Secções da entrevista
- Rumo ao centenário do Opus Dei
- Agradecer, pedir perdão
- Mudanças ao longo do tempo
- O papel das mulheres cem anos despois
RUMO AO CENTENÁRIO
Faz parte da comissão de preparação do centenário do Opus Dei em Roma. Quem a integra? Com que critérios foram selecionadas as pessoas?
Com o objetivo de pôr a bola a rolar e ativar as primeiras reflexões sobre a celebração, em dezembro de 2020 foi constituída a Comissão Central de Preparação do Centenário do Opus Dei, com uma pergunta que marcou o ponto de partida: como podemos servir melhor cada pessoa, a Igreja e o mundo a partir do carisma do Opus Dei?
A equipa, composta por quatro mulheres e três homens residentes em Roma – para facilitar o trabalho –, provenientes de diferentes culturas, gerações e áreas profissionais, procurava iniciar a reflexão sobre princípios inspiradores, linhas de ação, possíveis projetos e calendários, com uma variedade de perspetivas que a enriqueciam desde a origem.
Essa comissão era inicialmente formada por Juan Manuel Mora, como coordenador; Isabel Troconis, Santiago Pérez de Camino, Jaime Cárdenas, Marta Isabel González e Mónica Herrero. Mais tarde juntaram-se Linda Corbi e Gema Bellido, substituindo Marta e Mónica, que saíram de Roma. No meu caso, sou presidente da comissão.
Qual é o vosso trabalho agora, a três anos da data? Estão a pensar em eventos concretos ou trata-se antes de traçar linhas orientadoras?
Até agora, vimos, com a orientação da Assessoria Central e do Conselho Geral – órgãos de governo que assessoram o Prelado –, três áreas prioritárias: reflexão alargada, escuta de todos e contributo para a profissionalização das iniciativas de impacto social inspiradas na mensagem do Opus Dei, com ênfase na formação em aspetos relacionados com a cidadania e a doutrina social da Igreja.
Desde o início, move-nos o desejo de que o centenário, além do aspeto celebrativo que lhe é próprio, seja sobretudo um caminho performativo, ou seja, que cada pessoa tenha a oportunidade de sair transformada desse processo, e que isso também se manifeste institucionalmente. Um exemplo concreto é o que vivemos recentemente com as assembleias regionais, que foram um espaço de reflexão global (com a participação direta de mais de 50 mil pessoas) sobre como podemos servir melhor a Igreja e a sociedade. A partir das propostas pessoais, recolheram-se conclusões que ajudarão a inspirar a ação evangelizadora dos membros e os projetos formativos do Opus Dei para os próximos anos.
ESTAMOS A DAR ÊNFASE NA FORMAÇÃO A ASPETOS RELACIONADOS COM A CIDADANIA E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
Depois desta primeira etapa de escuta, entrámos numa fase de preparação mais próxima, em que se estão a constituir – em vários países – comités locais do centenário, para promover propostas adaptadas às circunstâncias e idiossincrasias próprias de cada lugar.
Grande parte do trabalho que continuaremos a fazer a partir de Roma consistirá em impulsionar e acompanhar essas equipas locais, para que o centenário seja vivido onde cada um está, da forma mais adequada a cada contexto. Entusiasma-nos a ideia de que este caminho acenda uma luz no coração de cada pessoa, que todos se sintam, e sejam de facto, parte do centenário.
AGRADECER, PEDIR PERDÃO
Dentro das possíveis linhas de trabalho (fazer balanço, dar graças pelo bem recebido, pedir perdão), qual é a que predomina?
Predomina o desejo de agradecer um dom de Deus: os primeiros 100 anos desde que Ele inspirou um novo carisma para a Sua Igreja. Isto é compatível com reconhecer erros, corrigir, somar aprendizagens e lançar-se na aventura do futuro.
Pessoalmente, tenho muita esperança – e noto o mesmo à minha volta – em descobrir e redescobrir como essa mensagem de Deus, que num momento da minha vida me entusiasmou e deu sentido, pode continuar a iluminar a história de tantas pessoas e frutificar numa resposta cheia de amor no trabalho, na família, no lazer e em todos os âmbitos onde se desenrola a nossa existência.
Penso que uma frase de João Paulo II, na carta Novo Millennio Ineunte, que nos tem acompanhado desde o início, resume tudo: “Lembrar com gratidão o passado, viver com paixão o presente, abrir-se com confiança ao futuro”.
E em relação ao exterior, há algo que deva ser melhorado ou especialmente sublinhado?
