O “mundo” que amamos

São Josemaria ensinava que é possível um amor apaixonado ao mundo, já que se pode tornar o lugar de encontro com Deus. Este texto, do “Dicionário de São Josemaria Escrivá de Balaguer” explica o significado de “mundo” nos seus ensinamentos.

  1. Amor ao mundo criado
  2. Mundo, pecado e redenção
  3. Mundo, graça, santificação e consciência de pecado

Na homilia Amar o mundo apaixonadamente – pronunciada em 8 de outubro de 1967 em Pamplona, no Campus da Universidade de Navarra – São Josemaria, remetendo-se à mensagem que vinha difundindo desde 2 de outubro de 1928, afirmou com força: «Tenho ensinado constantemente com palavras da Sagrada Escritura: o mundo não é mau porque saiu das mãos de Deus, porque é uma criatura Sua, porque Javé olhou para ele e viu que era bom (cf. Gn 1, 7 e ss.). Nós, os homens, é que o tornamos mau e feio, com os nossos pecados e as nossas infidelidades. Não duvideis, meus filhos: qualquer forma de evasão das honestas realidades diárias é, para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à vontade de Deus»[1].

Esta passagem está enraizada nas Escrituras, remontando ao relato do Génesis onde se diz que, depois de ter criado o mundo, «Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom» (Gn 1, 31). De forma esquemática o ensinamento que ele contém pode ser estruturado da seguinte forma: 1) o mundo é bom; 2) é bom, porque foi criado; 3) não pode sair nada mau das mãos de Deus; 4) tudo o que é mau e deformado procede dos pecados e das infidelidades dos homens; 5) esta deformação e esta maldade não podem justificar a evasão para fora deste mundo; 6) além disso, nem tudo é mau, pois há muitas realidades e atividades quotidianas boas e honestas.

1. Amor ao mundo criado

A relação do homem com o mundo permaneceu teologicamente obscura nas culturas alheias à Revelação judaico-cristã. O mundo, submetido à lei da ananké, a um destino cego, estava abandonado a si mesmo por deuses incapazes de vencer a força do destino. A religião, ao prestar culto a uma divindade longínqua e anónima, ficava relegada ao ritualismo, graças ao qual a sociedade podia viver numa ordem que lhe trazia uma paz relativa. Não restava ao homem senão chorar a sua sorte trágica e ‘divertir-se’ no sentido de Pascal, ou seja, fugir da dureza de sua condição através da caça, guerra ou de obras de arte com as quais exorcizava o seu mal-estar por meio de canções.

Por sua vez, o povo da Bíblia, louvava um Deus que se dirigia pessoalmente a ele através dos profetas, e finalmente, com a Encarnação do Verbo, tornando-se Ele mesmo presente e levando a revelação divina à plenitude. Deus mostrava-se não apenas benévolo e atento ao homem, mas chegava até a dar o seu Filho unigénito por amor: o «Verbo fez-se homem» (Jo 1, 14) e assumiu plenamente a nossa condição, indo até à morte. Tal é a realidade inaudita e revolucionária narrada pelo Evangelho. O mundo, que os pagãos acreditavam estar dominado por forças impessoais ou abandonado por deuses que habitavam no empíreo, foi visitado pelo seu Criador! Nada do que é humano, exceto o pecado, é estranho a Deus feito homem em Cristo. O mundo tornou-se o lugar de encontro entre o homem e Deus.

O contexto material da homilia de 1967 contribui para sublinhar esse sentido teológico da relação do homem com o mundo à luz da criação divina. Quando a pronunciou, São Josemaria estava a celebrar a Missa num templo singular, tendo um campus universitário como nave e a biblioteca da universidade como retábulo. Nessa Missa, como em todas celebrava-se “o ato mais sagrado e mais transcendente” que os homens podem realizar nesta vida: a união com Deus mediante a comunhão com o Corpo e Sangue de Cristo. E isso aconteceu ao ar livre, no mundo, no meio de edifícios e lugares em que o homem trabalha.

