Conhecê-l'O e conhecer-te (9): Não temas, que Eu estou contigo

No decorrer da nossa vida de oração também surgirão dificuldades ou dúvidas. Existem muitas razões para pensar que nesses momentos Deus está especialmente próximo.


Cerca de seis séculos antes do nascimento de Jesus, o povo judeu encontrava-se sob o domínio da Babilónia. Muitos tinham sido levados prisioneiros para terra estrangeira. As promessas antigas pareciam desvanecer-se. A tentação de pensar que tudo tinha sido um engano era muito frequente. Neste contexto, surgem textos proféticos sobre a libertação do povo e, especialmente, oráculos de grande profundidade espiritual em que Deus nos manifesta a sua proximidade em todo o momento. «Não temas», repete uma e outra vez: «Se tiveres de atravessar as águas, estarei contigo e os rios não te submergirão. Se caminhares pelo fogo, não te queimarás e as chamas não te consumirão.» (Is 43, 1-2). E continua mais adiante: «Não temas, que Eu estou contigo (…). Tragam-me os meus filhos lá de longe e as minhas filhas dos confins da terra.» (Is 43,5-6).

Um estribilho constante

No Novo Testamento, como é lógico, não desaparece essa chamada a confiar em Deus, não cessa esse consolo no meio das inquietações da vida. Algumas vezes, o Senhor serve-se dos anjos, como quando se dirige a Zacarias, esposo de Santa Isabel, no dia em que entrou para oferecer incenso no santuário; já eram um casal de idade e não tinham tido filhos até esse momento. «Não temas, Zacarias: a tua súplica foi atendida» (Lc 1, 13), disse-lhe o anjo. Os mensageiros de Deus tinham levado um anúncio semelhante tanto a S. José quando não sabia se devia receber Maria ou não na sua casa (cf. Mt 1, 20), como aos pastores quando se assustaram ao saber que Deus queria que fossem os primeiros a adorar o menino Jesus recém-nascido (cf. Lc 2, 10). Esta e, muitas outras ocasiões, são um sinal de que o Senhor nos quer acompanhar sempre nas decisões importantes da nossa existência.


DEUS SEMPRE NOS QUIS OFERECER CONSOLO NO MEIO DA INCERTEZA.

Mas, não são apenas os profetas e os anjos, os únicos a ser portadores desse «não temas». Quando o próprio Deus se fez homem, foi Ele quem pessoalmente continuou com esse estribilho no meio dos caminhos da vida daqueles O rodeavam. Com aquelas mesmas palavras, por exemplo, Jesus anima os seus ouvintes a não se deixarem invadir pela incerteza do alimento ou da roupa, mas, a preocuparem-se sobretudo com a sua alma (cf. Mt 10, 31); Cristo também quer levar paz ao chefe da sinagoga que tinha perdido a filha mas, não tinha perdido a fé (cf. Mt 5, 36), dar sossego aos seus apóstolos quando, depois de uma noite de tempestade, O veem aproximar-se caminhando sobre as águas (cf. Jn 6, 19), ou tranquilizar os três – Pedro, João e Tiago – que viram a sua glória no Tabor (cf. Mt 17, 7). Deus procura ir sempre ao encontro desse temor, natural perante as manifestações ordinárias ou extraordinárias das suas ações.

Também S- Josemaria notava essa reação divina ao recordar um acontecimento especial na sua vida interior. Concretamente, quando num dia de verão do ano de 1931, enquanto celebrava a Santa Missa, compreendeu de um modo especialmente claro que seriam os homens e mulheres correntes os que levantariam a cruz de Cristo em todas as atividades humanas. «Ordinariamente, perante o sobrenatural, tenho medo. Depois, vem o não temas, Sou Eu!»[1]. Esse temor não surge unicamente perante essas ações singulares da graça. Também se apresenta, de diversas maneiras, na vida cristã habitual; por exemplo, quando Deus nos faz vislumbrar a grandeza do Seu amor e da Sua misericórdia, quando compreendemos um pouco melhor a profundidade da sua entrega na Cruz e na Eucaristia ou, quando experimentamos o convite para segui-Lo mais de perto… e nos inquietam as consequências que podem ter essas graças na nossa vida.