Claro que há margem para melhorar. A nossa abordagem é para todos, não distingue entre exterior e interior. O mundo de hoje – com a polarização em que vivemos e com as periferias existenciais onde tantos se encontram abandonados – pede-nos a todos uma renovação da fé, deixando-nos atingir por Deus nas situações mais quotidianas; maior capacidade de diálogo, superando o individualismo e a dispersão; vontade efetiva de colaborar com todos, aproximando-nos do próximo necessitado; humildade para ver os próprios limites e não exagerar os dos outros; e uma disposição constante para sermos construtores de pontes.
O MUNDO DE HOJE PEDE-NOS MAIOR CAPACIDADE DE DIÁLOGO, SUPERANDO O INDIVIDUALISMO E A DISPERSÃO
Quanto aos aspetos a sublinhar, penso que esta comemoração nos oferece uma oportunidade para valorizar todo o potencial da mensagem da santificação do trabalho e da vida diária, que São Josemaria recebeu e começou a difundir há quase cem anos.
Uma das novidades seria propor ações em conjunto com outras instituições ou pessoas da Igreja?
Há pouco referi-me à necessidade que o mundo de hoje tem de pessoas dispostas a cooperar e construir pontes, para evitar a polarização e o individualismo. Gostaríamos de aplicar essas atitudes de abertura e colaboração nos preparativos e na celebração do centenário.
Desde que São Josemaria recebeu a missão divina de fundar o Opus Dei, contou com ajuda e colaboração de outras instituições da Igreja: naturalmente, o bispo de Madrid, mas também o seu diretor espiritual, que era jesuíta; as monjas do Mosteiro de Santa Isabel; ou os religiosos que participaram na formação académica dos primeiros sacerdotes. Tinha também muito claro que a Obra estava no mundo para “servir a Igreja como queria ser servida” em cada momento da história.
Como o Opus Dei são as suas pessoas, a novidade, neste sentido, é o carisma encarnado na vida de muitos homens e mulheres de cada geração. Por isso, São Josemaria falava do fenómeno pastoral do Opus Dei como uma organização desorganizada, onde se privilegia a iniciativa pessoal de cada um. A maioria dos membros participa na vida das suas paróquias e, a partir do seu trabalho e dos diferentes setores da sociedade, colabora ou desenvolve atividades com outros católicos, cristãos de outras confissões e pessoas de boa vontade que não partilham a fé, mas partilham o mesmo desejo de melhorar o mundo.
Nesta perspetiva de redescobrir o espírito, que papel desempenham os escritos do fundador? São suficientemente aproveitados?
O Prelado quis, tendo em vista o centenário, que mais textos inéditos de São Josemaria ficassem disponíveis para todos, e têm vindo a ser publicados em escriva.org cartas e outros escritos. Sem dúvida, são uma fonte sempre viva e valiosa para os fiéis do Opus Dei e para muitas outras pessoas. Aconteceu-me, e ouço frequentemente o mesmo de outros, deparar-me com esses textos e sentir que foram escritos hoje. Gosto de pensar que essas palavras – por estarem impregnadas do Evangelho, da própria mensagem cristã – são como uma semente, que continua a ter a sua força e vitalidade. Cabe-nos preparar e cultivar o terreno para que essa semente cresça, e a preparação para o centenário pode ser uma ocasião para nos deixarmos interpelar pessoalmente por São Josemaria.
Um exemplo simpático é o novo livro intitulado Camino enamorado, que escolhe 99 pontos de Caminho – o livro de referência de São Josemaria – e os comenta com uma sensibilidade atual. Outro exemplo significativo foi o desafio mundial para viver a Quaresma, promovido pela aplicação de oração católica Hallow, que este ano utilizou esse mesmo livro do fundador do Opus Dei, com comentários e reflexões conduzidos por figuras reconhecidas em todo o mundo.
MUDANÇAS AO LONGO DO TEMPO
No documento “A Caminho do centenário”, de janeiro de 2024, é pedida a participação dos membros da Obra com sugestões e experiências. Que tipo de sugestões têm chegado?
Recebemos milhares, uma avalanche de sugestões muito variadas, algumas muito concretas, outras mais amplas, de aplicação mais global ou local. Esta grande participação fez-me constatar que, realmente, a Obra é de todos.
O Prelado, monsenhor Fernando Ocáriz, recorda com frequência que o Opus Dei, na realidade, não são edifícios ou iniciativas institucionais, mas o que acontece na vida e nas famílias de cada um dos seus membros.