Tendo dito – na mesma homilia – que «comungar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor é, de certo modo, desligar-nos dos laços de terra e de tempo, para estar já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo enxugará as lágrimas de nossos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá passado (cf. Ap 21, 4)»[2]. São Josemaria prossegue afirmando: «esta verdade tão consoladora e profunda, esta significação escatológica da Eucaristia, como costumam denominá-la os teólogos, poderia, no entanto, ser mal-entendida; e de facto tem-no sido, sempre que se tem pretendido apresentar a existência cristã como algo de exclusivamente espiritual – espiritualista, quero dizer, – próprio da gente pura, extraordinária, que não se mistura com as coisas desprezíveis deste mundo, ou que, quando muito, as tolera como realidade necessariamente justaposta ao espírito, enquanto aqui vivemos»[3].

Estas linhas transmitem uma mensagem de raiz teológica, precisa e densa. Evocam um duplo obstáculo que é preciso evitar: 1) pensar que a vida espiritual só pode realizar-se fora do mundo, rejeitado como mau ou, pelo menos, como daninho ou pouco próprio para o desenvolvimento da espiritualidade; 2) decidir-se a viver no mundo, renunciando a toda a vida espiritual, contentando-se com o imediato. Tanto num caso como no outro, afirma-se uma separação radical sem união possível entre o mundo, o homem e Deus. Essas duas atitudes opostas são superadas ao considerar o mundo como criado e, em consequência, bom e amado pelo seu Criador.

Evita-se assim um duplo mal-entendido: a) considerar o homem como um ser lançado num mundo fechado sobre si mesmo e, consequentemente, sem sentido; b) compreender o mundo exclusivamente com base na queda do pecado, sem considerar que ele foi criado por Deus, que é infinitamente bom e dotou a criação de uma bondade que se pode ser danificada, mas não destruída. E, consequentemente, o cristão deseja «dar forma a tudo segundo o espírito de Jesus; colocar Cristo na entranha de todas as coisas. “Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum” (Jo 12, 32): quando Eu for levantado sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua Encarnação, com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e os seus milagres por terras da Judeia e da Galileia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da Criação, Primogénito e Senhor de toda a criatura»[4].

2. Mundo, pecado e redenção

O pecado é, sem dúvida, uma realidade e as palavras de São João permanecem irrevogáveis: «Não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o estilo de vida orgulhoso – não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa e também as suas concupiscências, mas quem faz a vontade de Deus permanece para sempre» (1Jo 2, 15-17). Esse mundo é – comenta Santo Agostinho – o mundo de quem não conhece Cristo nem o cristão; mais radicalmente, o mundo que «não nos conhece porque não conheceu Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo andou por ele. Ele foi Deus encarnado sob as aparências da fraqueza humana. Porque não foi conhecido? Porque censurou todos os vícios humanos»[5].

É um erro grave tentar compreender o mundo a partir do pecado; mas também é um erro grave tentar compreendê-lo sem ter em conta a realidade do pecado e as suas implicações; ou sem olhar para Cristo e para a sua obra redentora. Em suma, a partir de uma perspetiva cristã, o mundo deve ser compreendido tendo em conta ao mesmo tempo a criação, o pecado e a graça, uma vez que essas três realidades constituem a estrutura da história que se desenrola, sob a providência amorosa de Deus, desde o começo da criação.

Vamos reproduzir a esse respeito um texto de São Josemaria, semelhante em alguns aspetos à passagem da homilia de 1967 citada ao princípio: «Cristo, Nosso Senhor continua empenhado nesta sementeira de salvação dos homens e de toda a Criação, deste nosso mundo, que é bom, porque saiu bom das mãos de Deus. Foi a ofensa de Adão, o pecado do orgulho humano, que quebrou a harmonia divina da criação. Mas Deus Pai, quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o seu Filho Unigénito, que por obra do Espírito Santo encarnou em Maria sempre Virgem, para restabelecer a paz; para que, redimindo o homem do pecado, «adoptionem filiorum reciperemus» (Gl 4, 5) fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes de participar na intimidade divina, e assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova estirpe dos filhos de Deus (cf. Rm 6, 4-5), a libertação de todo o universo da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo cf. Ef 1, 9-10), que as reconciliou com Deus (cf. Cl 1, 20). A isto fomos chamados, nós, os cristãos; esta é a nossa tarefa apostólica e a ânsia que nos deve queimar a alma: conseguir que seja realidade o reino de Cristo. (…) Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça colaborar humilde e fervorosamente no divino propósito de unir o que está quebrado, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar ao seu fim aquilo que se desencaminha, de reconstruir a concórdia de tudo o que foi criado»[6].

