Maria, Mãe de misericórdia

No Magnificat, Santa Maria canta a misericórdia, o amor alegre de Deus que vem devolver a felicidade a um mundo entristecido. Ela é a primeira Filha da misericórdia de Deus; e ao mesmo tempo que é Filha, é Mãe do Deus de misericórdia: por isso lhe chamamos Mater misericordiæ.

Quando Gabriel lhe comunica a notícia alegre, o evangelion que, da humildade de um povo da Galileia, mudará para sempre a vida dos homens[1], «a Senhora do doce nome, Maria, está recolhida em oração»[2]. O Senhor também escutou Isabel, diz o anjo à Virgem, antes de se retirar. Santa Maria pondera uns instantes as palavras de Gabriel: brota no seu interior uma alegria que lhe dilata a alma e que, simultaneamente, a recolhe em adoração do Deus escondido, latens Deitas[3], que agora alberga no seu seio.

Pouco tempo depois, está já a sair para a montanha: a sua prima talvez necessite que lhe dê una mão; e, ainda mais, necessita também ela de a ir ver, porque não cabe na sua alegria e não sabe de mais ninguém com quem possa partilhar esse feliz segredo, para além de José. Santa Maria é já nesse momento «imagem da futura Igreja que, no seu seio, leva a esperança do mundo pelos montes da história»[4].

Deus tomou a iniciativa; escolheu a terra fértil da sua generosidade e do seu abandono, e inaugurou nelas [Maria e Isabel] a verdadeira primavera da história.

Se ninguém como uma mãe se apercebe da alegria de viver que palpita num recém-nascido, a felicidade da Virgem e da sua prima, que as vizinhas de Ain Karim desconhecem, é muito mais intensa: Deus tomou a iniciativa; escolheu a terra fértil da sua generosidade e do seu abandono, e inaugurou nelas [Maria e Isabel] a verdadeira primavera da história. Enquanto o grande mundo procura viver das suas alegrias incertas, neste canto da Judeia estala, silenciosamente, a alegria de Deus. São Lucas conta-nos que, Maria ao saudar Isabel, São João Batista dá um salto de alegria no seio da Mãe. Como o profeta David bailava e brincava à volta da Arca da Aliança, assim também agora o maior de «entre os nascidos de mulher», aquele que é «mais do que um profeta» (Mt 11,9.11), salta à chegada de Santa Maria, a nova Arca da Aliança. Também nisto, o Batista é precursor do Filho de David; como dirá de si mesmo ao cabo dos anos, ele é «o amigo do esposo, que (…) se alegra com a voz do esposo» (Jo 3,29). E já agora, ao ouvir a Mãe do Esposo, movido pelo Espírito Santo, é profeta, sem palavras, da alegria do Evangelho.

O meu espírito alegra-se em Deus

«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso Salvador. Ele desfrutará de ti com alegria, renovar-te-á o Seu amor, regozijar-se-á em ti com canto alegre, como nos dias de festa» (So 3,17-18). São Lucas tinha bem presente o profeta Sofonias quando relatava estes momentos da vida da Virgem. A alegria, íntima e transbordante ao mesmo tempo, que Santa Maria conteve nos seus dias de viagem a partir de Nazaré, e que se contagia instantaneamente a Santa Isabel e a São João, encontra agora o seu canal no Magnificat, canto de alegria e de misericórdia[5]. «A nossa Mãe meditou longamente as palavras das mulheres e dos homens santos do Antigo Testamento, que esperavam o Salvador e os acontecimentos de que foram protagonistas. Admirou (…) o derrame da misericórdia de Deus sobre o seu povo, tantas vezes ingrato. Ao considerar esta ternura do Céu, incessantemente renovada, brota o afeto do seu Coração imaculado: a minha alma glorifica o Senhor»[6].