Essas sugestões revelam onde estão os sonhos de tantas pessoas do Opus Dei e dos seus amigos: encarnar melhor algum aspeto dessa mensagem para contribuir para um mundo melhor. Especialmente, através do apoio às famílias e aos jovens.
RECEBEMOS UMA AVALANCHE DE SUGESTÕES MUITO VARIADAS. ESTA GRANDE PARTICIPAÇÃO FEZ-ME CONSTATAR QUE, REALMENTE, A OBRA É DE TODOS
Graças a Deus, muitas destas propostas mostram o desejo de reconhecer e contribuir para dar resposta às necessidades sociais de cada lugar. Em todas elas, pulsa uma motivação de serviço, de empatia com o sofrimento das pessoas e de compromisso para ajudar a curá-lo ou evitá-lo quando está nas nossas mãos.
Um contributo particular foi o dado por pessoas que fizeram parte da Obra durante algum tempo da sua vida: com a sua voz, ajudaram-nos a fazer uma leitura mais completa do passado e a amadurecer processos de melhoria, orientados para apoiar cada pessoa.
O centenário pode contribuir para compreender melhor o papel dos leigos na Igreja?
Parece-me que, se cada um, pela sua própria condição de cristão, de batizado, levar a sério o seu compromisso de santidade e evangelização, o papel dos leigos brilhará por si só. Oxalá o centenário possa contribuir para isso.
Um cristão comprometido, um cidadão solidário, um bom pai de família, uma boa profissional – todos eles estão a fazer Igreja. É aí que a Obra quer ajudar, através da formação e do acompanhamento que oferece, ao encontro de cada pessoa com Deus no seu dia a dia, para se converter em semeador de paz e alegria em todos os ambientes, levando a caridade de Cristo a todas as realidades humanas.
Que sugere aos membros do Opus Dei para se prepararem para o centenário?
Eu resumiria assim: “estar preparados para escutar e dispostos a responder”. Porque o Evangelho, as inspirações do Espírito Santo, os ensinamentos da Igreja, a mensagem de São Josemaria, as pessoas e as circunstâncias que nos rodeiam, falam-nos, interpelam-nos e pedem-nos uma resposta. Uma resposta de quem ama este mundo e, por isso mesmo, procura conhecer as dinâmicas que o fazem viver, para estar aí, na “própria origem das mudanças”, com uma mentalidade esperançada, sem medo de se contaminar, sem nostalgias de outros tempos.
Em vista dos próximos cem anos do Opus Dei, e dado que a maioria dos membros da Obra são casados, talvez uma prioridade possa ser trabalhar mais com iniciativas relacionadas com a família e com a formação na afetividade, como, de facto, já se está a fazer em vários países. Acha que o que se relaciona com a família e o matrimónio terá cada vez mais peso na formação e nas propostas da Obra?
Encanta-me pensar que, por ocasião do centenário da Obra, se possa aprofundar na compreensão do matrimónio como vocação divina, tal como o via o fundador do Opus Dei. Entusiasma-me também a realidade de que serão os seus membros supranumerários e os cooperadores que, com o testemunho da sua própria vida, poderão dar resposta às necessidades das famílias e dos casais.
ENCANTA-ME PENSAR QUE SE POSSA APROFUNDAR NA COMPREENSÃO DO MATRIMÓNIO COMO VOCAÇÃO DIVINA
Uma das prioridades em que coincidiram a maioria das propostas trabalhadas nas assembleias regionais, realizadas nos países onde a Obra está presente, foi justamente o apoio a casais e a famílias, pelo contributo social que representam. Um contributo concreto que nos continua a ser pedido é o acompanhamento aberto a todos e uma formação adequada às circunstâncias e ao contexto em que vivem, onde se destacam temas como o amor conjugal, a comunicação em casal, a construção de um projeto familiar partilhado, a unidade matrimonial, a complementaridade na diversidade, o acompanhamento nos casos de separação, o ficar solteiro involuntariamente, as diferentes situações que se podem dar no processo educativo dos filhos, o cuidado de pessoas idosas dependentes, etc.
O novo papa Leão XIV, que expectativas lhes suscita? Esperam algo dele em concreto?
Foi muito emocionante viver uma mudança de papado no jubileu da esperança e a caminho do centenário da Obra. Parte do legado de São Josemaria refere-se ao amor ao Papa e à Igreja e, quando alguém experimenta esse afeto, percebe que não é algo seu, mas uma herança, uma tradição de família.