Na Sagrada Escritura, a palavra “mundo” e outras análogas são usadas em diversos sentidos. Às vezes indicam o universo, a totalidade do que existe; mais especificamente, a totalidade do que foi criado por Deus, já que Deus transcende o mundo. Outras vezes, designam o ambiente em que o homem vive, ou diretamente a sociedade humana. Outras vezes ainda, a partir do início da literatura apocalíptica, falam do mundo a partir da perspetiva da dialética entre pecado e redenção. E assim falam “deste mundo” ou do “mundo presente” para referir-se à sociedade e à história humanas enquanto marcadas pelo pecado e destinadas, portanto, a desaparecer quando vier o Messias e se instaurar o “mundo futuro”. Com Cristo, as coisas e o modo de falar mudam, porque com Ele, Verbo de Deus feito homem, o mundo futuro e definitivo já começou. Distingue-se, portanto, não entre duas etapas uma a seguir à outra, mas – os escritos de São Paulo ou de São João são muito claros neste sentido – entre duas realidades coexistentes ou entre os dois níveis ou dimensões da realidade, já que o mundo do pecado, embora derrotado na Cruz, não desapareceu e continua fustigando o cristão, e o mundo futuro, embora presente, ainda não se manifesta com toda a sua plenitude. A situação do cristão – e do homem em geral – é, portanto, uma situação de tensão e de luta, uma vez que, participando de alguma forma do mundo futuro ou definitivo, deve enfrentar os ataques e as dificuldades que provêm da sobrevivência do mal e do pecado. Daí a petição que Cristo dirige a Deus Pai referindo-se a seus discípulos: «Não peço que os tires do mundo, mas sim que os preserves do mal» (Jo 17, 15).

A tradição teológica refletiu amplamente sobre essa doutrina neotestamentária. Por vezes, fê-lo a partir de uma perspetiva eclesiológica e de teologia da história, considerando a distinção e as relações entre a Igreja e o mundo. As formulações a que se chegou foram numerosas e variadas, mas podemos limitar-nos a dois exemplos de particular importância: na época antiga, Santo Agostinho em De civitate Dei, e, na época contemporânea, do Magistério, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concilio Vaticano II.

No terreno da teologia espiritual também se manteve o modo de falar bíblico, embora no que diz respeito ao uso do termo “mundo”, ele seja utilizado em sentido negativo, deixando em segundo plano a tensão escatológica e recorrendo à palavra “mundo” para designar direta e formalmente a sociedade humana na medida em que nela está presente o pecado; mais ainda, na medida em que, num ou noutro grau, essa sociedade está, nas suas instituições e nos seus modos de pensar, impregnada pelo pecado e a ele incitando. O mundo, assim entendido, será considerado como um dos “três inimigos da alma”, ou seja, como uma das fontes principais – com a carne e o demónio – de tentações e de incitação ao pecado.

São Josemaria retoma expressamente esta terminologia em certos momentos, como neste ponto de Caminho: «O mundo, o demónio e a carne são uns aventureiros que, aproveitando-se da fraqueza do selvagem que trazes dentro de ti, querem que, em troca do fictício brilho de um prazer – que nada vale – lhes entregues o ouro fino e as pérolas e os brilhantes e os rubis embebidos no Sangue vivo e redentor do teu Deus, que são o preço e o tesouro da tua eternidade»[7]. E pressupõe este uso noutros lugares em que recorre à palavra “mundo” para referir-se a ambientes onde imperam atitudes e comportamentos imorais ou, pelo menos, superficiais e frívolos[8].

