Um sacerdote, um pai

Na madrugada de 23 de Março de 1944, poucas horas depois de ter regressado duma peregrinação à Terra Santa, faleceu Álvaro del Portillo. O ABC publicou no dia seguinte este artigo de D. Javier Echevarría, que tinha acompanhado D. Álvaro na viagem.

Ontem, um colapso cardiovascular, truncou a vida de D. Álvaro del Portillo, prelado do Opus Dei. Pouco antes das 4 da madrugada, tinha-me chamado para me dizer que se encontrava mal: enquanto o médico o atendia, eu próprio lhe ministrei os últimos sacramentos, de acordo com o seu explícito desejo que tinha reiteradamente manifestado.

Os olhos estão cheios de lágrimas, mas sai do coração um sincero acto de agradecimento: as circunstâncias que acompanharam o seu trânsito para o Céu levam um selo de uma última carícia paterna. Ontem mesmo tínhamos regressado de uma peregrinação à Terra Santa: uma semana intensa de oração, durante a qual pode percorrer com intenso recolhimento os passos de Jesus. Nestes dias teve encontros pastorais com numerosos fiéis, exortando-os a serem promotores de paz: a paz social é consequência da paz interior, que brota da correspondência pessoal à graça divina, da luta de cada um contra as marcas do pecado que levamos dentro da alma.

Ontem tinha celebrado a Santa Missa pela última vez em Jerusalém, na igreja do Cenáculo. E precisamente ontem à tarde regressou a Roma: quando o Senhor o chamou a Si, um grupo dos seus filhos estavam à sua volta. As lágrimas convertem-se em oração. E, na oração, dor e consolação encontram-se e compenetram-se.

Mas a oração hoje dirige-se também a suplicar a Deus a graça de que nos ajude a assumir a herança que nos deixou. Toda a sua vida foi um contínuo acto de fidelidade à mensagem espiritual de S. Josemaría. Aqui reside a raiz da fecundidade com que o Senhor abençoou o trabalho deste seu filho que, em 1935, com vinte e um anos, tinha entrado a formar parte do Opus Dei.

A 18 de Maio de 1939, quando estava iminente o fim da guerra civil espanhola, S. Josemaría dizia-lhe numa carta: “Que branco é o caminho – longo – que ainda tens que percorrer! Branco e cheio de frutos, como campo coalhado. Bendita a fecundidade do apóstolo, mais formosa do que todas as formosuras da Terra!”.

Seguiram-se, em rápida sucessão, o final das hostilidades, o recomeçar estável das actividades apostólicas do Opus Dei em todo o país, o título de engenheiro civil, o início da actividade profissional e, sobretudo, a sua íntima colaboração com o fundador no governo do Opus Dei: quase quarenta anos vividos juntos, lado a lado, dia após dia, que foram uma contínua união com Deus, de oração sem interrupções, de dedicação às almas, de amor à Cruz, dum sacerdócio vivido até as fibras mais recônditas do coração.

Monsenhor Álvaro del Portillo foi um dos três primeiros membros do Opus Dei ordenados sacerdotes a 25 de Julho de 1944. Dentro de poucos meses teria celebrado as suas bodas de ouro sacerdotais. Cumpriu-se a esperança que manifestava S. Josemaría naquela carta de 1939: uma sequência maravilhosa de graças que eu me sinto obrigado a recordar. Deus é fiel às suas promessas. Todo o sacerdote, ainda que escravo da sua missão na aldeia mais perdida, é testemunho da fecundidade que emana do sacerdócio de Cristo: frutos quase sempre invisíveis aos olhos dos homens, não traduzíveis em dados estatísticos, mas cuja consistência tem uma duração de eternidade. Frutos de graça, de fidelidade ao compromisso cristão, de paz, de compreensão e de perdão, de generosidade e de sacrifício, de dor transfigurada no amor.

Cristo vive na sua Igreja e actua através da voz do sacerdote e das suas mãos consagradas. A graça, que flue dos sacramentos e do anúncio valente e fiel da Palavra, renova incessantemente os milagres evangélicos: “Porque agora também se restitue a vista aos cegos, que tinham perdido a capacidade de olhar para o céu e de contemplar as maravilhas de Deus; dá-se liberdade aos coxos e paralíticos, que se encontravam atados pelas suas paixões e cujos corações não sabiam já amar; faz-se que os surdos ouçam, aqueles que não desejavam saber de Deus; consegue-se que os mudos falem; ressuscitam-se os mortos, nos que o pecado tinha destruído a vida”. (Josemaría Escrivá, “Cristo que passa”, n. 131).

Distribuidor dos mistérios divinos, o sacerdote fiel escuta como ressoam no mais íntimo da sua alma as palavras de Jesus: “Alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos no Céu” (Lc. 10, 20). Eu sou testemunha dos prodígios realizados por Deus através do ministério de D. Álvaro: por isso não duvido que o Senhor o acolheu na sua Glória.

