O tempo de uma presença (8): As Festas do Senhor durante o Tempo Comum (II)

Neste artigo sobre as festas do tempo Comum são comentadas as solenidades do Sagrado Coração de Jesus, a Transfiguração do Senhor, a Exaltação da Santa Cruz e Cristo Rei.

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Por meio das diversas solenidades do Senhor que a liturgia nos propõe ao longo do ano, podemos contemplar, de várias formas, o inesgotável mistério de Deus, deixando que a sua luz banhe a nossa existência cristã no mundo. No centro do ano litúrgico, encontra-se a Páscoa que, aliás «se prolonga durante três meses – primeiro os quarenta dias da Quaresma e depois os cinquenta dias do Tempo pascal», seguida de «três festas que têm um caráter ‘sintético’: a Santíssima Trindade, o Corpus Christi e, por último, o Sagrado Coração de Jesus»[1]. Tratámos das duas primeiras comemorações num artigo anterior: agora contemplaremos a solenidade do Sagrado Coração, para continuar com a Transfiguração, a Exaltação da Santa Cruz e concluir com a festa de Cristo Rei.

O Sagrado Coração de Jesus

Na sexta-feira após o segundo domingo depois de Pentecostes, a Igreja dirige o seu olhar para o lado aberto de Cristo na Cruz, expressão do amor infinito de Deus pelos homens e manancial de onde brotam os seus sacramentos. A contemplação desta cena alimentou a devoção dos cristãos desde os primeiros séculos, pois aí encontraram uma fonte contínua de paz e segurança nas dificuldades. A mística cristã convida-nos a abrir-nos ao Coração do Verbo Encarnado: «Que Cristo habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade, a fim de que possais, com todos os cristãos, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus»[2]

A piedade popular do final da Idade Média desenvolveu uma veneração profunda e expressiva da Humanidade Santíssima de Cristo sofrendo na Cruz.

A piedade popular do final da Idade Média desenvolveu uma veneração profunda e expressiva da Humanidade Santíssima de Cristo sofrendo na Cruz. Difundiu-se assim o culto à coroa de espinhos, aos pregos, às chagas... e ao Coração aberto, síntese de todos os padecimentos do Salvador por nosso amor. Essas formas de piedade deixaram sua marca na Igreja, de modo que, no século XVII, nasceu a celebração litúrgica da solenidade do Sagrado Coração. Em 20 de outubro de 1672, um sacerdote normando, S. João Eudes, celebrou, pela primeira vez, uma missa própria do Sagrado Coração e, a partir de 1673, foram-se difundindo pela Europa as visões de Sta. Margarida Maria Alacoque sobre a expansão deste culto. Finalmente, Pio IX estendeu oficialmente à Igreja latina essa festa.

A liturgia do dia desenvolve os dois pilares teológicos da devoção: as riquezas insondáveis do mistério de amor derramado em Cristo e a contemplação reparadora do Seu coração perfurado. São mencionados nas duas orações do dia que o Missal Romano oferece: «alegrando-nos pela solenidade do Coração do Vosso Filho, meditemos as maravilhas do Seu amor e possamos receber, desta fonte de vida, uma torrente de graças»; «no coração do Vosso Filho, ferido por nossos pecados, nos concedestes infinitos tesouros de amor, fazei que Lhe ofereçamos uma justa reparação».

A consideração do abismo de ternura do Senhor pelas almas é um convite a dar ao próprio coração a mesma forma do Seu, a unir o desejo de reparação a vontade eficaz de aproximar-Lhe mais almas : «abeiremo-nos um pouco do fogo do Amor de Deus, deixemos que o Seu impulso mova as nossas vidas, sonhemos com a possibilidade de levar o fogo divino de um extremo ao outro do mundo, de O dar a conhecer aos que nos rodeiam, para que também eles conheçam a paz de Cristo e, com ela, encontrem a felicidade»[3]

A Transfiguração do Senhor

A solenidade da Transfiguração do Senhor nasce, provavelmente, da comemoração anual da dedicação de uma basílica em honra desse mistério que aconteceu no Monte Tabor. No século IX, a festa foi introduzida no Ocidente e mais tarde, durante os séculos XI e XII, começou a celebrar-se também em Roma, na basílica vaticana. Foi incorporada ao Calendário romano pelo Papa Calisto III (1457) em agradecimento pela vitória das tropas cristãs frente aos turcos na batalha de Belgrado, em 6 de agosto de 1456.