Não é esse, no entanto, o uso da palavra “mundo” que predomina nos textos de São Josemaria. Importa sublinhar, sobretudo, que o contexto espiritual no qual se situam as suas referências ao tema, quer em escritos, quer na sua pregação não é constituído por sentimentos de retraimento ou de pusilanimidade, e, pelo contrário, de responsabilidade e de apostolado; ou seja, pelo desejo de santidade, pela decisão de se esforçar, com base na vitória sobre o pecado obtida por Cristo, em santificar-se, e não de qualquer forma, mas precisamente santificando o mundo. Em resumo: trata-se de permanecer no mundo, na vida habitual dos homens, enfrentando a tentação ou o perigo da frivolidade («sede homens e mulheres do mundo, mas não sejais homens ou mulheres mundanos»[9]), e dando testemunho com a própria vida de que, também no meio do mundo – no meio da rua, como São Josemaria gostava de dizer – se pode, ainda que não faltem defeitos e quedas, procurar e alcançar, com a graça de Deus, a santidade. «‘Influi tanto o ambiente!’, disseste-me. E tive de responder: – Sem dúvida. Por isso é mister que seja tal a vossa formação, que saibais levar convosco, com naturalidade, o vosso próprio ambiente, para dar o ‘vosso tom’ à sociedade em que viveis. – E então, se aprendeste esse espírito, estou certo de que me dirás com o pasmo dos primeiros discípulos, ao contemplarem as primícias dos milagres que se operavam por suas mãos em nome de Cristo: ‘Influímos tanto no ambiente!’»[10].

3. Mundo, graça, santificação e consciência de sentido

A criação é boa. As infidelidades e os pecados dos homens deformam-na, mas nunca poderão converter em absolutamente perverso aquilo que, tendo sido criado por Deus, é bom por natureza. A Encarnação do Verbo – a graça de Cristo que é uma nova criação – pode devolver toda a bondade ao que estava danificado, até mesmo profundamente, pelo mal. A graça é intrinsecamente boa; podemos perdê-la, mas não se corrompe e pode vencer a corrupção.

São Josemaria referiu-se à Eucaristia como a «ação mais sagrada e transcendente que o homem pode realizar nesta vida»[11]. E insistiu sempre na transcendência infinita de Deus: «Considera o que há de mais formoso e grande na terra..., o que apraz ao entendimento e às outras potências..., o que é recreio da carne e dos sentidos... E o mundo, e os outros mundos que brilham na noite: o Universo inteiro. E isso, junto com todas as loucuras do coração satisfeitas..., nada vale, é nada e menos que nada, ao lado deste Deus meu! – teu! – tesouro infinito, pérola preciosíssima, humilhado, feito escravo, aniquilado sob a forma de servo no curral onde quis nascer, na oficina de José, na Paixão e na morte ignominiosa..., e na loucura de Amor da Sagrada Eucaristia»[12]. Palavras que, indo do plano espiritual ao metafisico, podem levar-nos a evocar um conhecido dito de São Tomás de Aquino: «o bem da graça é, para uma só pessoa, melhor que o da natureza para todo o universo»[13].

Com a graça, que nos é comunicada com os sacramentos, e de modo particular com a Eucaristia, é introduzida no homem uma “novidade divina”, com ela «foi-nos dado um novo princípio de energia, uma raiz poderosa, enxertada no Senhor»[14]. O fundamento da existência cristã está na Encarnação do Verbo, no facto de Deus se tornar presente no mundo assumindo uma natureza humana. Jesus Cristo, narra São João, disse aos judeus: «vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima» (Jo 8, 23). Ele afirma não ser deste mundo, e afirma-o estando neste mundo. Está no mundo sem ser do mundo, não só porque n’Ele não há nada que tenha a ver com o pecado, mas porque é Deus: ao encarnar, Deus não passa por uma metamorfose, mas continua a ser Deus, perfeito Deus, sendo ao mesmo tempo perfeito homem, perfectus Deus, perfectus homo, segundo a expressão do símbolo Quicumque citada com frequência por São Josemaria[15].

