1. A celebração do quinquagésimo aniversário de sacerdócio convida-me a dirigir-me ao Senhor com esta breve oração: “obrigado, perdão e ajuda-me mais”, para percorrer com ímpeto renovado a via da conversão e do agradecimento, via principal para progredir na identificação com Cristo. Deste modo procuro seguir os passos do meu predecessor como Prelado do Opus Dei, D. Álvaro del Portillo, que gostava de se dirigir a Deus com essa exclamação, especialmente nos aniversários e noutros momentos significativos da sua vida. Também nós podemos começar os nossos dias com semelhantes palavras.
Obrigado, Senhor! À medida que os anos passam, vê-se mais clara a misericórida divina. Ao mesmo tempo, sem pessimismo estéril, com realismo, experimentam-se com mais relevo as limitações pessoais. Mas não nos tiram serenidade, porque – como aos primeiros Apóstolos – também a nós, a cada um, o Senhor dirige aquelas palavras: ego sum, nolite timere (Mt 14, 27), não tenhais medo, sou Eu.
Lançando o olhar para os cinquenta anos que passaram desde a ordenação sacerdotal, vem-me à memória uma frase de S. Josemaria dos anos 30: que pouco é uma vida para oferecê-la a Deus!... (1) Fazendo eco à verdade dessas palavras, acrescento: que breve é a existência terrena, para agradecer adequadamente à Santíssima Trindade a sua proximidade e o seu carinho! Que pobres nos sentimos para responder ao amor de Deus como Ele o merece!
Gostaria de me dirigir ao Senhor com o mesmo agradecimento profundo que admirei em muitas pessoas santas e, de perto, em S. Josemaria. Sei muito bem que estou muito longe de uns modelos tão excelsos, mas este é, realmente, o meu desejo. Por isso, atrevo-me a fazer minhas as palavras que ouvi o fundador do Opus Dei pronunciar na véspera das suas bodas de ouro sacerdotais.
Foi no dia 27 de Março de 1975, que naquele ano calhou na Quinta Feira Santa. Ao seu lado estava um pequeno grupo de filhos seus, adorando o Santíssimo Sacramento. Num improviso, S. Josemaria começou a sua oração pessoal em voz alta; essa oração que, no final da sua vida terrena, chegou a ser contínua, de dia e de noite, pois o Senhor concedeu-lhe a graça – que alguns Padres da Igreja também experimentaram – de que não se interrompesse nem sequer durante o sono.
Naquela ocasião, entre outras expressões de diálogo confiado com Jesus, presente na Hóstia Santa, ouvimo-lo pronunciar palavras que provocaram, em todos os que estávamos ali presentes, uma profunda comoção. Gratias tibi, Deus, gratias tibi! A vida de cada um de nós tem de ser um cântico de acção de graças, pois como é que se fez o Opus Dei? Fizeste-o Tu, Senhor, com quatro gatos pingados... Stulta mundi, infirma mundi, et ea quae non sunt (cfr. 1 Cor 1, 27-28). Toda a doutrina de São Paulo se cumpriu: procuraste meios completamente ilógicos, nada adequados e estendeste o apostolado pelo mundo inteiro. Dão-te graças em toda a Europa e em vários pontos da Ásia, da África, em toda a América e na Oceania. Em todos os sítios te dão graças. (2)
Se um santo se expressava assim, quais é que deveriam ser os meus sentimentos, vendo-me tão distante dele, tanto nos dotes humanos como nas qualidades sobrenaturais? Mesmo assim, sei que ao conferir-me o sacerdócio ministerial, o Senhor chamou-me seu (cfr. Jo 15, 15), outorgou-me a capacidade de renovar entre os homens o seu divino Sacrifício do Calvário e de dispensar os seus frutos nos restantes sacramentos; sei bem que me foi concedido o dom de poder proclamar a Palavra, de o representar diante dos homens, de estar intimamente unido a Ele, que deseja abeirar-se de cada criatura utilizando-me como seu instrumento. Confiou-me além disso – gratiam pro gratia! (Jo 1, 16) – o cuidado pastoral do Opus Dei, essa pequena parte do seupusillus grex (cfr. Lc 12, 32), que é a Igreja. Ajudem-me a pedir ao Senhor que eu saiba levar a cabo com eficácia a missão recebida, remarcando o sulco traçado pelos meus predecessores na tarefa de guiar a actual Prelatura.
