A luz da fé (4): Essa corrente trinitária de Amor

O Mistério da Trindade altera em profundidade o nosso olhar sobre o mundo, transfigura a nossa existência: o que, em si mesmo, seria banal ou insignificante, ilumina-se a partir de dentro.

Os cristãos reconhecem a origem de tudo o que existe no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Chega-se a ser cristão através do batismo em nome das três Pessoas divinas. E tudo na nossa vida está marcado pelo sinal da Cruz, «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», segundo as palavras do próprio Jesus (Cfr. Mt 28,19). Mas o que significa esta fé na Trindade para a nossa vida? Como se traduz na nossa existência diária, na nossa família, no nosso trabalho, no nosso descanso?

Embora só no Céu iremos compreender até que ponto a Trindade é o nosso verdadeiro lar, até que ponto a nossa vida «está escondida com Cristo em Deus» (Col 3,3), a fé cristã põe-nos já agora a caminho deste Mistério, que contém a resposta a todas as nossas perguntas; que nos diz quem na realidade somos. O Mistério da Trindade altera em profundidade o nosso olhar sobre o mundo, transfigura a nossa existência: o que, em si mesmo, seria banal ou insignificante, ilumina-se a partir de dentro. Entre os muitos aspetos da fé na Trindade, vamo-nos deter aqui em dois que estão fortemente entrelaçados entre si: a profundidade do Mistério e o valor divino do amor humano.

O Mistério dos mistérios

Desde as primeiras gerações de cristãos, os teólogos, os santos e aqueles que viveram uma autêntica e intensa experiência de Deus têm uma predileção especial pelo seu Mistério, o Mistério da Trindade (Mysterium Trinitatis). Também na vida diária se fala com frequência de mistério, embora no sentido de uma realidade de difícil acesso, como saber quem é o criminoso numa novela de intriga, ou qual é a solução de uma equação ou de um problema difícil. Em todos esses casos o termo refere-se aos limites da nossa capacidade de conhecer. Pelo contrário, quando se fala de Mistério de Deus, a questão já não nos diz respeito somente a nós, mas sobretudo a Ele mesmo e à sua infinita profundidade. O Mistério de Deus não é insondável porque seja obscuro mas, pelo contrário, porque é demasiado luminoso: os olhos da nossa inteligência deslumbram-se ao olhá-lo, como sucede quando se olha para o sol em pleno dia.

Uma piedosa lenda medieval, representada também em magníficas obras pictóricas, conta que um dia Santo Agostinho passeava pela praia, procurando compreender como é possível que Deus seja uno e trino, e encontrou um menino que com um pequeno balde deitava água do mar num buraco escavado na areia, com intenção de meter o mar no buraco. O grande Padre da Igreja tentou fazer-lhe ver a impossibilidade da sua pretensão; o menino respondeu-lhe que mais absurdo ainda era tentar compreender o Mistério da Trindade. O Mistério de Deus é como a imensidade do mar, como a luz do sol que cega. Perante o «oceano do amor infinito», a única resposta verdadeiramente razoável é «submergir» confiadamente[1], «mergulhar nesse mar imenso»[2].

Numa das suas catequeses, S. Josemaría explicava-o com uma fórmula verdadeiramente eficaz, a propósito de como falar de Deus: «E quando (…) te digam que não entendem a Trindade e a Unidade, respondes-lhe que também eu a não entendo, mas que a amo e a venero. Se compreendesse as grandezas de Deus, se Deus coubesse nesta pobre cabeça, o meu Deus seria muito pequeno..., e, no entanto, cabe – quer caber – no meu coração, cabe na profundidade imensa da minha alma, que é imortal»[3]. Um Deus totalmente compreensível não seria mistério, seria pouca coisa. Pelo contrário, o paradoxo cristão consiste no facto de que, embora a Trindade infinita não possa ser compreendida pela nossa inteligência, ao mesmo tempo habita em nós, no nosso coração.