Isto quer dizer que Deus não se confunde com o mundo, porém, ao mesmo tempo, que podemos encontrar a Deus no mundo. Que Deus, que se fez presente no mundo, não se afastou do mundo. Cristo venceu o pecado e a morte, e, ressuscitado e sentado à direita do Pai, vem ao nosso encontro atuando na Igreja e na alma. Envia-nos o Espírito Santo e comunica-nos a graça, chamando-nos à comunicação com Ele a todo o momento, hoje, agora, enquanto estamos no mundo e somos do mundo, que já não é uma tela escura e opaca que impede de chegar a Deus, mas contexto e matéria de nosso encontro com Ele. A teologia católica ensina que a natureza conserva, embora obscurecida, a sua bondade nativa e que o dom da graça, totalmente gratuito, mas realmente comunicado, nos leva à vida de Deus. E faz isso tanto perante aqueles que afirmam que a natureza está totalmente corrompida pelo pecado de modo que a graça não a pode curar, como daqueles que sustentam que a natureza é a tal ponto perfeita, pura e completa, que não precisa de receber de Deus o seu aperfeiçoamento; tanto perante aqueles que postulam o absoluto predomínio da pecabilidade e da queda, como aqueles que vivem na superficialidade e na dispersão ou os que conhecem a angústia do homem de Deus, ou os que vivem o drama da separação da sua causa criadora, da solidão causada pela espessura de um mundo no qual se está preso.

Em plena continuidade com a tradição católica, e aprofundando nela graças às luzes recebidas de Deus a partir de 2 de outubro de 1928, o fundador do Opus Dei prega que, sem menoscabo da referência a Deus, é possível um amor apaixonado ao mundo, já que, em Cristo e com Cristo, o mundo deixou de ser causa de separação e pode tornar-se âmbito e matéria do encontro com Deus.

«Nas situações mais comuns há um quê de santo, de divino, que toca a cada um de vós descobrir»[16]. Esse quê de divino é o próprio Deus, que espera em cada momento – em cada instante, em cada atividade – uma resposta que a graça torna possível descobrir e realizar.

Qual é o lugar da existência cristã? – pergunta-se o fundador do Opus Dei na mesma homilia. E em seguida responde: «Meus filhos, onde estiverem os homens, vossos irmãos; onde estiverem as vossas aspirações, o vosso trabalho, os vossos amores, é aí que está o lugar do vosso encontro quotidiano com Cristo. É no meio das coisas mais materiais da Terra, que devemos santificar-nos, servindo Deus e todos os homens»[17]. E um pouco mais à frente: «Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar Nosso Senhor na nossa vida corrente, ou nunca O encontraremos. Por isso, posso dizer-vos que a nossa época precisa de restituir à matéria e às situações que parecem mais vulgares o seu sentido nobre e original, colocá-las ao serviço do Reino de Deus, espiritualizá-las, fazendo delas o meio e a ocasião de nosso encontro permanente com Jesus Cristo»[18].

São Josemaria manifesta de muitos modos essa superação das propostas que, postulando uma absoluta heterogeneidade entre Deus e o mundo, decretam como impossível a união da criatura com o seu Criador e Redentor. Por exemplo, na sua afirmação de que Marta e Maria, ação e contemplação, podem harmonizar-se em virtude do vínculo que une o homem com Deus em Cristo, o Filho de Deus feito homem para que nós, os homens, chegássemos a ser filhos de Deus. A realidade da filiação divina do cristão concilia Marta ativa com Maria contemplativa, a terra com o céu. E faz isso em virtude de uma espiritualidade encarnada no quotidiano. Nem estar-fechado-no-mundo, confinado na subjetividade nem estar-fora-do-mundo, separado do que acontece, mas estar no mundo, estando ao mesmo tempo em Deus, atuar no mundo e saber-se amado por Deus e referido a Ele. «Devemos ter presente – escreve São Josemaria – a importância santificadora do trabalho e sentir a necessidade de compreender a todos para servir a todos, sabendo que somos filhos do Pai Nosso que está nos céus», até unir «de uma forma que acaba por ser conatural, a vida contemplativa com a ativa»[19].