De certo modo, o Senhor submeteu-se à vontade dos sacerdotes, quis depender das nossas palavras e dos nossos gestos para actualizar na Santa Missa o mistério pascal da sua morte e ressurreição. Ele é, como dizia S. Agostinho, «interior intimo meo», mais íntimo a nós do que nós mesmos (3). Gostaríamos de experimentar a todo o momento essa sua presença na nossa alma, de modo que durante as vinte e quatro horas do dia nos saibamos e nos sintamos instrumentos totalmente seus: e sacerdotes somente sacerdotes, sacerdotes de Jesus Cristo.
2. Ao olhar cada um para a sua vida, pode descobrir o amor sem falha, sempre jovem e novo, que a Santíssima Trindade nos deu. Deus olhou-nos a todos com um interesse divino, com essa atenção minuciosa que se concede às personalidades da terra. Certamente, para Deus nosso Pai, cada homem, cada mulher, é uma pessoa de importância inestimável. Empti enim estis pretio (1 Cor 6, 20; 7, 23), afirma São Paulo; fomos resgatados por um preço infinito: o sangue do Filho Unigénito, feito homem por nós.
No entanto, temos de reconhecer que da nossa parte – pelo menos da minha parte – nem sempre houve uma resposta adequada. Pelo contrário, houve muitas deficiências, muita falta de amor, nas coisas pequenas e nas grandes. Por isso, sinto uma imperiosa necessidade de pedir indulgência. Ajudem-me a suplicar ao Senhor – Pai, Filho e Espírito Santo, Trindade Santa – também por não ter estado à altura das circunstâncias; por não ter tomado consciência, com maior profundidade, de que Deus encontra as suas delícias em estar com os filhos dos homens –deliciae meae esse cum filiis hominum (Prov 8, 31) –, e deseja estar a sós comigo, com todos nós, na máxima intimidade; infelizmente, tantas vezes, não soubemos acolhê-lo e conversar com Ele.
Fazendo, mais uma vez, minhas as palavras de S. Josemaria, também eu devo confessar – e por maioria de razão – que ao fim de cinquenta anos estou como uma criança que balbucia: estou a começar, e a recomeçar em cada dia. E assim até ao fim dos dias que me restam: sempre a recomeçar. O Senhor assim o quer, para que não haja em nenhum de nós motivos de soberba nem de vaidade néscia. Temos de viver dependentes d’Ele, dos seus lábios, com o ouvido atento, com a vontade tensa, disposta a seguir as divinas inspirações (4).
Se, especialmente hoje, quiserem unir-se a mim nesta oração, suplico-vos que peçam ao Senhor que estas palavras de um sacerdote santo penetrem profundamente no meu coração, de modo que as torne minhas com sinceridade total. Pela minha parte, asseguro-vos que rezo todos os dias por vós, por cada um de vós. A todos peço perdão pelas minhas faltas de correspondência e de serviço, pelas possíveis ofensas que tenha podido cometer, pelas vezes que me tenha comportado com alguém sem ter em conta a maravilhosa realidade de que somos filhos amadíssimos de Deus e irmãos de Jesus Cristo.
Suplico a Nossa Senhora, que se manteve fiel junto da Cruz (cfr. Jo 19, 25), que nos faça a todos avançar pelo caminho principal da caridade, que saibamos exaltar a Santa Cruz nos nossos corpos e nas nossas almas, de modo que em todos se torne realidade a profunda aspiração que o próprio Senhor gravou a fogo no espírito do Fundador do Opus Dei, numa data bem concreta do ano de 1931.
Naquele dia 7 de Agosto, durante a celebração da Missa, S. Josemaria escutou no fundo da alma umas palavras do Evangelho de S. João segundo a versão da Vulgata, então vigente na Liturgia: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jo 12, 32). Deus fez-lhe entender com uma luz intelectual muito clara o sentido da missão confiada aos homens e às mulheres do Opus Dei no seio da Igreja. Anos mais tarde, numa meditação, aludindo a essa locução divina, comentou: aquele pobre sacerdote não sabia que o Opus Dei ia ser coroado assim, tão divinamente. Mas compreendeu que, no alto de todas as actividades humanas, deveria haver homens e mulheres com a Cruz de Cristo nas suas vidas e nas suas obras, elevada, visível, reparadora, redentora; símbolo da paz, da alegria; símbolo da Redenção, da unidade do género humano, do amor que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, a Santíssima Trindade, teve e continua a ter pelos homens. (5).