A dificuldade em compreender o Mistério do Pai, do Filho e do Espíritu Santo não se deve a que seja um absurdo, mas a que é um Mistério de Amor: uma comunhão de Pessoas. O nosso Deus é Mistério porque é Amor: tudo n’Ele é Dom perfeito e eterno. E o mundo criado é expressão desse Amor. Através do mundo, e das pessoas que nos rodeiam, podemos compreender o motivo pelo qual é necessária a fé para aceder a esta verdade, que mesmo os maiores filósofos não puderam encontrar sem a Revelação. Não se trata de crer no absurdo, mas de entrar na dimensão pessoal, coisa que só conseguimos quando abrimos o coração. «Senhor, obrigado porque és tão grande que não me cabes na cabeça, e obrigado também porque me cabes no coração!»[4]

Porque razão Deus se oculta no seu Mistério? Na realidade não é que se oculte; mesmo entre os seres humanos sucede que a intimidade da alma de outro apenas se pode conhecer através de um ato voluntário de revelação do que se tem no coração, como as recordações, os sonhos, as preocupações ou os medos. Embora de fora se possa intuir algo, para que outro aceda ao que verdadeiramente se encontra dentro de nós é necessária uma “revelação” de nós mesmos; e é necessário também que quem participa dessa “revelação” a consiga compreender, assimilar. Não nos deve estranhar que o Mistério de Deus nos supere; os nossos olhos devem acostumar-se, pouco a pouco, à sua luz. Por isso, se na vida de cada dia é necessário aprender «sempre a tirar as sandálias diante da terra sagrada do outro»[5], diante do Mistério da Trindade, a primeira atitude a assumir é a da humildade e de profundo respeito, porque se entra no espaço da Liberdade e do Dom, essa Liberdade e Dom que são precisamente a origen do Amor, de todo o amor.

O Amor dos amores

«Não há mais amor senão o Amor», anotava S. Josemaría en 1931[6]. A imersão na profundidade do Mistério do Deus uno e trino leva-nos a ler o mundo e a história à Sua luz, que é a «luz verdadeira» (Jo 1,9): como se passássemos de procurar decifrar um texto na penumbra a lê-lo a pleno sol, e descobríssemos que não estávamos a entender praticamente nada. «Deus é amor» (1 Jo 4,16) porque é uma comunhão eterna de três Pessoas, que se entregam reciprocamente, sem reservas: três Pessoas unidas de modo absoluto e eterno por uma relação de dom total e livre de Si. O sentido do mundo e da existência de cada homem repousa nessa liberdade autêntica, nessa «corrente trinitéria de Amor»[7].

O Pai, com efeito, gera o Filho dando-Lhe tudo o que Ele mesmo é, e não simplesmente algo que possui. A primeira Pessoa divina é Pai com todo o seu ser, Pai sem limites, de modo que o Filho gerado por Ele não só se parece com Ele, mas é uma só coisa com Ele: é Deus mesmo na sua eternidade e na sua infinitude. O Filho, Imagem perfeita do Pai, entrega-se de novo a Ele, ou seja, responde ao dom que recebe dando-se Ele mesmo totalmente ao Pai, como este se entregou a Ele. E o Dom que o Pai e o Filho se trocam eternamente é o Espírito Santo, terceira Pessoa da Trindade. O Espírito Santo é o Amor que une as primeiras duas Pessoas, e é Deus, porque é uma só coisa com eles. Assim, o nosso Deus é uno e trino precisamente porque é Amor absoluto, porque é Dom perfeito, sem reservas, sem condições: o Amor com que todos sonhamos.

Santo Agostinho, embora se tenha apercebido da limitação dos nossos conceitos, explicou-o de um modo que nos permite vislumbrar essa vida íntima da Trindade. O amor, escreveu no seu tratado sobre a Trindade, implica sempre a presença de um amante, de um amado e do seu amor[8]. Análogamente, para que se possa falar de dom, deve haver alguém que dá, outro que recebe e também aquele mesmo que se dá: o dom, o presente. Só com esta tríade há Amor. E quando o Amor ou o Dom é infinito e, portanto, entra no espaço do Mistério de Deus, estes três termos são infinitos e perfeitos. De modo que o nosso Deus é uno e trino precisamente porque é Amor. Deste Amor sem limites surge, e para ele se dirige, «o desejo que todos nós temos de infinito, a nostalgia que todos nós temos do eterno»[9].