«O meu espírito alegra-se em Deus meu salvador». Santa Maria é filha de um povo mediterrânico, de uma terra onde se canta e se dança: a sua emoção íntima, que vem do fundo da alma, exterioriza-se em gestos e exclamações. «Às vezes não vos bastará falar, tereis necessidade de cantar por amor (…) andareis pelo mundo, dando luz, como archotes acesos que deitam chispas de fogo»[7]. A alegria de Maria não se explica apenas porque Deus entrou na sua vida, mas porque, através d’Ela, o Filho de Deus se fez um de nós, «lembrado da Sua misericórdia (…) para sempre».

A Igreja reconhece-se no Magnificat, «o cântico do Povo de Deus que caminha na história»[8] e, por isso, relembra-o diariamente no ofício de Vésperas. Com Santa Maria, não canta uma alegria pequena e individual: canta a alegria da humanidade inteira; uma alegria que provém da esperança em «Deus meu salvador». A Igreja sabe que Deus é mais forte do que o mal. «O que é fraqueza em Deus é mais forte que os homens» (1 Co 1,25): a força dos «poderosos» e dos «soberbos de coração», que fazem a guerra «àqueles que guardam os mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus» (Ap 12,17), e ameaçam esmagar o Amor de Deus, não é mais do que força exterior, ruido, vaidade: «como pó que o vento dispersa» (Sal 1,4).

«A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito»[9]: a misericórdia é o amor alegre de Deus que vem ao encontro de um mundo entristecido, um «vale de lágrimas»[10]. Deus «sai como esposo da sua alcova, alegre, como um herói, a percorrer o seu caminho» (Sal 19 [18],7): vem com o seu carinho, com o seu perdão, com a sua compreensão… Vem, sobretudo, com a alegria do Espírito Santo, caridade incriada, que é a fonte contínua da sua misericórdia, porque só a partir da alegria se tem forças para perdoar sem reservas e sem limites. Esta alegria de Deus é também o horizonte da sua misericórdia, porque nos criou para Ele; quer salvar-nos da tristeza do pecado para nos dar uma felicidade que ninguém nos poderá tirar[11].

Deus confiou esta alegria à sua Igreja, e ninguém a pode tirar, «apesar dos pesares»[12]. Por isso canta com Maria: «hão-de chamar-me bem-aventurada todas as gerações». Todas as gerações dos homens acabam por encontrar na Igreja uma Mãe que, através das crises e tragédias da história, e mesmo no seu sofrimento pelos filhos ou pelos estranhos que a maltratam ou a desprezam, transborda da alegre salvação de Deus, e oferece incansavelmente a todos sua misericórdia. Como Maria no seu Magnificat, a Igreja sobrevoa de certo modo a história[13]; Ela guarda a alegria da Ressurreição e vislumbra, entre tanta dor e miséria, tanta santidade oculta e fecunda: a misericórdia de Deus que «se derrama de geração em geração sobre os que O temem».

Os pobres de Deus

O Magnificat está impregnado «da espiritualidade dos anawim bíblicos, quer dizer, dos fiéis que se reconheciam “pobres” não só pelo seu afastamento de qualquer tipo de idolatria da riqueza e do poder, mas também pela profunda humildade do seu coração, (…) aberto à irrupção da graça divina salvadora»[14]. Santa Maria, e nós com ela, não canta a sua própria grandeza: canta a sua pequenez — «a humildade da sua serva» — e as «coisas grandes» que Deus fez n’Ela. «Magnificat anima mea Dominum»: todas as gerações e todas as culturas puseram e continuam a pôr música nestas palavras, que poderiam traduzir-se assim: «Que grande é Deus, que bem faz as coisas». O entusiasmo de Maria em Ain Karim ressoará três décadas depois nos lábios de seu Filho, no momento em que, talvez, a alegria de Jesus se expande mais claramente nos evangelhos.