Releio o que escrevi até agora, e vejo que as palavras “fiel” e “fidelidade” são muito recorrentes: uma imperfeição estilística que não emendarei, porque traça o retrato para mim mais adequado da personalidade de Álvaro del Portillo. Com ele compartilhei a certeza de que S. Josemaría foi o instrumento escolhido por Deus para uma missão providencial para a vida da Igreja, e na que, em quarenta e quatro anos de colaboração, percebi a consequência coerente de tal convicção: sempre, mas sobretudo desde 15 de Setembro de 1975, quando, na primeira votação e por unanimidade, foi eleito para lhe suceder à frente do Opus Dei, decidiu ser somente a sombra do Fundador. Nesta fidelidade, sem o prurido de actualizar aquilo que, como o Evangelho, é perenemente actual (além disso, o próprio S. Josemaría escreveu que, nas coisas de Deus, “aggiornamento” significa sobretudo fidelidade), está a causa da fecundidade que marcou a trajectória da sua vida de sacerdote.

Sinais desta fecundidade sacerdotal? Primeiro que tudo, os serviços prestados à Santa Sé, com inesgotável perserança e na adesão exemplar ao Papa: desde o trabalho em numerosas Comissões conciliares, nas que foi um dos peritos mais activos (entre outras missões, foi secretário da Comissão para o Clero, à qual se deve o decreto “Presbyterorum ordinis”), o seu empenho como consultor das mais variadas congregações romanas (Doutrina da Fé, Causas dos Santos, Clero, Religiosos), Comissões e Conselhos Pontifícios. Na sua vida é manifesta a aspiração de São Josemaría: “Servir a Igreja como a Igreja quer ser servida”.

Desde o dia da sua eleição para suceder ao Fundador decorreram quase dezoito anos. Neste período receberam a ordenação sacerdotal mais de oitocentos membros da Prelatura, desejosos de servir a Igreja com todo o coração. O Opus Dei iniciou a actividade apostólica de modo estável em vinte e um novos países: no continente americano (Bolívia, Honduras, Nicarágua, Trinidad-Tobago, República Dominicana), na Europa (Suécia, Finlândia, Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria); em África (Zaire, Costa do Marfim e Camarões), na Ásia (India, Taiwan, Macau, Hong-

-Kong, Singapura); na Oceânia (Nova Zelândia) e em Jerusalém: o seu impulso pastoral, segue as marcas do dinamismo evangelizador que João Paulo II está a reclamar a toda a Igreja, abriu horizontes inexplorados à mensagem do Opus Dei: a proclamação da vocação universal à santidade e o valor santificante do trabalho quotidiano.

Em todo lado, iniciativas de grande alcance, movidas sempre pelo que constitue a primeira responsabilidade e a atenção primordial dos pastores: bens espirituais de salvação. Algumas destas iniciativas destacam pela sua incidência na solução dos problemas sociais do ambiente em que se encontram: novas universidades em países que se esforçam pela formação de quadros dirigentes capazes de contribuir para promover um desenvolvimento homogéneo e respeitador da dignidade do homem; instituições educativas e assistenciais a favor de áreas e de países particularmente carenciados, principalmente na América Latina e em África. Não faltam também realidades com o sabor de autênticos marcos históricos do Opus Dei, porque representam o cumprimento de projectos nos quais São Josemaría interveio pessoalmente, com a sua oração e trabalho de anos, como a erecção do Opus Dei em Prelatura Pessoal. No início do Ateneu Romano da Santa Cruz palpa-se a herança do zelo do Fundador em prodigalizar as suas melhores energias ao serviço da Igreja, para a formação de sacerdotes exemplares na doutrina e na vida espiritual.

O espírito com que D. Álvaro del Portillo quis inspirar a sua missão como prelado do Opus Dei condensou-se de modo particular na beatificação do Fundador. Naquele dia inolvidável manifestou-se ante os nossos olhos a verdadeira natureza da fecundidade da que venho a falar: uma multidão de pessoas que testemunharam, com recolhimento impressionante, que a identidade do cristão radica na busca de Deus, na sede de santidade, no amor à Igreja e ao Papa.

Multidões de fieis afluem a estas horas à Igreja Prelatícia do Opus Dei, para rezarem diante dos restos mortais de D. Álvaro del Portillo. Nos seus olhos lê-se a comoção, o afecto, a gratidão. Evocando o que nos ensinou durante estes anos, posso afirmar hoje que não se encerra uma etapa da história do Opus Dei nem se abre uma nova fase: prossegue com a certeza de poder contar com um novo intercessor, a etapa da continuidade, da fidelidade à herança espiritual de S. Josemaría.