No Oriente cristão, a Transfiguração de Nosso Deus e Salvador Jesus Cristo é uma das grandes solenidades do ano, junto com a Páscoa, o Natal e a Exaltação da Santa Cruz. Nela se expressa toda a teologia da divinização, pela graça, da natureza humana que, revestindo-se de Cristo, é iluminada pelo esplendor da glória de Deus. Unidos a Jesus, aponta o ofício de leituras do rito romano, «refulgiremos aos olhos espirituais –renovadas de certo modo as feições de nossa alma– conformados à Sua imagem»[4].

Senhor nosso, aqui nos tens dispostos a escutar tudo o que queiras dizer-nos.
Fala-nos, estamos atentos à Tua voz.

Com Pedro, Tiago e João, nessa festa, somos convidados a pôr o centro da nossa atenção em Jesus: «Eis o meu Filho muito amado, em quem pus todo o meu enlevo, ouvi-O»[5]. Temos de ouvi-Lo, e deixar que a Sua vida e ensinamentos divinizem a nossa vida diária. Assim rezava S. Josemaria: «Senhor nosso, aqui nos tens dispostos a escutar tudo o que queiras dizer-nos. Fala-nos, estamos atentos à Tua voz. Que as Tuas palavras, caindo na nossa alma, abrasem a nossa vontade para que se lance fervorosamente a obedecer-Te»[6].

Escutar o Senhor com a disposição sincera de identificar-nos com Ele leva-nos a aceitar o sacrifício. Jesus transfigura-se «para tirar do coração dos discípulos o escândalo da cruz»[7], para ajudá-los a suportar os momentos obscuros da Sua Paixão. Cruz e glória estão intimamente unidas. De facto, fixou-se o 6 de agosto como festa da Transfiguração em relação à Exaltação da Santa Cruz: entre ambas as celebrações decorrem quarenta dias que, em algumas tradições, coincidem como uma segunda quaresma. Assim, a Igreja bizantina vive esse período como um tempo de jejum e de contemplação da Cruz.

A Exaltação da Santa Cruz

A festa da Exaltação da Santa Cruz tem a sua origem na Igreja de Jerusalém. Desde meados do século IV, celebrava-se a 13 de setembro o aniversário da dedicação da basílica constantiniana levantada no Gólgota. Segundo a recordação de uma peregrina da antiguidade chamada Egéria, uns anos antes, nessa mesma data, encontrou-se a relíquia da Cruz do Senhor. O gesto da exaltação realizava-se no segundo dia da oitava da dedicação: nessa jornada, testemunha um livro litúrgico da época, “mostra-se solenemente a todo o povo cristão a Cruz venerável”. Atualmente, o rito mais característico desta festa na liturgia bizantina consiste na elevação que faz o sacerdote da Cruz acima de todas as cabeças, abençoando o povo e dirigindo-se aos quatro pontos cardeais, enquanto o coro canta cem vezes a ladainha Kyrie eleison em cada ostensão. Os fiéis, depois, passam para venerar a Cruz e recebem uma flor do conjunto que adorna o lugar onde repousa. É tão importante essa solenidade no Oriente cristão, que é considerada como uma Páscoa do outono.

Em Roma, desde inícios do século VI, comemorava-se a 3 de maio uma festa paralela: a Invenção da Santa Cruz. Em meados do século VII, na basílica vaticana adotou-se o uso procedente de Jerusalém de venerar um fragmento da relíquia da Cruz (chamado de lignum crucis) no dia 14 de setembro. O Papa Sérgio (687-701) mudou esse costume para a basílica laterana e revestiu-o de especial solenidade, de tal maneira que já no século VIII, a festa se estendeu também por todo o Ocidente.

se a árvore do Paraíso foi o lugar da queda do homem, o Senhor previu que a Cruz fosse a nova árvore salvadora

Na liturgia romana, o prefácio da Missa lembra que, se a árvore do Paraíso foi o lugar da queda do homem, o Senhor previu que a Cruz fosse a nova árvore salvadora «ut unde mors oriebátur, inde vita resúrgeret… para que de onde viera a morte, daí ressurgisse a vida»[8]. As leituras ressaltam a elevação de Cristo no madeiro como uma antecipação da elevação na glória, e polo que atrai a todas as criaturas: «E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim»[9]. A Cruz é o lugar do triunfo de Jesus, de onde estende o Seu reinado contando com a nossa colaboração: «Cristo, Senhor Nosso, foi crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre Deus e os homens. Jesus Cristo recorda a todos: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo 12, 32), se vós me colocardes no cume de todas as atividades da terra, cumprindo o dever de cada instante, dando testemunho de mim no que parece grande e no que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a mim. O meu reino entre vós será uma realidade»[10].