Divinizado pela graça, abrindo por completo a sua liberdade ao amor que vem de Deus, o homem santifica o mundo, de modo que no seu coração se unam o céu e a terra, e a vida inteira acabe por estar sob o sinal de uma unidade que deriva de Deus. Daí que São Josemaria proclame: «Não pode haver uma vida dupla; se queremos ser cristãos, não podemos ser esquizofrénicos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem que ser – na alma e no corpo – santa e cheia de Deus, deste Deus invisível que encontramos nas coisas mais visíveis e materiais»[20].

Parte do pensamento moderno considerou o mundo, ou como voltado sobre si mesmo e isolado como um espaço fechado, ou pelo contrário, como uma abertura infinita na linha de um tempo sem fim. Tanto num caso como no outro, o homem submetido ao “destino”, ou livre para “projetar” uma existência que se fecha sobre si mesma, encontra-se só, abandonado às suas forças. Existir no mundo reduz-se então a atuar, a trabalhar e a satisfazer as necessidades que a existência implica. A vida tem como limite o mundo que nos rodeia com tudo o que contém: desde as realidades mais comuns, utensílios, alimentos, etc., até aos grandes espaços e aos grandes abismos, tudo fica incluído numa falta de sentido. Vive-se para viver, come-se para continuar vivendo, sem finalidade, sem interioridade, sem um porquê. Tudo remete ao mero facto de existir ou a um desejo de existir que, em última análise, se identifica com a necessidade.

É grande o contraste entre a visão segundo a qual o homem foi “lançado” a um mundo sem sentido, e a conceção cristã do mundo como realidade criada por um Deus ao mesmo tempo omnipotente e amoroso, Criador e Pai. Para o cristão o mundo não é o horizonte intransponível de uma existência humana fechada à transcendência, mas caminho que, em virtude da graça de Cristo, pode levar à união com Deus.

À luz da fé cristã, da verdade exaltante e consoladora da filiação divina, o homem compreende-se como criatura chamada a santificar-se no mundo, santificando o mundo. O martelo remete, por um lado, ao prego, por outro, ao cabo, e o cabo à mão, que por sua vez remete à inteligência e à vontade. E a Deus, desde que, ao procurar a perfeição da própria tarefa, a pessoa procure a glória divina, o amor e o serviço. «Asseguro-vos, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, ela transborda da transcendência de Deus. Por isso vos tenho repetido, com um insistente martelar, que a vocação cristã consiste em fazer poesia heroica da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não, onde se juntam deveras é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida de cada dia...»[21].


[1] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 114.

[2] Ibid., n. 113.

[3] Ibid.

[4] São Josemaria, Cristo que passa, n. 105.

[5] Santo Agostinho, Comentário à 1ª Carta de São João, IV, 4.

[6] São Josemaria, Cristo que passa, n. 183.

[7] São Josemaria, Caminho, n. 708.

[8] cf. por exemplo, São Josemaria, Caminho, n. 185, 482, 633.

[9] São Josemaria, Caminho, n. 939.

[10] Ibid., n. 376.

[11] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 113.

[12] São Josemaria, Caminho, n. 432.

[13] São Tomás de Aquino, S.Th., 1-2, q. 113, a. 9, ad 2.

[14] São Josemaria, Cristo que passa, n. 155.

[15] cf. por exemplo, Ibid., n. 13.

[16] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 114.

[17] Ibid., n. 113.

[18] Ibid., n. 114.

[19] São Josemaria, Carta 1, 24/03/1930, n. 10; cf. Amigos de Deus, n. 67, 149, 238, 296, 308-309, 316.

[20] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 114.

[21] Ibid., n. 116.

Hervé Pasqua