Vivendo em Roma, tive ocasião de acompanhar muito de perto o Papa Francisco: as suas viagens, os seus discursos, as convocações que fez a todo o povo de Deus. Posso dizer que me interpelava especialmente por ser latino-americano, embora Roma nos ajude a ter um coração universal. Recordo com emoção as últimas vezes que pude estar mais perto dele: quando fui ao hospital Gemelli rezar com os fiéis que ali se reuniam, e nas últimas vezes que apareceu na Praça de São Pedro, durante a Semana Santa.
Nos primeiros passos do pontificado de Leão XIV, é impressionante ver que na Igreja existe uma unidade e uma harmonia que não é uniformidade. Há continuidade na variedade de expressões, de caracteres. Posso dizer que, sem o conhecer muito, já lhe quero bem e procuro apoiá-lo, através do meu trabalho, na sua missão, como também procurava fazê-lo durante o pontificado de Francisco.
Na missa de inauguração do pontificado, por circunstâncias muito casuais, tive a oportunidade de ler a oração dos fiéis em português. Foi algo muito rápido, mas permitiu-me ser testemunha da emoção do Papa naquele momento, sentir-me olhada por ele, ver a praça a partir da sua perspetiva e captar as câmaras que levavam a celebração ao mundo inteiro. Realmente é um tesouro termos o Papa, que nos une a todos e nos liga ao coração de Jesus.
O PAPEL DAS MULHERES CEM ANOS DEPOIS
No centenário, como é formulado especificamente o papel das mulheres?
O mundo mudou muito nestes cem anos, e parte dessas mudanças tem precisamente a ver com a presença da mulher em espaços onde antes não estava. Isso coloca novas oportunidades e desafios, para os quais não há uma única resposta.
Alegra-me constatar que o fundador do Opus Dei foi pioneiro neste tema e soube reconhecer características muito próprias da liderança feminina. Nesse sentido, São Josemaria afirmava que a mulher está chamada a levar à família, à sociedade civil, à empresa, à universidade, à vida pública, à Igreja, algo que lhe é próprio e que só ela pode dar: a sua delicada ternura, a sua generosidade incansável, o seu amor pelo concreto, a sua agudeza de engenho, a sua capacidade de intuição…
Pessoalmente, sonho com uma promoção da mulher que não implique desprezo pelos homens, nem confronto entre ambos. Só construiremos algo duradouro e relevante na medida em que soubermos realmente respeitar e promover a dignidade de todas as pessoas e a colaboração entre elas.
Como estão a viver na Obra o processo de atualização dos Estatutos, pedido pelo papa Francisco e que coincidiu com este caminho rumo ao centenário?
Vivemos esse processo na Obra muito unidos ao Prelado e, todos com ele, muito unidos ao Papa. Foi um caminho de três anos, durante os quais monsenhor Ocáriz nos foi informando de cada passo do trabalho, o que nos ajudou a acompanhá-lo com oração, como ele ia pedindo. Pude ver, em primeira pessoa, a confiança em Deus e a prontidão do Prelado para responder ao que a Santa Sé pedia em cada momento.
A proposta de adequação permitiu recolher sugestões de todos os membros que quiseram participar e voltar a comprovar como se procura que o carisma e a dimensão jurídica caminhem de mãos dadas. Essa intenção foi uma constante ao longo da vida do fundador da Obra e, de algum modo, Deus quis que, no caminho para o centenário, esse aspeto voltasse a ter atualidade.
O NOSSO ESPÍRITO TEM POTENCIALIDADES ENORMES PARA O MUNDO ATUAL
Não sabemos como ficarão os Estatutos, sobretudo porque, enquanto estávamos no processo de revisão, houve mudanças significativas no Código de Direito Canónico sobre as prelaturas pessoais, que agora são equiparadas a uma associação clerical. O espírito da Obra é eminentemente laical, embora os sacerdotes também desempenhem um papel fundamental. O importante é que possamos viver em plenitude o nosso espírito, que tem potencialidades enormes para o mundo atual.
A reflexão sobre a expressão do carisma em termos jurídicos permitiu também identificar aspetos que são, neste momento, muito significativos, e com os quais somos chamados a dar um contributo específico na Igreja e na sociedade, como é a compreensão do trabalho como meio de encontro com Cristo e de serviço aos outros, e manifestação do carácter secular do nosso carisma. Num mundo em mudança, é importante a ligação à origem, base da fidelidade criativa na resposta pessoal.
Entrevista publicada na versão impressa de Mundo Cristiano, em agosto de 2025.