Uma das maneiras pelas quais os cristãos acompanham o Nome da Trindade é beatíssima: felicíssima. Deus é todo Ele felicidade que quer comunicar-Se e por isso criou todas as coisas: para nos introduzir na Sua alegria infinita. O mundo em que vivemos, e a existência de cada um, tem a sua origem nesse eterno Dom recíproco que é a Vida do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O homem existe, portanto, na medida em que é amado pelas três Pessoas divinas. E por isso o seu valor é infinito. A partir desta luz, «parecem-nos admiráveis tanto a origem como o fim da criação, que consistem no amor. Um amor absolutamente desinteressado, porque Deus não tem nenhuma necessidade de nós; nós é que temos necessidade d’Ele»[10].

Se o mundo surge do transbordar do Amor das três Pessoas divinas, o sentido da vida de quem crê na Trindade é o amor. E por isso todo o verdadeiro amor remete, no seu núcleo mais íntimo, para a Trindade, como explicou recentemente o Papa Francisco, retomando os ensinamentos de S. João Paulo II[11]. Assim, a importância fundamental da família para a fé cristã não está ligada apenas à dimensão moral ou a considerações sociológicas. A própria relação fecunda dos esposos é imagem que guia no encontro com o Mistério da Trindade: «o Deus Trindade é comunhão de amor, e a família é o seu reflexo vivo»[12].

O cristão sabe, pois, que o primeiro princípio de qualquer coisa não é uma unidade abstrata ou uma ideia universal, mas uma comunhão de Pessoas: uma comunhão radiante de felicidade. O fundo da realidade, o que é mais verdadeiro, encontra-se nas relações interpessoais. O que seja a felicidade é um mistério que se começa a desvendar precisamente aí; o sentido da vida joga-se nessa profundidade. A amizade, o serviço dos outros, a fraternidade, o amor em todas as suas formas, não são só palavras bonitas ou práticas positivas sugeridas por um bom coração. A cultura cuidadosa das relações interpessoais é o ato mais realista e eficaz, o melhor investimento possível: porque o fundamento da realidade é trinitário. O pecado, por contraste, é essencialmente superficial: não vê o que verdadeiramente conta e conduz a investimentos péssimos. O pecado fecha-se ao outro, descarta-o; supõe, em suma, uma verdadeira miopia existencial, de que todos necessitamos de nos ir curando. A revelação da Trindade e a fé que se desprende a partir deste Mistério é colírio para os nossos olhos: fala-nos de como ganhar verdadeiramente na vida, e de como ganhar todos para a Vida.

O olhar dos santos, que se sabem pecadores como todos, move-se entre o Céu e a terra; reconhece que a verdadeira realização de si se encontra no amor e no serviço: aí se liberta o acesso à realidade mais autêntica. Os próprios gestos de afeto, como os abraços; ou os de cortesia, como cumprimentar-se, são eco do amor da Trindade, porque significam o desejo ou a disponibilidade para ser um no outro, como as pessoas divinas são uma na outra. «Quem me viu, viu também o Pai», disse Jesus a Filipe (Jo 14,9). Quem vê o Filho vê o Pai, porque o Pai está no Filho e o Filho no Pai: são tudo Amor. É assim a vida da Trindade, a vida a que Deus nos chama: a vida própria do Pai é dar a Sua vida ao Filho; a vida própria do Filho é agradecer a vida ao Pai; o Espírito Santo é Ele próprio essa Vida para o Outro.

Surge assim outra dimensão da contemplação do mundo à luz da Trindade: se o princípio de todas as coisas é o nosso Deus, então na origem e no destino da realidade encontra-se o Amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai. A Escritura deixa-no-lo entrever no esvoaçar do Espírito de Deus sobre as águas (cfr. Gn 1,2): o Amor da Trindade abraça o universo. E, de um modo mais explícito, retomando o relato da criação à luz da encarnação do Verbo, o prólogo do quarto Evangelho diz que «todas as coisas foram feitas por Ele» (Jo 1,3): em tudo se reflete a Filiação de Cristo, e a Ele se ordena tudo (cfr. Ef 1,10). As estrelas longínquas, o mar profundo, as mais altas montanhas ou as flores mais belas, todos falam do dom absoluto que o Pai verte na geração do Filho: tudo é ícone desta relação eterna de amor. Toda a criação fala de Cristo, como diz a liturgia, parafraseando S. Paulo: «Agora cumpre-se o desígnio do Pai: fazer de Cristo o coração do mundo»[13].

