoje sem espetáculo, sem fogos de artifício, mas com brasas ardentes. A razão é que nos sabemos, a cada momento, olhados com um novo carinho. A Deus não importa o quão normal seja a minha vida: é minha e isso é o suficiente para ele. Deus, de facto, oferece-nos a oportunidade de fazer da nossa vida algo excecionalmente único e especial; ele não sabe senão contar de um a um. Nunca faz comparações entre os seus filhos. Ele chamou cada um de nós desde antes da criação do mundo (cf. Ef 1, 4): não há ninguém igual a mim e, por isso, sou inimitável e absolutamente amável para Deus.

Mimos parecem monótonos

Este espaço de normalidade em que o Senhor atua torna possível que a nossa vida esteja, como diz S. Paulo, «escondida com Cristo em Deus» (Cl 3, 3); cheia de dias iguais em que aparentemente nada acontece e, no entanto, o mais inédito está a acontecer. «Nesta constância de prosseguir dia a dia, vejo a santidade da Igreja militante. Muitas vezes é a santidade “da porta ao lado”»[5]. Vista de fora, poderia parecer que a monotonia se apoderou daqueles que procuram viver essa santidade nas coisas comuns. No entanto, para desmascarar esta visão superficial, S. Josemaria comparava os pequenos e constantes hábitos de piedade dessa alma com os mimos que uma mãe tem com o filho pequeno: «Plano de vida: monotonia? Os mimos da mãe, monótonos? Não dizem sempre o mesmo os que se amam?»[6]. Ao mesmo tempo, Deus está focado em nós e não deixa de pensar em nós ou de nos amar em nenhum momento; Não importa o quão normal seja a nossa vida, mas o quão excepcional seja para ele.

S. Bernardo de Claraval assim escreveu ao Papa Eugénio III, grande amigo seu que foi beatificado posteriormente, para animá-lo a não descuidar a vida de oração constante e assim evitar ser absorvido pelas atividades que deveria realizar no seu novo ministério: «Deixa de lado as ocupações pelo menos algum tempo. Tudo menos permitir-lhes que te arrastem e te levem aonde não queres. Queres saber onde? À dureza do coração»[7]. Sem normas de piedade concretas, diárias, o coração corre o risco de se fechar ao amor de Deus e endurecer. Sem o seu amor, mesmo o mais sagrado pode perder o sentido. Sem Ele ao nosso lado, rapidamente ficamos sem forças.

Em maio de 1936, S. Josemaria proferiu uma palestra e sugeriu aos que o ouviam que cada um pedisse «a graça de cumprir o meu plano de vida de tal forma que aproveite bem o tempo. Porque me deito e me levanto fora de horas?»[8]. E pode surgir a pergunta: que tem o amor de Deus a ver com o tempo de descanso? Essa é a maravilha da normalidade de Deus. A ele importa, e muito, o nosso sono, a nossa saúde, os nossos planos. E, acima de tudo, não quer que nos assalte à última hora a preocupação de fazer mais coisas do que o dia permite, porque quem trabalha é sempre Deus.

Para garantir a nossa liberdade

No início do seu pontificado, Bento XVI alertou-nos para um perigo constante que talvez também estivesse presente naquela sinagoga de Nazaré que mencionamos no início: «O mundo é redimido pela paciência de Deus e destruído pela impaciência dos homens»[9]. A normalidade também nos parece muito lenta, podemos pensar que chega tarde. Desejamos que as coisas boas e santas se tornem realidade quanto antes. Às vezes é difícil entender por que razão o bem demora tanto a chegar, por que razão o Messias demora tanto tempo que até «começa por estar no seio de sua Mãe durante nove meses, como todo o homem, com extrema naturalidade»[10].

Na realidade, com esta forma de se apresentar, o que Deus procura talvez seja garantir a liberdade dos homens, ter a certeza de que também nós queremos estar com Ele, quer seja rezando alguns minutos, seja interrompendo o nosso trabalho para dirigir algumas palavras a Maria ou fazer qualquer outra coisa. Se Deus se manifestasse de maneira diferente, a nossa resposta teria que ser indiscutível. É por isso que vemos que Jesus parece feliz passando despercebido nas cenas do Evangelho. Os magos, por exemplo, devem ter ficado surpreendidos ao ver o Rei dos Judeus nos braços de uma jovem, num lugar tão simples. Deus não quer intimidar os homens. A personalidade de seu Filho é tão atraente que Deus escolheu manifestar-se na normalidade para nos dar um espaço de liberdade. Quer filhos livres, não deslumbrados. Sabe que nada nos estimula tanto quanto a descoberta pessoal de um tesouro escondido. Agradecer e desfrutar dessa liberdade – com todas as suas luzes e sombras – ajuda-nos a partilhar a sua paciência diante de tantas coisas que, à primeira vista, podem parecer um obstáculo para a redenção e, no entanto, são o caminho comum pelo qual Deus se manifesta.