3. Ensina o Apóstolo: ninguém pode dizer: «Senhor Jesus!» se não pelo Espírito Santo (1Cor 12, 3). Se São Paulo fala assim, quanto mais necessitaremos nós de ajuda do céu, nós que nos vemos tão pobres na presença de Deus! Bem consciente do auxílio que continuamente me é dispensado, dirijo-me de novo ao nosso Deus e Senhor, para lhe repetir uma vez mais: obrigado, perdão e ajuda-me mais! Por esta razão, como recordatório do quinquagésimo aniversário de ordenação, escolhi a figura do Crucifixo: para que na minha vida, e na vida de todos, se enraíze com maior incisividade o convencimento – real, prático, concreto – de que a nossa fortaleza, as nossas virtudes, os nossos sucessos, procedem somente da bondade divina, manifestada de modo sumo em Cristo cravado na Cruz pelos nossos pecados.
Para levar avante a nova evangelização tantas vezes desejada por João Paulo II, e agora pelo Papa Bento XVI, temos de ser homens e mulheres de Cruz: este nosso mundo exige-o urgentemente. Procuremos viver e anunciar: lux in Cruce, requies in Cruce, gaudium in Cruce.
Acodem à minha memória outras considerações do Fundador do Opus Dei. Quase ao final do aceso colóquio que, como antes recordei, tinha mantido com Jesus no Santíssimo Sacramento, dirigiu-se aos que seguíamos as suas palavras, e aos fiéis da Prelatura de todos os tempos, para nos recordar uma ideia que nos ensinou muitas vezes. Temos de estar sempre – disse –no Céu e na terra. Não entre o Céu e a terra, porque somos do mundo. No mundo e no paraíso ao mesmo tempo! Esta seria a melhor forma de exprimir a nossa vida, enquanto permanecemos in hoc saeculo. No Céu e na terra, endeusados; mas sabendo que somos do mundo e que somos terra, com a fragilidade própria do que é terra; um vaso de barro que o Senhor se dignou aproveitar para o seu serviço. (6)
Antes de terminar, sinto o dever de agradecer a S. Josemaria, que me chamou ao sacerdócio e de quem aprendi tudo, e a D. Álvaro del Portillo, ao lado de quem passei muitos anos; foi para mim mestre de fidelidade a Deus. Agradeço aos fiéis da Prelatura do Opus Dei – homens e mulheres, leigos e sacerdotes –, aos bispos e sacerdotes da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, assim como aos cooperadores e aos inumeráveis jovens que tomam parte nos apostolados da Obra, que com as suas orações e os seus sacrifícios me amparam e acompanham dia após dia. Agradeço aos meus pais e aos meus irmãos e irmãs, a quem devo – humanamente falando – uma percentagem considerável da minha vocação cristã e sacerdotal. Agradeço às muitas pessoas com quem me cruzei ao longo destes cinquenta anos, que também me ajudaram com as suas orações, exemplo e palavras. A todos se dirige o meu mais vivo agradecimento, com a promessa, da minha parte, de uma oração constante e ininterrupta.
Desejo dirigir uma saudação especial aos meus irmãos bispos e sacerdotes aqui presentes, e a quantos não puderam acompanhar-me fisicamente neste dia, mas que se encontram espiritualmente connosco. De modo particular, agradeço ao Santo Padre Bento XVI pela carta tão paterna que me enviou por ocasião deste aniversário, e pela demonstrações de afecto ao Opus Dei e à minha pessoa, que quis manifestar. Tudo isto constitui um estímulo para redobrar a minha união afectiva e efectiva com a sua Augusta Pessoa e as suas intenções.
Também quero expressar o meu reconhecimento aos anteriores Romanos Pontífices que pude conhecer. De modo particular o meu pensamento vai para o amadíssimo Papa João Paulo II, de venerada e feliz memória, um verdadeiro pai para milhões de pessoas, como confirmou a enorme comoção causada em todo o mundo pelo seu falecimento. Além de me nomear bispo e conferir-me a ordem do episcopado, muitas vezes e de modos diversos manifestou o seu interesse e afecto pela Prelatura do Opus Dei. Cheio de confiança, recorro à sua intercessão na presença de Deus.
Maria, Mulher eucarística, é também Mulher fiel junto da Cruz. Com o seu fiat! na Anunciação, prolongado sem interrupção no decurso da sua vida, respondeu ao amor de Deus com a plena entrega da sua pessoa; agora cuida de nós, os seus filhos, com amor materno. A Ela me dirijo com palavras da sequência Stabat Mater, que pudemos recitar recentemente na festa das Dores de Nossa Senhora.
Sancta Mater, istud agas, Crucifixi fige plagas cordi meo valide. Suplico a Santa Maria que, como fruto dessa identificação com o seu Filho crucificado, me ensine – nos ensine a todos – a amar mais Cristo, o Pai e o Espírito Santo. Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum. Assim seja.
D. Javier Echevarría, Prelado del Opus Dei
Roma, Basílica de Santa Maria Maior, 22-IX-2005