Daqui nasce a possibilidade de contemplar o mundo e a história, nas suas dimensões mais quotidianas e prosaicas, como lugar de encontro com Deus, como tarefa filial confiada ao homem pelo Pai, em Cristo. À luz da Trindade o cristão pode reconhecer-se como “sócio” de Deus, como herdeiro em Cristo de todas as coisas, colaborando com Ele para levar tudo ao Pai, com uma profunda gratidão pelo seu dom: sendo todo ele agradecimento. Este é o coração de toda a Missa, o ato eucarístico mais autêntico, através do qual a criação volta à relação com a sua origem, a Trindade.

Maria e a Trindade

S. Josemaría confiava numa ocasião: «Procuro chegar à Trindade do Céu por essa outra trindade da terra: Jesus, Maria e José. São mais acessíveis »[14]. O amor dos três da Sagrada Família, as suas relações de dom recíproco, guiava-o na contemplação da Trindade beatíssima, subindo o rio em busca da fonte, dos amores até ao Amor dos amores.

Santa Maria é quem melhor realizou esse retorno a Deus, essa restituição em Cristo do mundo à Trindade. A existência de Maria é trinitária; está completamente transfigurada de amor: Maria recebe o seu ser e entrega-o de novo ao Pai em Cristo graças ao Espírito Santo, que é o Amor mesmo e que a cobriu com a sua sombra (Cfr. Lc 1,35). Maria é criatura, Maria é uma mulher da Palestina, mas tudo n’Ela está impregnado do Amor que constitui a relação eterna entre o Pai e o Filho. Assim Ela é Senhora da criação e da história; tudo se confiou ao seu Coração imaculado, porque ninguém conhece melhor o mundo do que ela, ninguém o transforma melhor do que ela, através do seu diálogo íntimo e familiar com cada pessoa da Trindade. Com Ela podemos viver «no seio da Trindade (…) adentrarmo-nos no Pai e descobrir novas dimensões que iluminam as situações concretas e as mudam»[15], que levam a «fazer de Cristo o coração do mundo».


[1] Bento XVI, Enc. Spe Salvi (30-XI-2007), n. 12.

[2] S. Josemaría, notas numa reunião familiar, 14-VI-1974 (Catequese na América, 1974, vol. I, 449, AGP, Biblioteca, P04).

[3] S. Josemaría, notas numa reunião familiar, 9-II-1975 (Catequese na América, 1975, vol. III, 75, AGP, Biblioteca, P04).

[4] Ibidem.

[5] Francisco, Ex. Ap. Evangelii Gaudium (24-XI-2013), n. 169.

[6] S. Josemaría, Caminho, n. 417. Cfr. comentário da edição crítico-histórica.

[7] S. Josemaría, Cristo que passa, n. 85.

[8] Santo Agostinho, De Trinitate, 8.10.14.

[9] Francisco, Audiência, 27-XI-2013.

[10] Jean Daniélou, La Trinità e il mistero dell’esistenza, Queriniana, Brescia 1989, 44.

[11] Cfr. Francisco, Ex. Ap. Amoris Laetitia (19-III-2016), n. 63. Cfr. S. João Paulo II, Angelus, 7-VI-1998.

[12] Francisco, Amoris Laetitia, n. 11.

[13] Assim reza a versão italiana da antífona terceira nas vésperas da féria I da semana IV do saltério do Tempo Ordinário.

[14] S. Josemaría, “Consumados na unidade”, em En diálogo con el Señor, edición crítico-histórica, Rialp, Madrid 2017, 422.

[15] Francisco, Evangelii Gaudium, n. 283.