Mais forte do que qualquer dúvida

A oração, enquanto estivermos na terra, é um combate[2]. É dramático que os desejos mais nobres do coração humano – como viver em comunicação com o nosso próprio Criador – tenham sido parcialmente desfigurados e desviados pelo pecado. Os nossos anseios de amizade, amor, beleza, verdade, felicidade ou paz estão unidos, na nossa situação atual, ao esforço por superar erros, à dificuldade em vencer algumas resistências. E essa condição geral da vida humana também acontece na relação com o Senhor.


O EMPENHO DE JESUS EM TRAZER-NOS A SUA PAZ É MAIS FORTE DO QUE AS NOSSAS DEBILIDADES

No início da vida de piedade, muitas pessoas assustam-se ao pensar que não sabem fazer oração, ou confundem-se perante os fracassos, as inconstâncias e a desordem que podem acompanhar o início de qualquer tarefa. Compreende-se, desse modo, que, aproximar-se do Senhor, significa encontrar-se com a Sua Cruz; não deve surpreender que apareçam a dor, a solidão, as contradições[3]. Também se teme, com o passar dos anos, que o Senhor permita provações e obscuridades que exijam mais do que aquilo que podemos oferecer. Ou se olha com nervosismo a possibilidade de sermos invadidos pela rotina e, finalmente, que tenhamos de nos conformar a uma relação medíocre com Deus.

Essas palavras – «não temas» – que escutaram Zacarias, José, os pastores, Pedro, João, Tiago e tantos outros também se dirigem a cada um de nós durante toda a nossa vida. Recordam-nos que, na vida da graça, o decisivo não é aquilo que fazemos, mas sim aquilo que realiza o Senhor. «A oração é uma tarefa conjunta de Jesus Cristo e de cada um de nós»[4] na qual o protagonista principal não é a criatura que, procura estar atenta à ação de Deus, mas, o Senhor e a Sua ação na alma. Entendemos isto facilmente quando Deus nos abre novos horizontes, quando desperta sentimentos de agradecimento ou nos convida a empreender caminhos de santidade… Mas essa mesma confiança deveria continuar presente quando aparecem as dificuldades, quando sentimos a nossa pequenez e parece que somos envolvidos pela obscuridade.

«Sou eu, não temais». Jesus, assim como entendia as dificuldades, confusões, medos e dúvidas daqueles que queriam segui-l'O, continua a fazê-lo com cada um de nós. O nosso empenho em viver ao Seu lado é sempre menor do que o Seu em estar perto de nós. É Ele quem está empenhado em que sejamos felizes e é suficientemente forte para realizar esse Seu desígnio, contando inclusive com as nossas fragilidades.

Disposições que ajudam a orar

Da nossa parte, temos de fazer o possível por entrar em autênticos caminhos de oração. Ainda que a conversa com as outras pessoas pareça espontânea ou natural, na realidade aprendemos a falar – e descobrimos as atitudes elementares do diálogo – com a ajuda de outros, muito lentamente. O mesmo ocorre na relação com Deus, porque «a oração deve enraizar-se a pouco e pouco na alma, como a pequena semente que se tornará mais tarde árvore frondosa»[5]. E por isso, é compreensível que os discípulos tenham pedido a Jesus que os ensinasse a orar (cf. Lc 12, 1).

Entre essas atitudes fundamentais para entrar numa vida de oração estão a fé e a confiança, a humildade e a sinceridade. Quando oramos com uma disposição errada – por exemplo, quando não queremos emendar aquilo que nos afasta de Deus ou quando não estamos dispostos a renunciar à nossa autossuficiência – corremos o risco de tornar estéril a oração. É verdade que essas atitudes erróneas são frequentemente inconscientes. Se procuramos um modelo erróneo de eficácia para a nossa oração, tão frequente na nossa cultura, também é fácil cair na armadilha de medir a nossa relação com o Senhor apenas pelos resultados que se detetam e que, a longo prazo, nos custe encontrar tempo para rezar.

CONVEM CONSTRUIR A NOSSA ORAÇÃO SOBRE BOAS DISPOSIÇÕES PESSOAIS E ALGUMAS CLARAS VERDADES DE FÉ

Dentre essas disposições íntimas para orar, são singularmente essenciais as que se referem à confiança no Senhor. Apesar de terem boa vontade, certas lacunas na formação levam muitas pessoas a viver com uma noção equivocada de Deus e de si próprias. Umas vezes imaginam que Deus é um juiz rígido, que exige uma conduta perfeita; outras vezes podem pensar que temos de receber aquilo que pedimos tal e qual como queremos; ou que os pecados são uma barreira intransponível para alcançar uma relação sincera com o Senhor. Apesar de poder parecer óbvio, precisamos de construir a nossa vida de oração sobre o alicerce seguro de algumas verdades nucleares da fé. Por exemplo, que Deus é um Pai amoroso que se alegra com o nosso trato; que a oração é sempre eficaz porque Ele atende as nossas súplicas apesar de os Seus caminhos não serem os nossos; ou que as nossas ofensas são precisamente ocasião para nos aproximarmos novamente ao nosso Salvador.