Por isso mesmo, também os seus mandamentos e as suas normas são um dom e um convite. Pode resumir -se esta realidade recorrendo a dois dos maiores pensadores da tradição cristã: «Nesta linha, Tomás de Aquino pode dizer: «A nova lei é a mesma graça do Espírito Santo », não uma norma nova, mas a nova interioridade dada pelo mesmo Espírito de Deus. Agostinho soube resumir no final esta experiência espiritual da verdadeira novidade do cristianismo na famosa fórmula: “Da quod iubes et iube quod vis”, “dá-me o que me pedes e pede-me o que quiseres”»[11]. Então, entendem-se bem alguns parágrafos ardentes do salmista que nos podem ajudar a agradecer a Deus esta liberdade: «Com os meus lábios proclamo todas as regras da tua boca. Eu me deleito mais no caminho dos teus preceitos do que em todas as riquezas. Quero meditar nas tuas ordens e fixar os olhos nas tuas veredas» (Sl 119, 13-15).

Deus está no normal

Vivemos numa época de fenómenos de massas, com pessoas que têm milhões de seguidores, fotografias ou vídeos que se tornam virais em poucos minutos. Neste contexto, que significado tem o que dissemos sobre a normalidade com que o Senhor trabalha? Bem sabemos que Deus é paciente e disse-nos que o seu agir é como o fermento: não se distingue da massa e, em qualquer circunstância, chega ao último recanto. Deus é o primeiro interessado em salvar o mundo, muito mais do que nós. Na verdade, é ele quem impele, quem inflama e quem sustenta. Nós, principalmente, associamo-nos a este movimento de santidade: «Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa transborda de afã apostólico»[12].

O Papa Francisco convida-nos precisamente a deixar-nos invadir pela vibração apaixonada da graça: «Quanto bem nos faz, como Simeão, ter o Senhor “nos braços”»(Lc 2, 28). Não só na cabeça e no coração, mas nas mãos, em tudo o que fazemos: na oração, no trabalho, na comida, no telefone, na escola, com os pobres, em todos os lugares. Ter o Senhor nas mãos é o antídoto para o misticismo isolado e o ativismo desenfreado, porque o encontro real com Jesus fortalece tanto o devoto sentimental quanto o frenético faz-tudo. Viver o encontro com Jesus é também o remédio para o marasmo da normalidade, é abrir-se à agitação quotidiana da graça»[13]. Com Cristo, queremos libertar-nos do impasse de pensar que Deus não está no normal.

“Maria santifica na maioria das vezes – recordava S. Josemaria – aquilo que muitos erroneamente consideram intranscendente e sem valor: o trabalho quotidiano, a atenção aos entes queridos, as conversas e as visitas a familiares e amigos. Bendita normalidade, quanto pode estar cheia de amor de Deus!»[14].


[1] Francisco, Amoris laetitia, n. 182.

[2] Bento XVI, A infância de Jesus, Editorial Planeta, Barcelona, 2012, p. 11.

[3] Francisco, Laudato si’, n. 98.

[4] S. Josemaria, Entrevistas com o Fundador do Opus Dei, n. 113.

[5] Francisco, Gaudete et exultate, n. 7.

[6] S. Josemaria, guião de uma palestra, 22/08/1938. Citado em Pedro Rodríguez, Caminho, edição histórico-crítica, Rialp, Madrid, 2004, p. 288.

[7] S. Bernardo de Claraval, Carta ao Papa Beato Eugénio III.

[8] S. Josemaria, guião de uma palestra, maio de 1936. Citado em Pedro Rodríguez, Caminho, edição histórico-crítica, p. 288.

[9] Bento XVI, Homilia, 24/04/2005.

[10] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 18.

[11] Bento XVI, Jesus de Nazaré II, Ediciones Encuentro, Madrid, 2011, p. 83.

[12] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 120.

[13] Francisco, Homilia, 02/02/2018.

[14] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 148.

Diego Zalbidea