É bonito observar que as notas da sua alegria são as mesmas que no Magnificat de sua Mãe: «Naquela mesma hora Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: Graças te dou, ó Padre, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e prudentes e as revelaste aos simples» (Lc 10,21)[15]. Esta predileção de Deus pelo pequeno encerra um profundo mistério. Deus fica “desarmado” diante dos simples; a sua linguagem, aparentemente ingénua e inofensiva, «derruba do trono os poderosos». A misericórdia mostra-nos o verdadeiro rosto de Deus e o «poder do seu braço», que acaba sempre vencendo. «Da boca das crianças e dos lactentes procuras um louvor contra os teus adversários, para reduzir ao silêncio o inimigo e o rebelde» (Sal 8,3).

Virgem branca, da Catedral de Toledo (Espanha).

Quando João envia os seus discípulos a perguntar a Jesus se é Ele «o que há-de vir» (Mt 11,3), o Senhor enumera, com palavras do profeta Isaías[16], os sinais da presença de Deus no meio do seu povo, entre os quais brilha este: «aos pobres é anunciado o Evangelho» (Lc 7,22). Os pobres, na Bíblia, são aqueles que esperavam a visita de Deus. Zacarias era um pobre e por isso soube que «pelas entranhas de misericórdia do nosso Deus, o Sol nascente» nos visitaria «vindo do alto» (Lc 1,78); Simeão era pobre e, por isso, os seus olhos viram a salvação[17].

Esta pobreza não é miséria da alma, nem estreiteza de vistas; nem significa ausência de letras: os magos de Belém, que pertenciam seguramente à elite cultural da sua terra, eram «pobres em espírito» (Mt 5,3); a sua atitude contrasta com a suficiência dos escribas, a ansiedade de Herodes e a curiosidade efémera de Jerusalém onde, passado o alvoroço devido à chegada dos Magos e à sua pergunta acerca do Rei que estava para nascer, ninguém mais voltou a interessar-se pelo assunto. Estes sábios tinham a simplicidade dos pastores de Belém; tinham coração para entender, olhos para ver, ouvidos para escutar[18] e, por isso, puderam contar-se entre os primeiros a adorá-l’O.

«Pôs os olhos na humildade da sua serva (…). A sua misericórdia derrama-se de geração em geração sobre os que O temem». O olhar misericordioso de Deus pousa naqueles que o podem acolher, porque reconhecem com o salmista: «Eu sou pobre e desgraçado, mas o Senhor cuida de mim» (Sal 40 [39],18). Deus “necessita” da nossa pobreza para entrar na alma: «Jesus não sabe que fazer da astúcia calculadora, da crueldade dos corações frios, da formosura vistosa mas vã. Nosso Senhor ama a alegria dum coração moço, o passo simples, a voz sem falsete, os olhos limpos, o ouvido atento à sua palavra de carinho. E é assim que reina na alma»[19].

Filha e Mãe da misericórdia

Santa Maria é Filha de Deus e Mãe de Deus: genuisti qui te fecit; gerou Aquele que a tinha criado e que a tinha redimido

Santa Maria é Filha de Deus e Mãe de Deus: genuisti qui te fecit[20]; gerou Aquele que a tinha criado e que a tinha redimido, certamente de um modo especial que a distingue de todo o género humano: «Maria recebeu na sua conceção a bênção do Senhor e a misericórdia de Deus, seu salvador»[21]. Ela é por isso a primeira Filha da misericórdia de Deus. E ao mesmo tempo que é Filha, é Mãe do Deus de misericórdia: por isso lhe chamamos Mater misericordiæ, Madre de misericórdia. «Dirijamos a ela a antiga e sempre nova oração da Salve Regina, para que nunca se canse de voltar para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, o seu Filho Jesus»[22]. São Josemaría ensinou-nos que «a Jesus sempre se vai e se “volta a ir” por Maria»[23]. A nossa Mãe dissolve a soberba dos nossos corações e ajuda-nos a fazermo-nos pequenos, para que Deus ponha os olhos na nossa humildade e nasça Jesus em nós. Recorramos a Ela com confiança de filhos, em tantos pequenos detalhes de carinho; um, que São Josemaría aconselhava aos fiéis do Opus Dei é beijar o terço antes de rezar o Salmo 2, às terças-feiras.