Oferecer a Deus as nossas dificuldades

«Não sabes orar? – Põe-te na presença de Deus, e logo que começares a dizer: “Senhor, não sei fazer oração!...”, podes ter a certeza de que começaste a fazê-la»[6]. Como fez com os apóstolos, o Senhor vai-nos ensinando pouco a pouco a crescer nessas atitudes íntimas, se não nos escondermos no monólogo interior nem numa oração anónima, alheia aos nossos desejos e preocupações reais[7].

Tal como sucedia com eles, a nossa relação com o Senhor avança no meio das próprias debilidades. A falta de tempo, as distrações, o cansaço ou a rotina são habituais na oração, tal como também sucede nas relações humanas. Por vezes, isto exige cuidar a ordem, vencer a preguiça, colocar o importante à frente do urgente. Outras vezes requer realismo para ajustar com delicadeza os momentos dedicados ao Senhor, como tem de fazer uma mãe de família que não se pode desinteressar dos seus filhos pequenos em nenhum momento. Sabemos que, em certas ocasiões, «na oração é necessária uma atenção difícil de disciplinar»[8]. Dispersam-nos as preocupações, as tarefas pendentes, os estímulos dos ecrãs. E o mal de tudo isto é que pode confundir o nosso próprio mundo interior: surgem as feridas do amor próprio, as comparações, os sonhos e fantasias, os ressentimentos ou as lembranças de qualquer espécie. Pode suceder-nos que, apesar de estarmos na presença de Deus, «os assuntos fervilhem na cabeça nos momentos mais inoportunos»[9].

Também nos afeta, como é lógico, o cansaço físico: «O trabalho esgota o teu corpo e não podes fazer oração»[10]. Pode servir-nos de consolo recordar que a fatiga também adormece os apóstolos na glória do Tabor (Lc 9, 32) ou na angústia de Getsemani (Lc 22, 45). E, além do cansaço físico, na nossa cultura é frequente um tipo de cansaço interior que nasce da ansiedade nas tarefas, da pressão na profissão e nas relações sociais, ou da incerteza perante futuro… e que este estado interior pode aumentar a dificuldade para meditar com serenidade.

O Senhor entende bem – na verdade, muito melhor do que nós – essas dificuldades. Por isso, apesar de nos fazerem sofrer, porque desejaríamos ter uma relação mais delicada com Ele, muitas vezes «não importa que (…) não consigas concentrar-te e recolher-te»[11]. Podemos tentar falar com Jesus precisamente sobre esses assuntos, notícias, pessoas ou lembranças que ocupam a nossa imaginação. A Deus interessa tudo o que é nosso, mesmo que pareça trivial ou insignificante. E, com frequência, irá ajudar-nos a examinar esses assuntos, pessoas ou reações de outro modo, com sentido sobrenatural, com caridade. Tal como fazem as crianças nos braços da sua mãe, podemos descansar n'Ele, entregar-Lhe o nosso atordoamento, refugiar-nos no Seu coração para alcançar a paz.

Um empenho maior do que o nosso

Provavelmente, as dificuldades mais graves «são as astúcias do Tentador que tudo faz para desviar o homem da oração e da união com o seu Deus»[12]. Nosso Senhor foi tentado pelo demónio no final daqueles quarenta dias de retiro no deserto, quando sentia fome e debilidade (Mt 4, 3). Normalmente, o maligno aproveita as nossas distrações e pecados para introduzir na alma a desconfiança, o desespero e a renúncia ao amor. Pelo contrário, como aparece constantemente no Evangelho, a nossa fraqueza é, na realidade, um motivo para nos aproximarmos ainda mais ao Senhor. E, «à medida que se avança na vida interior, conhecem-se com mais clareza os defeitos pessoais»[13].