S. Josemaria usava sempre uma corrente com um relicário em forma de cruz com o lignum crucis. Era uma manifestação da sua devoção à Santa Cruz no cumprimento amoroso do dever de cada jornada. Existem inumeráveis gestos, inclusive pequenos, que também servem para expressar esta devoção na vida diária; por exemplo, ao abençoar a mesa e agradecer fazemos o sinal da cruz: «Este momento da bênção da mesa, embora muito breve, recorda-nos que a nossa vida depende de Deus, fortalece o nosso sentido de gratidão pelos dons da criação, dá graças por aqueles que com o seu trabalho fornecem esses bens, e reforça a solidariedade com os mais necessitados»[11]

Cristo Rei do Universo

O senhorio de Cristo sobre o universo comemora-se de diversos modos nas festas do ano litúrgico como a Epifania, a Páscoa, a Ascensão. Com a solenidade de Cristo Rei, instituída em 1925 pelo Papa Pio XI no contexto do avanço da secularização na sociedade, a Igreja quer-nos apresentar com maior clareza ainda a soberania de Jesus Cristo sobre toda a Criação, incluída a história humana.

O reino de Jesus é, como nos ensina a liturgia da Missa, um «Regnum veritátis et vitae; regnum sanctitátis et grátiae; regnum iustítiae, amóris et pacis»[12]: verdade e vida, santidade e graça, justiça, amor e paz. São os valores que deseja com mais força o coração humano, e, nós, os cristãos podemos contribuir para essa realização. De modo especial, com as obras de misericórdia dirigidas aos necessitados, como é proclamado no Evangelho próprio do ciclo A: «estava com fome, e destes-Me de comer; estava com sede, e destes-Me de beber; era peregrino, e acolhestes-Me»[13]

No entanto, o próprio Jesus nos adverte: «O Meu Reino não é deste mundo»[14]. O Seu senhorio manifestar-se-á em plenitude com Sua segunda vinda, gloriosa, quando se instaurarem os novos céus e a nova terra, e «todas as criaturas, libertas da escravidão e servindo à Sua majestade, O glorifiquem eternamente»[15]. Agora é o tempo da esperança, de trabalhar pelo Seu reinado, confiantes que a vitória final será Sua.

Jesus é o centro da história: não só da humanidade na sua totalidade, mas também de cada pessoa individualmente. Inclusive quando parece que tudo está perdido, sempre é possível dirigir-se ao Senhor, como fez o bom ladrão, segundo nos apresenta o Evangelho no ciclo C[16]. Quanta paz dá o facto de que, apesar do nosso passado, com o arrependimento sincero podemos entrar sempre no Reino de Deus: «Neste dia, far-nos-á bem pensar na nossa história, olhar para Jesus e, do fundo do coração, repetir-Lhe muitas vezes –mas com o coração, em silêncio– cada um de nós: ‘Lembra-Te de mim, Senhor, agora que estás no Teu Reino! Jesus, lembra-Te de mim, porque eu tenho vontade de me tornar bom, mas não tenho força, não posso: sou pecador, sou pecadora. Mas lembra-Te de mim, Jesus! Tu podes lembrar-Te de mim, porque Tu estás no centro, Tu estás precisamente no Teu Reino!’»[17]. Essa petição de amor plasma-se ao longo do tempo litúrgico quando atualizamos na nossa vida quotidiana o que se celebra na Missa. O Sagrado Coração de Jesus, a Sua Transfiguração, a Exaltação da Santa Cruz e a solenidade de Cristo Rei não só marcam o ano, mas enchem de conteúdo os dias em que se celebram.

José Luis Gutiérrez


[1] Bento XVI, Homilia na solenidade de Corpus Christi, 22/05/2008.

[2] Ef 3, 17-19.

[3] S. Josemaria Escrivá, Cristo que passa, n. 170.

[4] Anastásio Sinaíta, Sermão no dia da Transfiguração do Senhor (Lectio
altera
do Ofício de leituras da Liturgia das Horas de 6 de agosto).

[5] Mt 17, 5.

[6] S. Josemaria, Santo Rosário, 4º mistério luminoso.

[7] Missal Romano, Prefácio da Transfiguração do Senhor.

[8] Missal Romano, Prefácio da Santa Cruz.

[9] Jo 12, 32

[10] S. Josemaria Escrivá, Cristo que passa, n. 183.

[11] Francisco, Laudato si, n. 227.

[12] Missal Romano, Prefácio de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

[13] Mt 25, 35.

[14] Jo 18, 36.

[15] cf. Missal Romano, Oração da Missa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo.

[16] cf. Lc 23, 35-43.

[17] Francisco, Homilia, 24/11/2013.

José Luis Gutiérrez