Todas as gerações lhe chamaram e lhe «chamarão bem-aventurada», porque «o amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria que tem as suas raízes em forma de cruz»[24]: com o seu Filho, Santa Maria sofreu no Calvário «o dramático encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina»[25]. A Piedade, como veio a chamar-se a cena da Virgem com o seu Filho morto nos braços, expressa intensamente essa participação íntima da nossa Mãe na misericórdia de Deus. «Piedade» traduz precisamente o hebreu hesed, um dos conceitos com que a Bíblia expressa a misericórdia de Deus. Na Cruz, desprezado pelos homens, Deus protege mais que nunca «Israel seu servo, recordando a sua misericórdia». Quando os homens se esquecem das misericórdias do Senhor, Deus leva-as ao extremo: «Mulher, aí tens o teu filho (…). Aqui tens a tua mãe» (Jo 19,26-27). Estas palavras que el Senhor dizia da Cruz à sua Mãe e a cada um de nós[26], manifestam «o mistério de uma especial missão salvífica. Jesus deixava-nos a sua mãe como nossa mãe. Só depois de fazer isto Jesus pôde sentir que “tudo está consumado” (Jo 19,28)»[27]. Acolhemo-nos à sua proteção, para que nos faça misericordiosos como o Pai: «Ela dilatará o nosso coração e nos fará ter sentimentos de misericórdia»[28].


[1] Cfr. Lc 1,26-38.

[2] S. Josemaría, Santo Rosário, 1º mistério gozoso.

[3] Cfr. Hino Adoro te devote.

[4] Bento XVI, Enc. Spe salvi (30-XI-2007), 50.

[5] Cfr. Lc 1,46-55.

[6] S. Josemaría, Amigos de Deus, 241.

[7] S. Josemaría, Carta 11-III-1940, 30.

[8] Francisco, Homilia, 15-VIII-2013.

[9] Francisco, Ex. Ap. Evangelii gaudium (24-XI-2013), 265.

[10] Antífona Salve Regina.

[11] Cfr. Jo 16, 22.

[12] São Josemaría, Cristo que passa, 131.

[13] No original grego, o Magnificat «tem sete verbos em aoristo, que indicam outras tantas ações que o Senhor realiza de modo permanente na história: “Faz milagres...; dispersa os soberbos...; derruba do trono os poderosos...; enaltece os humildes...; aos famintos enche-os de bens...; aos ricos os despede-os sem nada...; auxilia Israel”» (Bento XVI, Audiência, 15-II-2006).

[14] Bento XVI, Audiência, 15-II-2016.

[15] Cfr. Mt 11,25-27.

[16] Cfr. Is 42,7.18; 61,1; Lc 7,19-20; Mt 11,2-3.

[17] Cfr. Lc 2,30.

[18] Cfr. Dt 29,3.

[19] Cristo que passa, 181.

[20] Missal Romano, Comum da Virgem Maria, Antífona de entrada.

[21] Liturgia das horas, 8 de dezembro, Officium lectionis, Antífona.

[22] Francisco, Bula Misericordiæ Vultus (11-IV-2015), 24.

[23] S. Josemaría, Caminho, 495.

[24] Cristo que passa, 43.

[25] Francisco, Evangelii gaudium, 285.

[26] Cfr. São João Paulo II, Enc. Ecclesia de Eucharistia (17-IV-2003), 57.

[27] Francisco, Evangelii gaudium, 285.

[28] S. Josemaría, “El compromiso de la verdad” (9-V-1974), em Josemaría Escrivá y la Universidad, Pamplona: Eunsa, 1993, 109.