Com aparência de humildade, o demónio pode fazer-nos acreditar que somos indignos para tratar a Deus, que os nossos desejos de entrega são aparentes e que podem esconder uma certa dose de hipocrisia e de falta de determinação. «Pensas que os teus pecados são muitos, que o Senhor não poderá ouvir-te?»[14]. A consciência da nossa indignidade – tão valiosa em si mesma – pode então provocar um sofrimento real, mas errado, que pouco tem a ver com a dor verdadeira e, que nos pode encerrar numa atitude queixosa que, inclusivamente, poderá impossibilitar a oração. Claro que a tibieza e os pecados podem ser um obstáculo à oração, mas não nesse sentido. O Senhor não deixa de nos amar por maiores que sejam as nossas fraquezas. Não O assustam, nem O surpreendem, e não renuncia ao seu desejo de que alcancemos a santidade. Mesmo que chegássemos deliberadamente a pactuar com a rotina, com o conformismo ou com a tibieza, Deus não deixaria de esperar o nosso retorno.

AS DIFICULDADES QUE PODEMOS ENCONTRAR AO ORAR FORAM PERMITIDAS POR DEUS E, POR ISSO, COM ELAS PODEMOS NOS APROXIMAR MAIS D’ ELE

Mas o inimigo pode também tentar «mesmo quando a alma arde inflamada no amor de Deus. Sabe que nessa altura a queda é mais difícil, mas que – se conseguir que a criatura ofenda o seu Senhor, ainda que seja em pouco – poderá lançar naquela consciência a grave tentação do desespero»[15]. Então podem aparecer a amargura e o desencanto. Para manter viva a esperança em qualquer momento, é necessário ser realistas, admitir a nossa pequenez, perceber que esse suposto ideal de santidade que tínhamos em mente – uma plenitude inalcançável – é errado. Devemos advertir que só importa agradar a Deus, e, sobretudo que, aquilo que é realmente decisivo é o que realiza o Senhor com o seu amor poderoso contando com a nossa luta e a nossa fraqueza.

A esperança cristã não é uma esperança simplesmente humana, baseada nas nossas forças, ou na intuição natural sobre a bondade do Criador. A esperança é um dom que nos excede, que o Espírito Santo infunde e renova constantemente em nós. Nesses momentos de desalento, «é a hora de clamar: lembra-Te das promessas que me fizeste, para me encher de esperança; isto consola-me no meu nada, e enche o meu viver de fortaleza (Sl 118, 49-50)»[16]. Foi Deus quem nos chamou. É Deus que está empenhado, mais do que nós, em conduzir-nos à união com Ele e que tem o poder de o conseguir.

Quando a escuridão é luz

Durante a vida, como em todas as relações duradouras, o Senhor vai-nos ensinando a entendê-Lo cada vez melhor e a entendermo-nos a nós próprios de maneira distinta. É diferente o trato de Pedro com Jesus no início, no seu primeiro encontro nas proximidades do Jordão, do que depois da sua morte e ressurreição, na margem do lago de Genesaré. Também sucede o mesmo connosco. Não nos deveria estranhar que o Senhor nos leve por caminhos divinos que não são aqueles que tínhamos pensado. Por vezes esconde-se, mesmo quando o procuramos com sincera piedade, como quando não O encontraram as mulheres que foram ao sepulcro (Lc 24, 3). Outras vezes, pelo contrário, torna-se presente quando estamos encerrados em nós mesmos, como quando se apresentou aos apóstolos no cenáculo (Lc 24, 36). Se mantivermos a confiança, à medida que o tempo passa, descobriremos que aquela escuridão era luminosa, que era o próprio Cristo quem nos abraçava solicitamente – «não temas», repetia-nos naqueles momentos em que estávamos a forjar o nosso coração à medida do Seu.


[1] Bto. Álvaro del Portillo, Una vida para Dios. Reflexiones en torno a la figura de Josemaría Escrivá de Balaguer, Rialp, Madrid, 1992, pp. 163-164.

[2] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2573.

[3] cf. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 301.

[4] Eugene Boylan, Dificultades en la oración mental, Rialp, Madrid, 1974, p. 147.

[5] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 295.

[6] S. Josemaria, Caminho, n. 90.

[7] cf. S. Josemaria, Sulco, n. 65.

[8] Catecismo da Igreja Católica, n. 2705.

[9] S. Josemaria, Sulco, n. 670.

[10] S. Josemaria, Caminho, n. 895.

[11] S. Josemaria, Sulco, n. 449.

[12] Catecismo da Igreja Católica, n. 2725.

[13] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 20.

[14] Ibid., n. 253.

[15] Ibid., n. 303.

[16] Ibid., n. 305.

Jon Borobia

Fotografia: Sabine Ojeil no Unsplash